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segunda-feira, 26 de junho de 2023

O café filosófico do quotidiano – existe uma pseudofilosofia?

(Não é tão fácil de demonstrar como a pseudociência, mas... é fácil, sim)

Olá!

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Venho conversando com vocês com base em minhas matinas cafeeiras já há algum tempinho. Para fazer um breve recuerdo, costumo levantar, todos os dias, e já preparar um cafezinho, para cumprir o rito e dar uma acordada melhor. É uma tarefa prosaica? Sim, mas que ganha detalhe e relevância na medida em que você concede importância a ela. Quem pede um café no boteco quer mais é tomar um susto para acordar, mas em casa o processo pode ser bem mais lento e cuidadoso. Por isso, aqueles que tem o café como objeto de pesquisa, costuma testar alternativas para obter o melhor de cada grão.

Parece papo de entendido, mas não é. É um hobby, coisa de quem gosta de alguma coisa e quer saber mais sobre ela. E isso pode te trazer surpresas. Uma vez, um fornecedor que me abastece com frequência me presenteou com um brinde: um filtro metálico. 

Embora fosse uma gentileza bacana, achei que deveria estar vinculada a um excesso de estoque ou a uma baixa qualidade. Mas ele é interessante, porque dispensa filtros de papel, o que, logo de cara, representa economia e ecologia. Confesso, contudo, que me despertou suspeitas - deve passar um trambolhão de pó. Não.

Só pareceu, mas não foi. Na verdade, o filtro metálico, feito de aço inoxidável (promete o fabricante) possui uma microfuração que é a pedra de toque do método. Com a água sendo despejada com parcimônia, a retenção de pó é bastante satisfatória, gerando borra aceitável no fundo nos copos. Mesmo assim, a uma primeira vista, parece se tratar de um método secundário, menos eficaz.


Parece, mas não é. O filtro metálico pode parecer menos eficiente, mas o fato é que ele permite algo que os filtros de pano e de papel não deixam acontecer. Como ambos são mais rigorosos, retém uma porção muito maior dos óleos existentes no café, e, por este motivo, o processo no filtro metálico permite um café bem mais encorpado, sem a quantidade de resíduos obtida em uma prensa francesa. Não é o melhor dos mundos para quem gosta de líquido límpido, mas é plenamente válido e funciona bem com certos grãos e moagens.


Nome do utensílio: Filtro metálico

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um filtro de aço inox, sem necessidade de qualquer outro elemento filtrante, é inserido no bocal de um decanter de boca larga. A água deve ser despejada lentamente, sempre em cima do pó, para não fazer by-pass indesejado pela área não coberta

Resíduos: quantidade razoável

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio/baixo

Parece, mas não é (alguém lembra do shampoo Denorex?). É exatamente sobre isso que eu falei nos meus dois últimos textos: um misticismo que quer parecer ciência, mas não é, e uma filosofia que luta para ser ciência, mas é difícil de provar meramente no discurso. A grande característica da pseudociência é querer parecer ciência, porque esta última goza, apesar dos ataques, de grande prestígio e consideração. Por isso, o distintivo colado no peito é uma credencial para que as pessoas as olhem com bons olhos, mesmo nestes tempos de pós-verdade em que tentam a relativizar.

O mesmo acontece com a filosofia acadêmica. Também é do mundo das universidades que vem a pesquisa séria, a revisão dos pares, a palavra com maior credibilidade. E também ela sofre as mesmas intempéries. Por isso, eu pergunto: com a Filosofia acontece a mesma coisa que com a Ciência? Existe uma pseudofilosofia como existe a pseudociência?

Ô. E como existe. Poder-se-ia dizer que a filosofia prescinde da prova, o que validaria qualquer forma de pensamento, mas isso seria uma falácia, porque filosofia é o pensamento rigoroso, bem encadeado, lógico e especulativo, mesmo que esteja voltado para a mais inexistente de todas as imaginações. Também pode-se dizer que o filosofar é tangível por todas as pessoas, que não existe um filósofo, mas uma atitude filosófica, o que torna a filosofia um campo muito mais aberto do que a ciência. Só que, embora haja uma carga de verdade nessas afirmações, normalmente são utilizadas para fins de desmerecimento ou de equiparação, justamente para obter a mesma confiabilidade, e, com isso, há frequente autointitulação de filosofia para áreas que não são filosóficas. Mas para identificar alguns dos maiores exemplos, primeiro precisamos fazer uma rápida distinção entre o vulgo e o fato.

