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sexta-feira, 20 de junho de 2025

O café filosófico do quotidiano – o agnosticismo que se combina com qualquer modo de crença

(Crer ou não crer, eis a questão) 

“O agnosticismo puro é impossível. O único agnosticismo verdadeiro é a ignorância. Porque para nos radicarmos no agnosticismo é-nos preciso um argumento para nos persuadir que a razão tem certos limites. Ora, quem observa pode parar; quem raciocina não pode parar.”

Fernando Pessoa

Olá!

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Dizem que os mineiros são desconfiados. Eu não sou mineiro, mas desconfiado eu sou. Então tudo o que é apresentado a mim como novidade, eu coloco entre parênteses. Não se trata de uma atitude fenomenológica, afinal, epoché não é coisa para o quotidiano, mas eu sou feito desse material. Então, paciência.

Algumas coisas, no entanto, acendem o desconfiômetro mesmo quando comezinhas. Eu vejo como são as coisas no universo dos meus sogros, casal típico do interior que ainda acredita em lobisomem, e percebo o acerto da minha atitude. Eles são daqueles que dão mais ouvidos aos curiosos que aos especialistas, aos inquilinos que aos advogados e, risco dos riscos, aos vizinhos que aos médicos, dado o grau de proximidade e consequente confiança. Certo: os circunstantes não fazem propriamente por mal, mas é preciso ter um mínimo de bom senso, o que não ocorre quando a recomendação vem de mim ou da patroa. Dizemos que alguém passa a vida inteira estudando para te receitar o remédio certo, enquanto o vizinho só sabe daquele chazinho mágico e daquela episódica melhora. Se o chazinho tiver propriedades curativas, deixe que o médico o diga. Nesses quesitos, eu sou muitíssimo bem disciplinado.

Mas admito que tem vezes que eu exagero, especialmente em coisas que me são caras, mas que não giram a roda universal. Algumas novidades que me são exibidas fazem com que eu acenda todos os alertas, externalizados por um muxoxo retorcido e uma única sobrancelha soerguida. Mas há no meu interior um diabinho experimental que combate meu anjinho conservador, e acabo me convencendo de que devo ao menos fazer um teste. Refiro-me a café. No caso, aos relativamente novos drip coffees.

Trata-se de uma dose individual já acondicionada em um elemento filtrante, mormente fabricado em TNT, o curioso tecido não-tecido, e que só precisa de água quente e recipiente para ser preparado.


O método evidentemente já vem com os grãos moídos e depositados em um envelope que necessita ser destacado para fazer o encaixe e possibilitar o acréscimo de água quente.

Ele também vem com aletas de papel cartão destacáveis que, sendo flexíveis, se encaixam em uma gama razoável de bocais.

 

Nome do utensílio: Drip coffee

Tipo de técnica: Percolação 

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: de acordo com o envelope adquirido

Dinâmica: Envelope de TNT pronto. Destaca-se a parte superior e estende-se as aletas até a borda da xícara, percolando água fervente

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: baixo

Mas por que a desconfiança? Quem está acostumado com o mundo de cafés especiais sabe que há um certo cuidado no preparo da bebida que vai além daquele dedicado a cafés de boteco. Alguns desses cuidados não são aplicáveis a esse modelo de extração, o que liga os filtros de quem demora mais do que cinco minutos para fazer um bom café: a primeira coisa é que não dá para fazer o escalde do filtro, que garante três coisas. A saturação do material impede que o filtro “roube” óleos do líquido, a água quente aquece o sistema como um todo e remove resíduos que influenciam no sabor da bebida final. Outro fator é que o café já vem moído, o que favorece a oxidação do pó e diminui sua qualidade. Por fim, a espessura já determinada diminui o espaço por onde a criatividade do barista anda; é aquela receita e punto, finito.

