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quarta-feira, 4 de junho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o diferenciado Juventus e a inexplicável força da identidade

(Bairrismo é legal? Depende)

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

Fernando Pessoa, sob o heterônimo Alberto Caeiro

 

Olá!

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Meus filhos nasceram na Aclimação. A patroa não é de São Paulo, nasceu na mesma São Caetano que meu filho mais velho, falecido ainda criança. Do pessoal do serviço, um é do Tatuapé e outra de Itaquera, os outros são de outras cidades. Nenhum deles tece loas ao lugar onde nasceu, nem mesmo onde mora. Não é costume nesta cidade arrotar com gosto ser do Cambuci, ou da Vila Penteado, ou ainda do Rio Pequeno. Essas coisas passam praticamente batidas, e você convive anos com uma pessoa sem saber bem de onde ela é. Mas eu sou da Mooca. Eu nasci na Mooca, na Rua Sebastião Preto, e tenho minha certidão no cartório que fica bem na frente da igreja do Bom Conselho. A parentegem estava lá em peso: a Tia Maria morava na Rua do Acre; o Tio Chico, na Rua Javari, e o Tio Rafa na Capitães-Mores. Já meu avô percorreu o bairro todo com sua casa e com sua oficina: Tamarataca, Madre de Deus, Caetano Pinto, Campineiros e terminando seus dias na Rua do Oratório, onde alugava o salão da Kathy, uma senhora alemã que mandava pacotes de doces divinos, melados a ponto de dar diabetes mentais. Sou da Mooca, e todo mundo que lá nasceu ou mora proclama o fato a alta voz.

Alguns moradores de Santa Cecília, Vila Madalena e Ipiranga se ufanam dos bairros em que nasceram. Um pouco pela tradição, muito pelo que representam, são lugares que carregam uma espécie de distintivo dos que lá habitam, como os apartamentos com chão de tacos, os becos grafitados e a vista para o Museu, respectivamente. Mas quando pensamos em São Paulo, e disso falamos de mais de doze milhões de habitantes, nenhum bairro é mais bairrista do que a Mooca.

Esse é o tipo de fenômeno que é difícil de explicar. De fato, a Mooca é um bairro ainda aprazível, com bons remanescentes dos seus tempos operários, como as casinhas da Rua do Hipódromo, as insistentes fábricas ao longo da ferrovia, os casarões da Paes de Barros e até mesmo dos cortiços da parte baixa, para onde a maior parte dos imigrantes acorreu em sua chegada ao Brasil. Mas que não é assim tão diferente de outros bairros para virar um distintivo tão peculiar.

A Mooca tem suas personalidades, seus edifícios, seus abundantes restaurantes, cantinas, pizzarias, trattorias, botecos, suas mazelas e suas venturas. Tudo isso há em outros lugares, mas a Mooca tem um time. A Mooca tem o Juventus.

A história do Juventus se mistura à própria história do bairro, e é um pequeno compêndio do que é a Mooca. A origem italiana dos proprietários do Cotonifício Crespi é o único ponto em comum com os operários que por lá fundaram um time com o beneplácito de seus patrões. Ainda hoje quem passa pelas bandas do pequeno estádio da Rua Javari vê os testemunhos das pequenas casinhas que ladeavam a imensa fábrica têxtil. A indústria, as casas e o campo eram o resumo da vida de uma população muito pobre, que ainda trabalhava praticamente sem legislação trabalhista e pouca proteção prática em serviços extenuantes e perigosos. Lembro de muitos dos meus velhos parentes que exibiam cicatrizes com um certo orgulho, porque eram, na verdade, sinais de sobrevivência, um certo heroísmo frente àqueles que sucumbiram, de quem contam fartas histórias. Isso ocorria em todos os bairros operários, mas a Mooca tinha essa espécie de comunhão de comunidades que a tornou singular.

O campo do cotonifício virou um tipo de refúgio único de lazer para onde desembocavam todos esses trabalhadores, e lá criaram um movimento forte de identidade. Havia outros campos, é verdade, mas o clube resultante, uma fusão dos times de Turim, com as cores de um e o nome do outro, virou um amálgama para as classes sociais que giravam em torno da fábrica. Afinal de contas, a Mooca é lembrada como bairro de italianos, mas lá havia os espanhóis, os armênios, os portugueses, os gregos, os alemães, os russos, os libaneses. Tudo isso porque lá estava a Hospedaria dos Imigrantes, hoje transformada em espaço cultural, primeiro abrigo daqueles que vinham do mundo todo para tentar sua sorte nos trópicos. Não encontraram o bairro vazio, entretanto, já que lá havia várias comunidades afrodescendentes que cercavam o centro e os nordestinos que habitavam cortiços “especializados” na beira do Tamanduateí.

Isso tem a ver com criação de identidades. Uma boa parte vem da nossa busca por distintivos pessoais, e outra por símbolos que nos moldam como somos. Um mooquense dificilmente é torcedor do Juventus como time principal, mas também dificilmente deixa de adotá-lo como uma referência à sua procedência. E por quê?

É que não somos unívocos. Temos uma identidade genética, mas também temos uma identidade adquirida. Da primeira, em geral não temos muito o que mudar, porque está em nossa constituição física, com hereditariedades imperativas. É aquela história de que não adianta comer fermento; o baixinho é baixinho e pronto. Já com relação ao ambiente que nos cerca, ele nos torna boa parte do que somos porque é desejável, ou mesmo necessário, ter conformidade. E isso faz com que tenhamos orgulho ou vergonha de acordo com que o consenso estabelece.