Muitas pessoas afirmam possuir filosofias de vida. Este é um termo perfeitamente aceitável quando estamos no colóquio nosso do quotidiano, mas que, no fundo, nada tem a ver com filosofia de fato. Certo: já falei mais de uma vez neste espaço que é possível filosofar sobre qualquer coisa, mas isso não significa que qualquer coisa é filosofia. Quando falamos em “filosofia de vida”, na verdade estamos pensando na visão que formamos do mundo e na maneira como nos conduzimos dentro desse universo. A maneira com a qual nos relacionamos com a nossa realidade, como ela mexe com nossos anseios e o que esperamos dar e receber dela é influenciada por nossa sociedade e nossa cultura, e isso não é filosofia. Visão de mundo não é filosofia.

Até aqui, nada de falso, apenas um certo desvirtuamento aceitável da palavra. Mas isso serve para demonstrar como é maleável o mundo linguístico, a ponto de tornar difíceis as distinções objetivas do que se quer dizer. E isso concede uma certa licença no uso de termos que fazem torcer as tripas daqueles que professam uma fé. No meu caso, chamar certas coisas de filosofia me dá uma cãibra no cérebro.

Um dos casos eu já tratei há muito tempo atrás. Rememorando, não é incomum encontrar nas prateleiras das livrarias um compartilhamento de espaço entre livros de filosofia e de autoajuda. Isso está errado, muito errado. Filosofia, para receber o F maiúsculo, precisa encarar seu objeto de estudo da maneira mais desapaixonada possível, como se fosse uma Ciência. Embora os filósofos da práxis tenham a tendência a produzir efeitos práticos naquilo que preconizam, o fato é que, mesmo dentre eles, a prática já é uma conclusão filosófica, feita com idêntica neutralidade possível. Esse espírito é incompatível com a autoajuda, que, mesmo nas mais isentas das análises, não colocaria o pacote completo na frente de seu consulente, pelo simples motivo de que não vai ajudá-lo em nada.

Os autores da autoajuda, sem colocar o mérito de serem sérios ou não, faliriam seus negócios em cinco minutos se se munissem de geist filosófico autêntico. Ninguém espera comprar um livro de autoajuda para ler que a tendência do homem é retornar ao seu estado animal, como diria Hobbes, ou que o caminho para a felicidade é desprezar a cultura e as posses, como quereria Diógenes. Esses pensadores chegaram a essas conclusões sem se importar com a palatabilidade de seus escritos, o que é incompatível com quem quer fazer com que as pessoas olhem para dentro de si mesmas e extraiam coisas boas. A autoajuda não pode se dissociar de um otimismo que não é encontrável em qualquer filosofia. Aliás, em quase nenhuma.

É certo que há alguns sustentáculos que a autoajuda lança mão desde sempre. O “conhece-te a ti mesmo” socrático é usado à exaustão em obras como essa, mas com pouco conhecimento do seu significado real. Para começo, é de fato uma atribuição frequente feita de Platão para Sócrates, mas que vem da sabedoria antiga da mitologia grega, mais especificamente da entrada do templo de Delphos, onde os sacerdotes e sacerdotisas praticavam vaticínios, como era costume na época. Foi lá que Querefonte, um dos amigos mais achegados de Sócrates, perguntou à pitonisa de plantão quem era o homem mais sábio de toda a Grécia, obtendo o nome de seu amigo como resposta. Isso levou o patrono a imergir em intensas elucubrações, questionando-se como era possível tal atribuição. Afinal de contas, o filho da parteira não se achava mais sábio que um juiz ou poeta, e foi a partir dessa constatação que ele começou a sua investigação. O que ele encontrou o surpreendeu: os doutos, embora de fato fossem mestres em suas artes, eram absolutos ignorantes fora de seus ofícios, com o agravante de se acharem entendedores de todo e qualquer tema, como conseguiu comprovar seu parto de ideias, a maiêutica. Diante disso, Sócrates conclui que sua maior força está naquilo que ele pensava ser a pior fraqueza - tudo o que sei é que nada sei. Ao se confessar ignorante, Sócrates reconhece seu lugar no mundo e sua real dimensão - o verdadeiro sábio é aquele que reconhece sua necessidade de buscar eternamente o conhecimento.

O autoconhecimento de Sócrates é uma declaração de ignorância. Conhecer-se a si mesmo representa a assunção de que não se conhece nada. Isso lhes parece aderente à autoajuda? O fato é que esse tipo de livro, em geral, tem o mesmo efeito afetivo de um chá de camomila. Uma espécie de placebo mental, e, nesse sentido, pode fazer alguém se sentir melhor e viver melhor, principalmente quando derrubar algum tipo de bloqueio psíquico ou coisa parecida. Mas chamem pão de pão e pedra de pedra… Autoajuda não é filosofia.

As coisas podem ir além e ser piores, ao menos na minha visão. Existem pessoas que querem dar conformidade terapêutica à filosofia, e isso é temerário. Falo especialmente da assim chamada filosofia clínica.

