(Bairrismo é legal? Depende)
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”
Fernando Pessoa, sob o heterônimo Alberto Caeiro
Olá!
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Meus filhos nasceram na Aclimação. A patroa não é de São
Paulo, nasceu na mesma São Caetano que meu filho mais velho, falecido ainda
criança. Do pessoal do serviço, um é do Tatuapé e outra de Itaquera, os outros
são de outras cidades. Nenhum deles tece loas ao lugar onde nasceu, nem mesmo
onde mora. Não é costume nesta cidade arrotar com gosto ser do Cambuci, ou da
Vila Penteado, ou ainda do Rio Pequeno. Essas coisas passam praticamente
batidas, e você convive anos com uma pessoa sem saber bem de onde ela é. Mas eu
sou da Mooca. Eu nasci na Mooca, na Rua Sebastião Preto, e tenho minha certidão
no cartório que fica bem na frente da igreja do Bom Conselho. A parentegem estava
lá em peso: a Tia Maria morava na Rua do Acre; o Tio Chico, na Rua Javari, e o
Tio Rafa na Capitães-Mores. Já meu avô percorreu o bairro todo com sua casa e
com sua oficina: Tamarataca, Madre de Deus, Caetano Pinto, Campineiros e
terminando seus dias na Rua do Oratório, onde alugava o salão da Kathy, uma
senhora alemã que mandava pacotes de doces divinos, melados a ponto de dar
diabetes mentais. Sou da Mooca, e todo mundo que lá nasceu ou mora proclama o
fato a alta voz.
Alguns moradores de Santa Cecília, Vila Madalena e Ipiranga
se ufanam dos bairros em que nasceram. Um pouco pela tradição, muito pelo que
representam, são lugares que carregam uma espécie de distintivo dos que lá
habitam, como os apartamentos com chão de tacos, os becos grafitados e a vista
para o Museu, respectivamente. Mas quando pensamos em São Paulo, e disso
falamos de mais de doze milhões de habitantes, nenhum bairro é mais bairrista
do que a Mooca.
Esse é o tipo de fenômeno que é difícil de explicar. De
fato, a Mooca é um bairro ainda aprazível, com bons remanescentes dos seus
tempos operários, como as casinhas da Rua do Hipódromo, as insistentes fábricas
ao longo da ferrovia, os casarões da Paes de Barros e até mesmo dos cortiços da
parte baixa, para onde a maior parte dos imigrantes acorreu em sua chegada ao
Brasil. Mas que não é assim tão diferente de outros bairros para virar um
distintivo tão peculiar.
A Mooca tem suas personalidades, seus edifícios, seus
abundantes restaurantes, cantinas, pizzarias, trattorias, botecos, suas mazelas
e suas venturas. Tudo isso há em outros lugares, mas a Mooca tem um time. A
Mooca tem o Juventus.
A história do Juventus se mistura à própria história do
bairro, e é um pequeno compêndio do que é a Mooca. A origem italiana dos
proprietários do Cotonifício Crespi é o único ponto em comum com os operários
que por lá fundaram um time com o beneplácito de seus patrões. Ainda hoje quem
passa pelas bandas do pequeno estádio da Rua Javari vê os testemunhos das
pequenas casinhas que ladeavam a imensa fábrica têxtil. A indústria, as casas e
o campo eram o resumo da vida de uma população muito pobre, que ainda trabalhava
praticamente sem legislação trabalhista e pouca proteção prática em serviços
extenuantes e perigosos. Lembro de muitos dos meus velhos parentes que exibiam
cicatrizes com um certo orgulho, porque eram, na verdade, sinais de
sobrevivência, um certo heroísmo frente àqueles que sucumbiram, de quem contam
fartas histórias. Isso ocorria em todos os bairros operários, mas a Mooca tinha
essa espécie de comunhão de comunidades que a tornou singular.