Quando você vem no domingo de manhã para a região da Javari, vê uma multidão de grená se encaminhando para o antiquíssimo estádio, com sua área coberta sui generis e arquibancada em concreto armado. É uma estrutura simples, que os apaixonados não querem modificar de jeito algum, embora fosse desejável que se tornasse mais hodierno, caso se queira evolução. Mas as faixas da torcida dizem “ódio eterno ao futebol moderno”, não porque não se queira que o time cresça, mas porque é o grande catalisador dessa identidade. É muito diferente estar lá, porque os adversários não são chamados para a briga. Pelo contrário até, nos botequins próximos juventinos se misturam a nacionalinos, lusos, interioranos dos mais diferentes locais e bebem seus gorós antes e depois das contendas, sem que isso vire um campo de batalha como acontece com torcidas maiores, e sem que isso represente ser menos aguerrido. É um diferencial que demonstra hospitalidade do clube e do bairro, e isso agrega. Os frequentadores observam isso e tomam como valor, de modo a arraigar mais e mais tal comportamento.

A torcida é como uma tropa de um exército de Brancaleone, aquele de quem pouco se espera, mas que muito entrega. O apelido do Juventus é Moleque Travesso não à toa. Não foi uma mascote forçada, como os leões espalhados Brasil afora, mas ganho pela torcida e pela imprensa, por aprontar suas artes contra os grandes e perturbar sua paz, principalmente no seu grund da Rua Paulo, a Rua Javari, o pequenino campo do cotonifício.

Minha identificação com a Mooca não poderia ser mais vinculada ao Juventus do que já é. Da rua em que nasci, são dez minutos a pé até o clube social, construído no antigo varjão conhecido como Tchipum. Já do campo, duas casas à direita e se chega ao lar do Zio Chico e da prima Nélide, onde volta e meia caem bolas chutadas pelos beques fazendeiros. Nos últimos tempos, enquanto o pessoal procurava lugares cada vez mais longe para estacionar, eu colocava o possante espertamente na porta da garagem da prima, quase zombeteiro, para depois pegar um macarrão com polpetta com a veneranda parenta. É certamente o estádio onde eu mais assisti futebol na vida, favorecido por todos esses fatores.

Dizem que a Mooca tem um time, mas também o Juventus tem um bairro, fenômeno raro nas terras de Pindorama. Um tem orgulho do outro, mesmo nos momentos de baixa, porque não é preciso sair da Mooca para encontrar o símbolo de guerra daquela gente. O Corinthians não é do Tatuapé, o Palmeiras não é da Água Branca, o São Paulo não é do Morumbi. Eles são da cidade, do país, quiçá do mundo, mas só o Juventus é da Mooca, e ela, coincidência ou não, é o bairro mais bairrista de São Paulo.

Há um porém oculto, que precisa ser tratado com cuidado. O bairrismo é uma aldeia que fica no meio do caminho que leva à xenofobia, e a estrada se alarga após passar pelo seu acesso. Isso porque o sentimento de identidade, por si só, não é ruim. O problema é quando adquirimos a sensação de que ninguém que vem de fora é digno de compartilhar o nosso espaço. A Mooca, assim como todo o Brasil, foi construída não só pelos imigrantes italianos, mas pelos índios que lá já estavam e pelos negros que foram trazidos na marra, assim como por outros europeus e pelos asiáticos, especialmente do Oriente Médio. Quem vem de fora, não percebe tanta diferença com relação a outros bairros tradicionais, então é na história e nas tradições que a Mooca se torna quem é. E ela se escreve nos ciclos de gente que vem e que vai, comprovando o dinamismo da existência humana, seja no plano individual, seja no âmbito das coletividades. Se o bairrismo do mooquense se mantiver nos limites identitários, teremos um povo que se orgulha, que é farrista, que fala alto e gosta de onde vive, que cuida de suas ruas e de sua vizinhança; se passar disso, será perdida toda aura de empatia que desemboca até mesmo no Juventus.

Tomados esses cuidados, e tirando o discurso passional tão típico dos italianos, algumas coisas nos fazem desconfiar dos elementos motivadores para o bairrismo deste local. A Mooca é muito antiga, com seus primeiros registros históricos surgindo apenas dois anos após a fundação de São Paulo. É povoada de fábricas e suas consequentes vilas operárias, o que dá um certo fechamento nas comunidades que se formam. Esse é um fato que se deu em outros bairros também, como o Brás e o Bom Retiro, mas, por diferentes motivos, as coletividades desses locais foram se esgarçando, modificando e dispersando, com remanescentes diferentes daqueles que lá estavam no processo de industrialização. Na Mooca, que se manteve fabril por mais tempo, e que não teve nenhum evento causador de diásporas (como a construção do metrô ou de alguma rodoviária inútil), as mesmas comunidades se mantiveram mais intocadas, e, com isso, aquele clima mais familiar, de todo mundo se conhecer há gerações. Além disso, e mais uma vez pela origem industrial do bairro, foi aqui que movimentos anarquistas e sindicalistas chegaram com mais força, o que reforça o sentimento de pertencimento que nasceu das células e se espraiou para os botequins e praças; para os pontos de convívio, em suma – indo parar no futebolzinho sagrado do fim de semana. E isso causa a sensação de um mundo à parte, de cidade dentro da cidade. Quem é da Mooca se considera mooquense antes de ser paulistano. Para os mais exaltados, antes de ser brasileiro. O Moleque subsiste porque agrega todos esses valores, é a bandeira grená que esse povo carrega para gritar “orra, meu” pela cidade toda.

Inclusive eu. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Publicação oficial patrocinada pelo clube:

AGARELLI, Ângelo; GALLUPPO, Fernando; ROMANO NETTO, Vicente. Glórias de um Moleque Travesso. São Paulo: BB Editora, 2012.

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