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sexta-feira, 20 de junho de 2025

O café filosófico do quotidiano – o agnosticismo que se combina com qualquer modo de crença

(Crer ou não crer, eis a questão) 

“O agnosticismo puro é impossível. O único agnosticismo verdadeiro é a ignorância. Porque para nos radicarmos no agnosticismo é-nos preciso um argumento para nos persuadir que a razão tem certos limites. Ora, quem observa pode parar; quem raciocina não pode parar.”

Fernando Pessoa

Olá!

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Dizem que os mineiros são desconfiados. Eu não sou mineiro, mas desconfiado eu sou. Então tudo o que é apresentado a mim como novidade, eu coloco entre parênteses. Não se trata de uma atitude fenomenológica, afinal, epoché não é coisa para o quotidiano, mas eu sou feito desse material. Então, paciência.

Algumas coisas, no entanto, acendem o desconfiômetro mesmo quando comezinhas. Eu vejo como são as coisas no universo dos meus sogros, casal típico do interior que ainda acredita em lobisomem, e percebo o acerto da minha atitude. Eles são daqueles que dão mais ouvidos aos curiosos que aos especialistas, aos inquilinos que aos advogados e, risco dos riscos, aos vizinhos que aos médicos, dado o grau de proximidade e consequente confiança. Certo: os circunstantes não fazem propriamente por mal, mas é preciso ter um mínimo de bom senso, o que não ocorre quando a recomendação vem de mim ou da patroa. Dizemos que alguém passa a vida inteira estudando para te receitar o remédio certo, enquanto o vizinho só sabe daquele chazinho mágico e daquela episódica melhora. Se o chazinho tiver propriedades curativas, deixe que o médico o diga. Nesses quesitos, eu sou muitíssimo bem disciplinado.

Mas admito que tem vezes que eu exagero, especialmente em coisas que me são caras, mas que não giram a roda universal. Algumas novidades que me são exibidas fazem com que eu acenda todos os alertas, externalizados por um muxoxo retorcido e uma única sobrancelha soerguida. Mas há no meu interior um diabinho experimental que combate meu anjinho conservador, e acabo me convencendo de que devo ao menos fazer um teste. Refiro-me a café. No caso, aos relativamente novos drip coffees.

Trata-se de uma dose individual já acondicionada em um elemento filtrante, mormente fabricado em TNT, o curioso tecido não-tecido, e que só precisa de água quente e recipiente para ser preparado.


O método evidentemente já vem com os grãos moídos e depositados em um envelope que necessita ser destacado para fazer o encaixe e possibilitar o acréscimo de água quente.

Ele também vem com aletas de papel cartão destacáveis que, sendo flexíveis, se encaixam em uma gama razoável de bocais.

 

Nome do utensílio: Drip coffee

Tipo de técnica: Percolação 

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: de acordo com o envelope adquirido

Dinâmica: Envelope de TNT pronto. Destaca-se a parte superior e estende-se as aletas até a borda da xícara, percolando água fervente

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: baixo

Mas por que a desconfiança? Quem está acostumado com o mundo de cafés especiais sabe que há um certo cuidado no preparo da bebida que vai além daquele dedicado a cafés de boteco. Alguns desses cuidados não são aplicáveis a esse modelo de extração, o que liga os filtros de quem demora mais do que cinco minutos para fazer um bom café: a primeira coisa é que não dá para fazer o escalde do filtro, que garante três coisas. A saturação do material impede que o filtro “roube” óleos do líquido, a água quente aquece o sistema como um todo e remove resíduos que influenciam no sabor da bebida final. Outro fator é que o café já vem moído, o que favorece a oxidação do pó e diminui sua qualidade. Por fim, a espessura já determinada diminui o espaço por onde a criatividade do barista anda; é aquela receita e punto, finito.

Isso tudo me faz pensar em balizamento de limites que, como vocês já viram nesta série, não são do meu agrado. Mas ser ponderado implica em observar os vários lados de uma questão, e, neste caso, é preciso primeiro pensar nas vantagens e, a posteriori, experimentar, por evidente. No primeiro exercício, temos a praticidade de poder carregar o café no bolso, o que é útil em momentos em que você não tem a seu dispor mais do que uma xícara e um pouco de água quente. Além disso, um bom café é um bom café mesmo quando não obtido em suas melhores condições, superando a zurrapa que conseguiríamos por aí. O negócio é passar para o segundo exercício crítico, que é pegar um envelopinho desses e preparar. Uma vez escoado, o café prova-se digno, com sabor preservado, embora não chegando ao ideal. 