Isso tudo me faz pensar em balizamento de limites que, como vocês já viram nesta série, não são do meu agrado. Mas ser ponderado implica em observar os vários lados de uma questão, e, neste caso, é preciso primeiro pensar nas vantagens e, a posteriori, experimentar, por evidente. No primeiro exercício, temos a praticidade de poder carregar o café no bolso, o que é útil em momentos em que você não tem a seu dispor mais do que uma xícara e um pouco de água quente. Além disso, um bom café é um bom café mesmo quando não obtido em suas melhores condições, superando a zurrapa que conseguiríamos por aí. O negócio é passar para o segundo exercício crítico, que é pegar um envelopinho desses e preparar. Uma vez escoado, o café prova-se digno, com sabor preservado, embora não chegando ao ideal. 

Então, sopesados prós e contras, percebemos o quanto a alternativa é válida, e notamos que o preconceito acaba quando olhamos mais acuradamente a realidade. Às vezes perdemos coisas boas e boas oportunidades por bobagens

Pois então não devemos ser desconfiados? Claro que não se trata disso. Existe um nível natural e saudável de desconfiança, que, como em tudo na vida, é prejudicial quando excessivo. O grande ponto é quando você firma convicções que vão se provando infidedignas, e aí é visgo de jaca mole: nunca mais desgruda da pele. A não ser após um looooooongo processo de reflexão.

Mas há que se fazer distinções. Há níveis de criticidade diferentes entre modelos de ponto de vista, e isso faz toda a diferença do mundo no momento de estabelecer certezas. Há coisas que cremos, há coisas que sabemos. E nem sempre elas são possíveis, mesmo sendo cômodas.

O exemplo mais farto vem das religiões. Boa parte da confiança que temos em uma divindade não está no âmbito do provável, mas de uma crença que pode se basear nos mais diferentes motivos. Você pode não ter tido um único contato que se materialize, mas ainda assim acreditar piamente. E, por mais que você diga o contrário, o fato é que você crê, mas você não sabe.

Como assim? É que crer e saber são coisas distintas. Crer é baseado em confiança, enquanto saber é sinônimo de conhecer, de ter comprovações e absolutas certezas.

Então, só podemos dizer que quem sabe é o ateu? Não, a sua condição é exatamente igual à do religioso. Também o ateu tem uma crença - a de que não existem divindades. Normalmente adquire isso pela via de quem não alcança provas, e, não as havendo, conclui pela inexistência, assim como creio que não tem açúcar em casa quando não o acho no armário. Mas também aí não se pode enquadrar uma certeza, já que não existe completude de conhecimento nesse mundão de meu deus. E, ok, pode ser que uma deidade não faça manifestações físicas, mas ainda assim ele está lá, guiando os caminhos do universo, por mais tortuosos que pareçam. Também aqui se crê, mas não se sabe.

Então, o que resta? Talvez, reconhecer que não há como se desvencilhar da crença. Ou, mais simplesmente, entender que há certas coisas em que não conseguiremos colocar nosso conhecimento. E isso é muito comum.

A posição tem um nome, que é agnosticismo. Seu surgimento tem algumas curiosidades, e nós vamos a elas.

Sabemos que a posição filosófica preponderante incluiu, por muito tempo, a existência de divindades. No ocidente, a teologia cristã traz um deus único, onipotente, onipresente e onisciente, todo-poderoso. Por muito tempo, não houve ânimo em se contrapor a essa tendência, seja por seu consenso, seja pelo risco de assumir o contrário. Ocorre que o transcurso histórico veio, paulatinamente, trazendo novidades ao pensamento, de modo a diminuir a importância das deidades e aumentar a confiança na ciência.

Isso tudo demarca uma divisória, onde de um lado estão aqueles que buscam conciliar os desenvolvimentos científicos com a obra divina, e do outro estão os que passam a entender que a natureza se explica por si só, sem necessidades de intervenções. Excluídos os negacionistas, resta uma terceira via, a via dos que não conseguem chegar a uma conclusão, ou seja, que não chegam a invalidar as teses do deus presente na natureza, nem deixam de concordar com sua autossuficiência. Entre ambos, estão os agnósticos.

Por que entre ambos? Porque é possível tanto ser religioso e agnóstico, quanto ateu e agnóstico, ao mesmo tempo. Sendo coisas diferentes, podem ser concomitantes.

