(Às vezes pegamos uma pedra e esquecemos de olhar para a montanha inteira)
“Em política, os alemães pensam o que os outros povos fazem. A Alemanha era sua consciência teórica. A abstração e a arrogância de seu pensamento corriam sempre em parelha com a limitação e a mesquinhez de sua realidade”.
Karl Marx
Olá!
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Eu falo muito de café por essas bandas, mas a patroa é
igualmente aficionada pelos derivados da rubiácea. Normalmente, trabalhamos em
tabelinha, onde eu me fixo mais nos métodos, enquanto ela fica antenada nos
grãos em si, achando aqui e ali algumas preciosidades. Acontece que o mundo não
é assim tão rígido, razão pela qual ela também curte umas variaçõezinhas no
preparo, o que vai desembocar em métodos diferentes. Com isso, também fica de
olho nas novidades e faz acréscimos em nossa pequena coleção. Ela acabou
trazendo uma peça curiosa, que mistura características de um filtro
metálico com uma Clever.
Seu nome é Handy Brew.
É um método mais declaradamente para chá, mas que é
aplicável a café também, segundo as impressões de alguns baristas que
acompanhamos. De fato, ele se acomoda muito bem a esse propósito, mas funciona,
como eu já disse, com sistemas aplicáveis confortavelmente a café. Ele se
assemelha muito à Clever, que permite reter a água antes da percolação, mas, no
lugar de um filtro de papel, aqui se encontra um filtro metálico que faz o
mesmo serviço, com a vantagem de coar mais óleos, mas com o deslize de deixar
passar mais resíduos.
O resultado é que é possível obter mais de pós renitentes,
pelo simples motivo de deixar mais tempo de contato com a água.
O escoamento é feito pelo seu fundo móvel, que libera a
percolação assim que se pousa o conjunto em um decanter e ocorre o shut
off, nome tucano para escoamento da água.
Nome do utensílio: Bule infusor
Tipo de técnica: infusão
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: De média para grossa
Dinâmica: O pó é depositado no fundo do utensílio, onde será preenchido com água fervente. Após o tempo desejado, o bule será colocado em um decanter para que ocorra o escoamento do líquido
Resíduos: Médios
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: Médio
Eis um exemplo de uso diverso que acaba sendo distinguido em contextos específicos. A própria caixinha em que o objeto é comercializado indica seu uso para chá, mas nunca o utilizamos dessa forma em casa, sendo, para nós, um método de extração dentre outros. E, sim, gostamos também de chá.
Não é incomum, vou pensando enquanto aguardo meu café, que
nossos usos e costumes tergiversem propósitos originais, com o proveito que
achemos melhor, mas tem vezes que, de fato, miramos o pé e acertamos o olho.
Desta mesma forma, os usos mais evidentes de obras de
filosofia nem sempre são aqueles para os quais elas nasceram. Às vezes a gente
pinça uma simples frase e a consagra, e esquece de tudo o mais que foi dito
pelo pensador. É exatamente o caso da obra “Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel”, escrita por Karl Marx. Eu mesmo fiz esse exercício, porque quis
elucidar o sentido da frase “a religião é o ópio do povo”, neste
texto, e não comentei mais nada sobre o livro em questão. Aliás,
provavelmente por ser um livro da primeira fase de Marx, publicado
postumamente, houve aprimoramento de suas ideias em obras posteriores, o que
explica bem ser relegado a um plano inferior, e que termina por ser mais
lembrado pela frase famosa (e nem sempre bem compreendida).
Mas sempre há tempo, e eu vou dar um leve repassada nesta
obra, que não é tão imatura ou desinteressante quanto pode parecer pelo fato de
se ter tornado célebre por uma frase que, além de tudo, fica meio fora do
contexto geral. Dispa-se de seus preconceitos e me acompanhe.
Hegel colocou toda a história em uma espiral dialética, como
já expliquei aqui,
em que a contraposição de um oposto fazia com que a realidade presente se
encaminhasse para uma espécie de ponto de equilíbrio, o que consistia em uma
nova instância da realidade. Esses ciclos eram contínuos, e sempre uma situação
oposta à atual fazia um confronto, até ser resolvida através de uma nova
síntese. Assim, do confronto da tirania com a liberdade, surgia uma monarquia
constitucional. Só que, como a roda nunca parava de girar, a nova monarquia
também é colocada contra uma oposição, e dela surgia uma democracia. Ocorre
que, ao se atingir a sociedade burguesa, o ciclo se encerra, plenamente
realizada no cume da racionalidade que conduz a história. Hegel considerava
esse modelo de sociedade civil como a mais perfeita síntese desta
racionalidade, e, com esse estatuto atingido, não há como caminhar para nada
mais racional.
Com o fim da espiral dialética, a sociedade teria atingido o
Espírito Absoluto, que, no dizer de Hegel, é o momento de estabilidade em que
não se justifica mais que as tensões entre tese e antítese venham a produzir
novas sínteses. Tudo isso falando bem por cima.
Sabemos que Hegel usava e abusava do termo “Espírito”, que
não tem o sentido místico de alma atribuído pelas religiões, mas do flutuar
lógico que espelha as relações entre a consciência e a natureza. Além de
difícil, Hegel é extremamente abstrato, distante da natureza própria, o que
causa urticárias em um materialista como Marx, que concorda com essa mecânica
em um único ponto – há um motor para a realidade. Ele não trata do assunto
nessa obra, mas, no seu ponto de vista, este motor é completamente material: a
luta de classes, como já discorri aqui,
o que fixa o distanciamento sobre ambos os pensadores.
Sendo assim, tudo o que Hegel considerava como o ápice da
civilização era, para Marx, resultado de condições históricas contingenciais.