Então, sopesados prós e contras, percebemos o quanto a alternativa é válida, e notamos que o preconceito acaba quando olhamos mais acuradamente a realidade. Às vezes perdemos coisas boas e boas oportunidades por bobagens

Pois então não devemos ser desconfiados? Claro que não se trata disso. Existe um nível natural e saudável de desconfiança, que, como em tudo na vida, é prejudicial quando excessivo. O grande ponto é quando você firma convicções que vão se provando infidedignas, e aí é visgo de jaca mole: nunca mais desgruda da pele. A não ser após um looooooongo processo de reflexão.

Mas há que se fazer distinções. Há níveis de criticidade diferentes entre modelos de ponto de vista, e isso faz toda a diferença do mundo no momento de estabelecer certezas. Há coisas que cremos, há coisas que sabemos. E nem sempre elas são possíveis, mesmo sendo cômodas.

O exemplo mais farto vem das religiões. Boa parte da confiança que temos em uma divindade não está no âmbito do provável, mas de uma crença que pode se basear nos mais diferentes motivos. Você pode não ter tido um único contato que se materialize, mas ainda assim acreditar piamente. E, por mais que você diga o contrário, o fato é que você crê, mas você não sabe.

Como assim? É que crer e saber são coisas distintas. Crer é baseado em confiança, enquanto saber é sinônimo de conhecer, de ter comprovações e absolutas certezas.

Então, só podemos dizer que quem sabe é o ateu? Não, a sua condição é exatamente igual à do religioso. Também o ateu tem uma crença - a de que não existem divindades. Normalmente adquire isso pela via de quem não alcança provas, e, não as havendo, conclui pela inexistência, assim como creio que não tem açúcar em casa quando não o acho no armário. Mas também aí não se pode enquadrar uma certeza, já que não existe completude de conhecimento nesse mundão de meu deus. E, ok, pode ser que uma deidade não faça manifestações físicas, mas ainda assim ele está lá, guiando os caminhos do universo, por mais tortuosos que pareçam. Também aqui se crê, mas não se sabe.

Então, o que resta? Talvez, reconhecer que não há como se desvencilhar da crença. Ou, mais simplesmente, entender que há certas coisas em que não conseguiremos colocar nosso conhecimento. E isso é muito comum.

A posição tem um nome, que é agnosticismo. Seu surgimento tem algumas curiosidades, e nós vamos a elas.

Sabemos que a posição filosófica preponderante incluiu, por muito tempo, a existência de divindades. No ocidente, a teologia cristã traz um deus único, onipotente, onipresente e onisciente, todo-poderoso. Por muito tempo, não houve ânimo em se contrapor a essa tendência, seja por seu consenso, seja pelo risco de assumir o contrário. Ocorre que o transcurso histórico veio, paulatinamente, trazendo novidades ao pensamento, de modo a diminuir a importância das deidades e aumentar a confiança na ciência.

Isso tudo demarca uma divisória, onde de um lado estão aqueles que buscam conciliar os desenvolvimentos científicos com a obra divina, e do outro estão os que passam a entender que a natureza se explica por si só, sem necessidades de intervenções. Excluídos os negacionistas, resta uma terceira via, a via dos que não conseguem chegar a uma conclusão, ou seja, que não chegam a invalidar as teses do deus presente na natureza, nem deixam de concordar com sua autossuficiência. Entre ambos, estão os agnósticos.

Por que entre ambos? Porque é possível tanto ser religioso e agnóstico, quanto ateu e agnóstico, ao mesmo tempo. Sendo coisas diferentes, podem ser concomitantes.

Vamos falar um pouco do termo, primeiramente. Ele surge em fins do século XIX, no auge das discussões que mencionei, especialmente no âmbito da fervilhante teoria da Evolução, que batia muito dolorosamente nos dogmas de criação até então preponderantes, por colocá-los muito claramente na condição de mitos*. Teístas e ateus se defrontam através das apresentações de evidências e de suas contestações, embora a questão fosse mais delicada do que uma dicotomia cruzada entre ser favorável à tese da evolução e ser ateu versus ser contrário à mesma e ser religioso. Entre as duas posições baseadas em crença, surge a suspeita pela via do conhecimento. Thomas Huxley, intelectual inglês partidário das ideias darwinianas, era conhecido como “Buldogue de Darwin”. Por um lado, o afamado cientista era um homem relativamente recluso, pouco dado ao debate, e mais concentrado em realizar seus estudos do que os discutir em praça pública. Por outro, encontrou no filósofo o debatedor ideal de seus princípios. Eloquente e em plena adesão ao ideário evolucionista, tomou a frente do confronto público com os detratores dos novos princípios, e, segundo se conta, com bastante êxito.