Vamos falar um pouco do termo, primeiramente. Ele surge em fins do século XIX, no auge das discussões que mencionei, especialmente no âmbito da fervilhante teoria da Evolução, que batia muito dolorosamente nos dogmas de criação até então preponderantes, por colocá-los muito claramente na condição de mitos*. Teístas e ateus se defrontam através das apresentações de evidências e de suas contestações, embora a questão fosse mais delicada do que uma dicotomia cruzada entre ser favorável à tese da evolução e ser ateu versus ser contrário à mesma e ser religioso. Entre as duas posições baseadas em crença, surge a suspeita pela via do conhecimento. Thomas Huxley, intelectual inglês partidário das ideias darwinianas, era conhecido como “Buldogue de Darwin”. Por um lado, o afamado cientista era um homem relativamente recluso, pouco dado ao debate, e mais concentrado em realizar seus estudos do que os discutir em praça pública. Por outro, encontrou no filósofo o debatedor ideal de seus princípios. Eloquente e em plena adesão ao ideário evolucionista, tomou a frente do confronto público com os detratores dos novos princípios, e, segundo se conta, com bastante êxito.

Sendo um opositor dos criacionismos, era natural que se lhe fosse questionada a posição religiosa, mas não havia uma resposta rápida, resumida em uma única palavra que a sintetizasse. Era sempre aquele longo desfiar de “não acredito, nem desacredito”. Para tanto, cunhou o termo “agnóstico”. Sua origem se dava no gnosticismo, uma seita que funde filosofia platônica e religiosidade cristã que afirmava ser o mundo material uma emanação imperfeita de um demiurgo, uma espécie de divindade menor coligada ao mal, o que explicaria tantos defeitos no universo criado. Entretanto, existe uma participação na divindade superior em cada ser vivo, na forma de espírito, e é pelo conhecimento da existência desse deus superior que se consegue a libertação do mundo material, o que explica o nome da corrente. Gnóstico, portanto, é aquele que crê porque conhece.

Se o gnosticismo diz que é pelo conhecimento que se chega a deus, é pela assunção de sua impossibilidade que Huxley trouxe o seu termo, o agnosticismo. Gnose, em grego, significa “conhecer”, o termo a é sua inversão de sinal, sua negação. Portanto, agnóstico é aquele que afirma ser impossível saber se existem divindades ou não.

Isso tudo se deve à impossibilidade de colocar deidades em tubos de ensaio. Sempre é possível imaginar que há um deus por trás de qualquer movimento do universo, e é impossível negar. E aí você crê ou não nisso, mas saber… não se sabe. Por isso, a resposta pode ser cética, de suspender o juízo; pode ser de confiança, de fé, de crença na existência, ou de descrença, sendo tudo processos naturais independentes de vontades, mas saber… é isso que Huxley chamou de agnosticismo, sua posição epistemológica diante da presença ou não de uma divindade nos processos evolutivos.

A questão é que temos um confronto entre lógica e epistemologia nesse tema. Isso se deve ao fato de que podemos ter doxa e episteme, ou seja, opinião e conhecimento. Há inúmeras coisas que podemos não saber, mas que podemos formar uma opinião e acreditar nela. Quando pensamos em termos científicos, a opinião é um problema, porque dela parte inúmeros desvios e vieses, mas o fato concreto e inevitável é que ela existe e muito, mas muito mais presente em nossos quotidianos do que um conhecimento sintetizado e consagrado. Mais ainda, por vezes confundimos ambos, e assumimos opiniões com verdades. Aí, a porca torce o rabo.

Por essa razão, é possível ser ateu e agnóstico ao mesmo tempo, assim como é possível ser religioso e agnóstico também. Porque ainda que não saibamos se uma divindade existe ou não, podemos acreditar que sim ou que não, diante do que é possível ter de evidências. E, neste sentido, pouco importa se são tratados científicos ou evidências anedóticas. O que importa aqui é a sensação pessoal, um convencimento que se faz aos poucos ou uma experiência repentina.