O campo do cotonifício virou um tipo de refúgio único de
lazer para onde desembocavam todos esses trabalhadores, e lá criaram um
movimento forte de identidade. Havia outros campos, é verdade, mas o clube
resultante, uma fusão dos times de Turim, com as cores de um e o nome do outro,
virou um amálgama para as classes sociais que giravam em torno da fábrica.
Afinal de contas, a Mooca é lembrada como bairro de italianos, mas lá havia os espanhóis,
os armênios, os portugueses, os gregos, os alemães, os russos, os libaneses.
Tudo isso porque lá estava a Hospedaria dos Imigrantes, hoje transformada em
espaço cultural, primeiro abrigo daqueles que vinham do mundo todo para tentar
sua sorte nos trópicos. Não encontraram o bairro vazio, entretanto, já que lá
havia várias comunidades afrodescendentes que cercavam o centro e os
nordestinos que habitavam cortiços “especializados” na beira do Tamanduateí.
Isso tem a ver com criação de identidades. Uma boa parte vem
da nossa busca por distintivos pessoais, e outra por símbolos que nos moldam
como somos. Um mooquense dificilmente é torcedor do Juventus como time
principal, mas também dificilmente deixa de adotá-lo como uma referência à sua
procedência. E por quê?
É que não somos unívocos. Temos uma identidade genética, mas
também temos uma identidade adquirida. Da primeira, em geral não temos muito o
que mudar, porque está em nossa constituição física, com hereditariedades imperativas.
É aquela história de que não adianta comer fermento; o baixinho é baixinho e
pronto. Já com relação ao ambiente que nos cerca, ele nos torna boa parte do
que somos porque é desejável, ou mesmo necessário, ter conformidade. E isso faz
com que tenhamos orgulho ou vergonha de acordo com que o consenso estabelece.
Quando você vem no domingo de manhã para a região da Javari,
vê uma multidão de grená se encaminhando para o antiquíssimo estádio, com sua
área coberta sui generis e arquibancada em concreto armado. É uma estrutura
simples, que os apaixonados não querem modificar de jeito algum, embora fosse
desejável que se tornasse mais hodierno, caso se queira evolução. Mas as faixas
da torcida dizem “ódio eterno ao futebol moderno”, não porque não se queira que
o time cresça, mas porque é o grande catalisador dessa identidade. É muito
diferente estar lá, porque os adversários não são chamados para a briga. Pelo
contrário até, nos botequins próximos juventinos se misturam a nacionalinos,
lusos, interioranos dos mais diferentes locais e bebem seus gorós antes e
depois das contendas, sem que isso vire um campo de batalha como acontece com
torcidas maiores, e sem que isso represente ser menos aguerrido. É um
diferencial que demonstra hospitalidade do clube e do bairro, e isso agrega. Os
frequentadores observam isso e tomam como valor, de modo a arraigar mais e mais
tal comportamento.
A torcida é como uma tropa de um exército de Brancaleone,
aquele de quem pouco se espera, mas que muito entrega. O apelido do Juventus é
Moleque Travesso não à toa. Não foi uma mascote forçada, como os leões
espalhados Brasil afora, mas ganho pela torcida e pela imprensa, por aprontar
suas artes contra os grandes e perturbar sua paz, principalmente no seu grund
da Rua Paulo, a Rua Javari, o pequenino campo do cotonifício.
Minha identificação com a Mooca não poderia ser mais
vinculada ao Juventus do que já é. Da rua em que nasci, são dez minutos a pé
até o clube social, construído no antigo varjão conhecido como Tchipum. Já do
campo, duas casas à direita e se chega ao lar do Zio Chico e da prima Nélide,
onde volta e meia caem bolas chutadas pelos beques fazendeiros. Nos últimos
tempos, enquanto o pessoal procurava lugares cada vez mais longe para
estacionar, eu colocava o possante espertamente na porta da garagem da prima,
quase zombeteiro, para depois pegar um macarrão com polpetta com a
veneranda parenta. É certamente o estádio onde eu mais assisti futebol na vida,
favorecido por todos esses fatores.