Desde os tempos da faculdade minha cabeça dá nó quando eu tento fazer um casamento entre filosofia e clínica. Já se falava muito nessa pretensa aplicação, mais até do que hoje em dia, e eu pensava no que a filosofia clínica poderia ser diferente da psicologia. A resposta é fácil - preparação inespecífica. E estamos falando da área da saúde.

O que propõe a filosofia clínica? Grosso modo, que se utilize a base do conhecimento filosófico existente para resolver problemas de indivíduos, mormente aqueles de natureza psíquica. Caso alguém se apresente diante do terapeuta com questionamentos sobre o sentido da vida, serão coligidos conhecimentos de filósofos existenciais; se versarem sobre o caminho para a felicidade, talvez se recorram aos helenistas. Não há muitas regras nesse exercício.

Dizem que o principal diferencial da filosofia clínica é o foco no indivíduo, no sujeito que comparece à frente do terapeuta, que não se guia por manuais. Que cada história contada gera um atendimento personalizado, adequado para suas circunstâncias e especificidades. Isso para um psicólogo é uma ofensa, porque reduz sua atividade a um roteiro predeterminado, como se bastasse verificar qual melhor encaixe a uma prescrição e pronto, passar bem. A psicologia, meus amigos, quando o profissional é sério e seja qual for sua corrente, escuta seus pacientes e verifica qual o melhor procedimento a ser adotado, especificamente para uma pessoa que lhe procura, igualzinho promete a filosofia clínica, sem, no entanto, querer apresentar carta de exclusividade. 

Os assim autodenominados filósofos clínicos dizem que um dos seus grandes diferenciais é a não existência de pacientes, mas de partilhantes, aqueles que compartilham experiências e problemáticas com o terapeuta. Isso me lembra a virada administrativa do milênio, quando os funcionários de qualquer empresa passaram a ser chamados de colaboradores. Pessoas, em ambos os casos temos uma mera questão linguística. Tanto o colaborador quanto o funcionário trabalham em troca de um salário, podendo ser demitidos a critério de quem o denomina de um jeito ou de outro. Idem com a dicotomia paciente-partilhante. Se quem te procura quer ajuda, pode-se chamar de paciente, partilhante, consulente, confidente ou seja lá o que for, é apenas e tão somente uma palavra que designa exatamente a mesma coisa, talvez com o efeito placebo mental novamente funcionando, pelo fato de que a pessoa não se apresenta como um doente. Aliás, é uma técnica que veio da própria psicologia, já que os psicólogos humanistas já usavam o foco fora do acometimento.

Por essas e por outras, estou aqui a espera de que me demovam da minha posição, mas, para mim, filosofia clínica é mais uma empulhação, no naipe da radiestesia, aromaterapia, ozonioterapia e outros menos votados. Tem cheiro, cor, aspecto, formato e jeitão de pseudociência, seja por um caminho popperiano, seja pela moderna extensão de Hansson. A filosofia nunca teve propósito terapêutico, porque ela é uma análise sobre a realidade em si mesma, sem se importar em produzir curas. A filosofia NÃO PODE fazer isso. A filosofia de verdade está preocupada em demonstrar a coisa como ela é, independentemente de causar alegria ou depressão em quem a ouvir. Platão fala da morte de Sócrates, Heidegger fala do ser como ser-para-a-morte, Levinas fala da morte do outro como ferramenta de observação para a própria morte… a filosofia não tem esse conforto que uma terapia espera. A filosofia nunca foi terapêutica. Filosofia clínica não é filosofia.

Além disso, saúde mental é saúde como a corporal, e brincar com essas coisas costuma degringolar em catástrofes. A falta de método é flagrante e fico curioso em observar como um filósofo clínico trataria de casos urgentes, como uma séria ameaça de violência ou um pretenso suicida. Se a conduta nesses casos é indicar outro profissional, de que vale a filosofia clínica? Analisar comportamentos de um indivíduo e localizar suas causas e aplicar ajustes é psicologia, não filosofia. Neste caso, por que não consultar um psicólogo, que estudou quatro anos específicos de clínica? Por que vou perguntar a um literato sobre funilaria?

Este texto nasceu na esteira das discussões que quis levantar nos últimos dois posts desta série. Pseudofilosofia existe da mesma forma que pseudociência, e seu escopo mais aberto torna mais difícil sua detecção, mas há coisas tão flagrantes que permitem a nós aprender a tomar cuidado com coisas que parecem, mas não são. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de canal:

Eu ia recomendar alguma literatura a respeito de autoajuda e filosofia clínica, mas perdi totalmente a vontade. Dessa forma, achei melhor recomendar o canal do professor Filício Mulinari, que é bem bom e aborda esses temas com boas opiniões.

https://www.youtube.com/@AFilosofiaExplica

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