E isso nos possibilita pensar em graduações de crença. Eu, assim como Huxley, posso ter um padrão de desconhecimento assumido, mas analisar a credibilidade de cada divindade que me é apresentada, bem como da lógica interna de seus aspectos, como as exigências que faz, a moralidade que sustenta e assim por diante. Religiões abraâmicas, por exemplo, são montanhas de contradições, e, para que eu volte a crer nelas, precisarei de evidências muito fortes. Já crenças budistas ou religiões com deuses mais difusos tem uma coerência interna mais sofisticada e com menos argumentos autoritários, o que é um convite para uma aceitação maior. Aplicados a um percentual de crença, dá para dizer que os primeiros se aproximam de zero, enquanto os segundos são mais dignos de consideração, até porque eles são desnecessários na construção da realidade. E é isso: quanto mais necessário um deus, menos crível ele é.

Repetindo algo que já falei por esses textos, a partir do momento que eu coloquei o ceticismo ao serviço do meu conhecimento, percebi que tudo se acomodava melhor sem divindades. Mortes ocorrem porque doenças existem, e não porque Deus quer. Terremotos devastam porque são desequilíbrios naturais, e não castigos impostos para populações inteiras. As espécies se transformam porque sofrem pressões seletivas, e não pelo capricho da deidade de plantão. Tudo fica mais coerente, mais factível, mais compreensível sem a explicação divina. Mesmo que não se consiga obter esclarecimentos pela via da ciência, colocar a divindade na lacuna não ajuda nada, só cria uma narrativa que continua sem comprovação.

No final das contas, tendo a acreditar (vejam vocês) que somos todos agnósticos. Costumam dizer que não existe ateu em um avião caindo, assim como um religioso enfartando procura um hospital, e não um templo. A contradição está em apelar para uma entidade em que não se acredita, ou em desprezá-la no momento em que mais se precisa. Desculpem-me ambos, mas em momentos de desespero não há espaço nem para a racionalidade, nem para a fé. Há aquilo que temos de melhor ao nosso alcance.

É a maneira como penso, e não quero ofender ninguém com isso. Assim como diante da novidade de um café já moído e pronto para a água, também tenho muita dificuldade em absorver coisas que não posso experimentar. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Textinho rápido sobre o tema, interessante por se tratar da primeira utilização do termo.

HUXLEY, Thomas. Agnosticismo. Blumenau: Kindle, 2023. E-book.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o diferenciado Juventus e a inexplicável força da identidade

(Bairrismo é legal? Depende)

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

Fernando Pessoa, sob o heterônimo Alberto Caeiro

 

Olá!

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Meus filhos nasceram na Aclimação. A patroa não é de São Paulo, nasceu na mesma São Caetano que meu filho mais velho, falecido ainda criança. Do pessoal do serviço, um é do Tatuapé e outra de Itaquera, os outros são de outras cidades. Nenhum deles tece loas ao lugar onde nasceu, nem mesmo onde mora. Não é costume nesta cidade arrotar com gosto ser do Cambuci, ou da Vila Penteado, ou ainda do Rio Pequeno. Essas coisas passam praticamente batidas, e você convive anos com uma pessoa sem saber bem de onde ela é. Mas eu sou da Mooca. Eu nasci na Mooca, na Rua Sebastião Preto, e tenho minha certidão no cartório que fica bem na frente da igreja do Bom Conselho. A parentegem estava lá em peso: a Tia Maria morava na Rua do Acre; o Tio Chico, na Rua Javari, e o Tio Rafa na Capitães-Mores. Já meu avô percorreu o bairro todo com sua casa e com sua oficina: Tamarataca, Madre de Deus, Caetano Pinto, Campineiros e terminando seus dias na Rua do Oratório, onde alugava o salão da Kathy, uma senhora alemã que mandava pacotes de doces divinos, melados a ponto de dar diabetes mentais. Sou da Mooca, e todo mundo que lá nasceu ou mora proclama o fato a alta voz.