Sendo um opositor dos criacionismos, era natural que se lhe fosse questionada a posição religiosa, mas não havia uma resposta rápida, resumida em uma única palavra que a sintetizasse. Era sempre aquele longo desfiar de “não acredito, nem desacredito”. Para tanto, cunhou o termo “agnóstico”. Sua origem se dava no gnosticismo, uma seita que funde filosofia platônica e religiosidade cristã que afirmava ser o mundo material uma emanação imperfeita de um demiurgo, uma espécie de divindade menor coligada ao mal, o que explicaria tantos defeitos no universo criado. Entretanto, existe uma participação na divindade superior em cada ser vivo, na forma de espírito, e é pelo conhecimento da existência desse deus superior que se consegue a libertação do mundo material, o que explica o nome da corrente. Gnóstico, portanto, é aquele que crê porque conhece.

Se o gnosticismo diz que é pelo conhecimento que se chega a deus, é pela assunção de sua impossibilidade que Huxley trouxe o seu termo, o agnosticismo. Gnose, em grego, significa “conhecer”, o termo a é sua inversão de sinal, sua negação. Portanto, agnóstico é aquele que afirma ser impossível saber se existem divindades ou não.

Isso tudo se deve à impossibilidade de colocar deidades em tubos de ensaio. Sempre é possível imaginar que há um deus por trás de qualquer movimento do universo, e é impossível negar. E aí você crê ou não nisso, mas saber… não se sabe. Por isso, a resposta pode ser cética, de suspender o juízo; pode ser de confiança, de fé, de crença na existência, ou de descrença, sendo tudo processos naturais independentes de vontades, mas saber… é isso que Huxley chamou de agnosticismo, sua posição epistemológica diante da presença ou não de uma divindade nos processos evolutivos.

A questão é que temos um confronto entre lógica e epistemologia nesse tema. Isso se deve ao fato de que podemos ter doxa e episteme, ou seja, opinião e conhecimento. Há inúmeras coisas que podemos não saber, mas que podemos formar uma opinião e acreditar nela. Quando pensamos em termos científicos, a opinião é um problema, porque dela parte inúmeros desvios e vieses, mas o fato concreto e inevitável é que ela existe e muito, mas muito mais presente em nossos quotidianos do que um conhecimento sintetizado e consagrado. Mais ainda, por vezes confundimos ambos, e assumimos opiniões com verdades. Aí, a porca torce o rabo.

Por essa razão, é possível ser ateu e agnóstico ao mesmo tempo, assim como é possível ser religioso e agnóstico também. Porque ainda que não saibamos se uma divindade existe ou não, podemos acreditar que sim ou que não, diante do que é possível ter de evidências. E, neste sentido, pouco importa se são tratados científicos ou evidências anedóticas. O que importa aqui é a sensação pessoal, um convencimento que se faz aos poucos ou uma experiência repentina.

E isso nos possibilita pensar em graduações de crença. Eu, assim como Huxley, posso ter um padrão de desconhecimento assumido, mas analisar a credibilidade de cada divindade que me é apresentada, bem como da lógica interna de seus aspectos, como as exigências que faz, a moralidade que sustenta e assim por diante. Religiões abraâmicas, por exemplo, são montanhas de contradições, e, para que eu volte a crer nelas, precisarei de evidências muito fortes. Já crenças budistas ou religiões com deuses mais difusos tem uma coerência interna mais sofisticada e com menos argumentos autoritários, o que é um convite para uma aceitação maior. Aplicados a um percentual de crença, dá para dizer que os primeiros se aproximam de zero, enquanto os segundos são mais dignos de consideração, até porque eles são desnecessários na construção da realidade. E é isso: quanto mais necessário um deus, menos crível ele é.

Repetindo algo que já falei por esses textos, a partir do momento que eu coloquei o ceticismo ao serviço do meu conhecimento, percebi que tudo se acomodava melhor sem divindades. Mortes ocorrem porque doenças existem, e não porque Deus quer. Terremotos devastam porque são desequilíbrios naturais, e não castigos impostos para populações inteiras. As espécies se transformam porque sofrem pressões seletivas, e não pelo capricho da deidade de plantão. Tudo fica mais coerente, mais factível, mais compreensível sem a explicação divina. Mesmo que não se consiga obter esclarecimentos pela via da ciência, colocar a divindade na lacuna não ajuda nada, só cria uma narrativa que continua sem comprovação.

No final das contas, tendo a acreditar (vejam vocês) que somos todos agnósticos. Costumam dizer que não existe ateu em um avião caindo, assim como um religioso enfartando procura um hospital, e não um templo. A contradição está em apelar para uma entidade em que não se acredita, ou em desprezá-la no momento em que mais se precisa. Desculpem-me ambos, mas em momentos de desespero não há espaço nem para a racionalidade, nem para a fé. Há aquilo que temos de melhor ao nosso alcance.

É a maneira como penso, e não quero ofender ninguém com isso. Assim como diante da novidade de um café já moído e pronto para a água, também tenho muita dificuldade em absorver coisas que não posso experimentar. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Textinho rápido sobre o tema, interessante por se tratar da primeira utilização do termo.

HUXLEY, Thomas. Agnosticismo. Blumenau: Kindle, 2023. E-book.


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