Prova disso é como o sistema de garantias constitucionais tão caro à burguesia
poderia ser suspenso de acordo com os sabores das circunstâncias que se
apresentavam no momento, mas vamos com calma nessa hora.
A sociedade burguesa emerge da falência dos absolutismos, os
regimes onde reis (e o clero) governam de acordo com suas vontades, encontrando
seu auge intelectual no Iluminismo. Seus ideais pregavam, essencialmente, a
liberdade, o que garantiria um progresso maior para as sociedades. Em linhas
bem gerais, os regimes absolutos se caracterizam por restrições que atendem
interesses daqueles que estão sentados nos tronos, tanto reais, quanto
clericais. Como a determinação dos ocupantes do poder se dava essencialmente
por linhas sucessórias hereditárias ou colegiadas, tínhamos ferido um dos
principais sustentáculos contratualistas, o consentimento dos governados, o que
era um permanente fumante sentado no barril de gasolina. Isso acontece porque a
concordância no estabelecimento do reinado vai se perdendo com o decorrer do
tempo, e o mesmo não se renova com o suceder de gerações. Sendo assim, os
conflitos vão se tornando inevitáveis, até que se estabeleça um sistema de
garantias constitucionais que evitem a vontade exclusiva de um monarca, mas dos
próprios governados: direitos humanos, liberdade de manifestação, laicidade do
Estado, tolerância religiosa e política, dentre outros. Essa construção
política atende perfeitamente os anseios da classe burguesa e é sob esse
contexto que ela chega ao poder. Essa classe, formada especialmente pelos
comerciantes que emergem do renascimento das cidades após o feudalismo
medieval, passa a dominar cada vez mais os mercados e, para isso, cai como uma
luva a ampla liberdade e manutenção de recursos em suas posses. Com o tempo,
mais e mais desses meios ficam em suas mãos.
É esse estado de realidade social que Hegel enquadra como
chegada ao ápice do Espírito, e que vai, daí por diante, se perpetuar no meio
social como sistema perfeito. Contudo, é aqui que Marx aponta seus canhões.
Marx define que a filosofia de Hegel nada mais faz do que inverter sujeito e
predicado. Ele interpreta que Hegel, ao criar uma entidade mística como o Espírito
Absoluto e derivar dele uma teoria de Estado, nada mais está fazendo do que
interpretar a sociedade prussiana da época. A chegada da burguesia ao poder é
uma das tantas instâncias da realidade dentre outras, regidas pelas
circunstâncias históricas e sujeita a mudanças em novos processos dialéticos,
porque seu motor continua em funcionamento. Não há um Espírito, há condições
sociais.
Com a ascensão da burguesia, antes submetida à monarquia,
surge uma nova classe, antes oculta – o proletariado. Eles têm menos meios, já
que ao menos os burgueses tinhas recursos financeiros, mas são muito numerosos.
Com o crescimento da indústria, os proletários vão se tornando cada vez mais
necessários, mas cada vez menos valorizados, sendo que somente através de sua
união se consegue construir uma ferramenta da resistência.
E o que temos aqui? Todo o sistema de garantias que os
burgueses edificam para sua própria proteção é suspenso quando sua aplicação se
volta ao proletariado. Aqui não vale mais a livre associação, quando os
operários e camponeses tentam fundar sindicatos; não vale mais a liberdade de
manifestação, quando os proletários querem distribuir panfletos; não valem mais
os direitos humanos, quando as massas querem melhores condições de vida e
trabalho. Se esta é a sociedade ideal hegeliana, qual é o lugar do operariado e
do campesinato? Que estabilidade se pode esperar, ou que sociedade sem tensão
se tenta conseguir com tal volume de descontentes? O próprio Hegel reconhece
que é muito difícil uma solução via Estado moderno para os problemas do
proletariado, incluindo a pobreza extrema. Por isso, Marx define que a teoria
de Estado de Hegel é uma grande furada, uma tese fundada por e para burgueses.
Baseado na visão do Espírito, Hegel, segundo Marx, trata o
Direito como uma entidade abstrata, que tem vida própria e independente da
realidade histórica a quem deveria legislar. Mas é a sociedade civil, aquela
que existe, que se move, que produz, que constitui a base do Estado e, por
consequência, do Direito. Hegel propõe que toda massa proletária faça parte de
um Estado alijado, sem direito a participação na sua própria defesa de
interesses, um não-Estado dentro de um Estado que, no final das contas, nada
tem de diferente com relação à monarquia. Eu lembro de um vizinho nosso que,
conformista, sempre dizia que seja no Capitalismo, no Comunismo, na ditadura e
fora dela sempre resta ao povo trabalhar, e pouco mais do que isso. Parece
mesmo ser essa a ideologia defendida por Hegel, e que Marx tão duramente
combate.
Quem está acostumado com a escrita marxista pode estranhar
um pouco está obra. Isso se justifica pelo fato de ser um escrito de sua
juventude, guardado por anos em uma caixa, e que só foi levado à publicação
postumamente. Embora já esteja em acordo com seu ideário consolidado, ainda não
tem um conjunto já tão bem apurado, como seria de se esperar em um jovem
estudante. Ele vai retomar a temática em livros como A Ideologia Alemã e 18
Brumário de Luís Bonaparte, onde já temos um formato mais próximo ao pensamento
final de Marx.
Ao fim e ao cabo, é um livro que perdeu sua força por conta
das obras posteriores, mais completas e menos fragmentarias, mas que não deixa
de ser um documento histórico digno de registro, que fala mais para nós do que
apenas ficar perturbando a religião com uma frase de efeito. Bons ventos a
todos!
Recomendação de leitura:
Como eu já citei este livro de Marx em outros textos, achei
melhor indicar a obra criticada, do nada fácil Hegel:
HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
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