Alguns moradores de Santa Cecília, Vila Madalena e Ipiranga se ufanam dos bairros em que nasceram. Um pouco pela tradição, muito pelo que representam, são lugares que carregam uma espécie de distintivo dos que lá habitam, como os apartamentos com chão de tacos, os becos grafitados e a vista para o Museu, respectivamente. Mas quando pensamos em São Paulo, e disso falamos de mais de doze milhões de habitantes, nenhum bairro é mais bairrista do que a Mooca.

Esse é o tipo de fenômeno que é difícil de explicar. De fato, a Mooca é um bairro ainda aprazível, com bons remanescentes dos seus tempos operários, como as casinhas da Rua do Hipódromo, as insistentes fábricas ao longo da ferrovia, os casarões da Paes de Barros e até mesmo dos cortiços da parte baixa, para onde a maior parte dos imigrantes acorreu em sua chegada ao Brasil. Mas que não é assim tão diferente de outros bairros para virar um distintivo tão peculiar.

A Mooca tem suas personalidades, seus edifícios, seus abundantes restaurantes, cantinas, pizzarias, trattorias, botecos, suas mazelas e suas venturas. Tudo isso há em outros lugares, mas a Mooca tem um time. A Mooca tem o Juventus.

A história do Juventus se mistura à própria história do bairro, e é um pequeno compêndio do que é a Mooca. A origem italiana dos proprietários do Cotonifício Crespi é o único ponto em comum com os operários que por lá fundaram um time com o beneplácito de seus patrões. Ainda hoje quem passa pelas bandas do pequeno estádio da Rua Javari vê os testemunhos das pequenas casinhas que ladeavam a imensa fábrica têxtil. A indústria, as casas e o campo eram o resumo da vida de uma população muito pobre, que ainda trabalhava praticamente sem legislação trabalhista e pouca proteção prática em serviços extenuantes e perigosos. Lembro de muitos dos meus velhos parentes que exibiam cicatrizes com um certo orgulho, porque eram, na verdade, sinais de sobrevivência, um certo heroísmo frente àqueles que sucumbiram, de quem contam fartas histórias. Isso ocorria em todos os bairros operários, mas a Mooca tinha essa espécie de comunhão de comunidades que a tornou singular.

O campo do cotonifício virou um tipo de refúgio único de lazer para onde desembocavam todos esses trabalhadores, e lá criaram um movimento forte de identidade. Havia outros campos, é verdade, mas o clube resultante, uma fusão dos times de Turim, com as cores de um e o nome do outro, virou um amálgama para as classes sociais que giravam em torno da fábrica. Afinal de contas, a Mooca é lembrada como bairro de italianos, mas lá havia os espanhóis, os armênios, os portugueses, os gregos, os alemães, os russos, os libaneses. Tudo isso porque lá estava a Hospedaria dos Imigrantes, hoje transformada em espaço cultural, primeiro abrigo daqueles que vinham do mundo todo para tentar sua sorte nos trópicos. Não encontraram o bairro vazio, entretanto, já que lá havia várias comunidades afrodescendentes que cercavam o centro e os nordestinos que habitavam cortiços “especializados” na beira do Tamanduateí.

Isso tem a ver com criação de identidades. Uma boa parte vem da nossa busca por distintivos pessoais, e outra por símbolos que nos moldam como somos. Um mooquense dificilmente é torcedor do Juventus como time principal, mas também dificilmente deixa de adotá-lo como uma referência à sua procedência. E por quê?

É que não somos unívocos. Temos uma identidade genética, mas também temos uma identidade adquirida. Da primeira, em geral não temos muito o que mudar, porque está em nossa constituição física, com hereditariedades imperativas. É aquela história de que não adianta comer fermento; o baixinho é baixinho e pronto. Já com relação ao ambiente que nos cerca, ele nos torna boa parte do que somos porque é desejável, ou mesmo necessário, ter conformidade. E isso faz com que tenhamos orgulho ou vergonha de acordo com que o consenso estabelece.