Dizem que a Mooca tem um time, mas também o Juventus tem um
bairro, fenômeno raro nas terras de Pindorama. Um tem orgulho do outro, mesmo
nos momentos de baixa, porque não é preciso sair da Mooca para encontrar o símbolo
de guerra daquela gente. O Corinthians não é do Tatuapé, o Palmeiras não é da
Água Branca, o São Paulo não é do Morumbi. Eles são da cidade, do país, quiçá
do mundo, mas só o Juventus é da Mooca, e ela, coincidência ou não, é o bairro
mais bairrista de São Paulo.
Há um porém oculto, que precisa ser tratado com cuidado. O
bairrismo é uma aldeia que fica no meio do caminho que leva à xenofobia, e a
estrada se alarga após passar pelo seu acesso. Isso porque o sentimento de
identidade, por si só, não é ruim. O problema é quando adquirimos a sensação de
que ninguém que vem de fora é digno de compartilhar o nosso espaço. A Mooca,
assim como todo o Brasil, foi construída não só pelos imigrantes italianos, mas
pelos índios que lá já estavam e pelos negros que foram trazidos na marra,
assim como por outros europeus e pelos asiáticos, especialmente do Oriente
Médio. Quem vem de fora, não percebe tanta diferença com relação a outros
bairros tradicionais, então é na história e nas tradições que a Mooca se torna
quem é. E ela se escreve nos ciclos de gente que vem e que vai, comprovando o dinamismo
da existência humana, seja no plano individual, seja no âmbito das coletividades.
Se o bairrismo do mooquense se mantiver nos limites identitários, teremos um
povo que se orgulha, que é farrista, que fala alto e gosta de onde vive, que
cuida de suas ruas e de sua vizinhança; se passar disso, será perdida toda aura
de empatia que desemboca até mesmo no Juventus.
Tomados esses cuidados, e tirando o discurso passional tão
típico dos italianos, algumas coisas nos fazem desconfiar dos elementos
motivadores para o bairrismo deste local. A Mooca é muito antiga, com seus
primeiros registros históricos surgindo apenas dois anos após a fundação de São
Paulo. É povoada de fábricas e suas consequentes vilas operárias, o que dá um
certo fechamento nas comunidades que se formam. Esse é um fato que se deu em
outros bairros também, como o Brás e o Bom Retiro, mas, por diferentes motivos,
as coletividades desses locais foram se esgarçando, modificando e dispersando,
com remanescentes diferentes daqueles que lá estavam no processo de industrialização.
Na Mooca, que se manteve fabril por mais tempo, e que não teve nenhum evento
causador de diásporas (como a construção do metrô ou de alguma rodoviária
inútil), as mesmas comunidades se mantiveram mais intocadas, e, com isso,
aquele clima mais familiar, de todo mundo se conhecer há gerações. Além disso,
e mais uma vez pela origem industrial do bairro, foi aqui que movimentos
anarquistas e sindicalistas chegaram com mais força, o que reforça o sentimento
de pertencimento que nasceu das células e se espraiou para os botequins e
praças; para os pontos de convívio, em suma – indo parar no futebolzinho
sagrado do fim de semana. E isso causa a sensação de um mundo à parte, de
cidade dentro da cidade. Quem é da Mooca se considera mooquense antes de ser
paulistano. Para os mais exaltados, antes de ser brasileiro. O Moleque subsiste
porque agrega todos esses valores, é a bandeira grená que esse povo carrega
para gritar “orra, meu” pela cidade toda.
Inclusive eu. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Publicação oficial patrocinada pelo clube:
AGARELLI, Ângelo; GALLUPPO, Fernando; ROMANO NETTO, Vicente.
Glórias de um Moleque Travesso. São Paulo: BB Editora, 2012.
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