Quando você vem no domingo de manhã para a região da Javari, vê uma multidão de grená se encaminhando para o antiquíssimo estádio, com sua área coberta sui generis e arquibancada em concreto armado. É uma estrutura simples, que os apaixonados não querem modificar de jeito algum, embora fosse desejável que se tornasse mais hodierno, caso se queira evolução. Mas as faixas da torcida dizem “ódio eterno ao futebol moderno”, não porque não se queira que o time cresça, mas porque é o grande catalisador dessa identidade. É muito diferente estar lá, porque os adversários não são chamados para a briga. Pelo contrário até, nos botequins próximos juventinos se misturam a nacionalinos, lusos, interioranos dos mais diferentes locais e bebem seus gorós antes e depois das contendas, sem que isso vire um campo de batalha como acontece com torcidas maiores, e sem que isso represente ser menos aguerrido. É um diferencial que demonstra hospitalidade do clube e do bairro, e isso agrega. Os frequentadores observam isso e tomam como valor, de modo a arraigar mais e mais tal comportamento.

A torcida é como uma tropa de um exército de Brancaleone, aquele de quem pouco se espera, mas que muito entrega. O apelido do Juventus é Moleque Travesso não à toa. Não foi uma mascote forçada, como os leões espalhados Brasil afora, mas ganho pela torcida e pela imprensa, por aprontar suas artes contra os grandes e perturbar sua paz, principalmente no seu grund da Rua Paulo, a Rua Javari, o pequenino campo do cotonifício.

Minha identificação com a Mooca não poderia ser mais vinculada ao Juventus do que já é. Da rua em que nasci, são dez minutos a pé até o clube social, construído no antigo varjão conhecido como Tchipum. Já do campo, duas casas à direita e se chega ao lar do Zio Chico e da prima Nélide, onde volta e meia caem bolas chutadas pelos beques fazendeiros. Nos últimos tempos, enquanto o pessoal procurava lugares cada vez mais longe para estacionar, eu colocava o possante espertamente na porta da garagem da prima, quase zombeteiro, para depois pegar um macarrão com polpetta com a veneranda parenta. É certamente o estádio onde eu mais assisti futebol na vida, favorecido por todos esses fatores.

Dizem que a Mooca tem um time, mas também o Juventus tem um bairro, fenômeno raro nas terras de Pindorama. Um tem orgulho do outro, mesmo nos momentos de baixa, porque não é preciso sair da Mooca para encontrar o símbolo de guerra daquela gente. O Corinthians não é do Tatuapé, o Palmeiras não é da Água Branca, o São Paulo não é do Morumbi. Eles são da cidade, do país, quiçá do mundo, mas só o Juventus é da Mooca, e ela, coincidência ou não, é o bairro mais bairrista de São Paulo.

Há um porém oculto, que precisa ser tratado com cuidado. O bairrismo é uma aldeia que fica no meio do caminho que leva à xenofobia, e a estrada se alarga após passar pelo seu acesso. Isso porque o sentimento de identidade, por si só, não é ruim. O problema é quando adquirimos a sensação de que ninguém que vem de fora é digno de compartilhar o nosso espaço. A Mooca, assim como todo o Brasil, foi construída não só pelos imigrantes italianos, mas pelos índios que lá já estavam e pelos negros que foram trazidos na marra, assim como por outros europeus e pelos asiáticos, especialmente do Oriente Médio. Quem vem de fora, não percebe tanta diferença com relação a outros bairros tradicionais, então é na história e nas tradições que a Mooca se torna quem é. E ela se escreve nos ciclos de gente que vem e que vai, comprovando o dinamismo da existência humana, seja no plano individual, seja no âmbito das coletividades. Se o bairrismo do mooquense se mantiver nos limites identitários, teremos um povo que se orgulha, que é farrista, que fala alto e gosta de onde vive, que cuida de suas ruas e de sua vizinhança; se passar disso, será perdida toda aura de empatia que desemboca até mesmo no Juventus.

Tomados esses cuidados, e tirando o discurso passional tão típico dos italianos, algumas coisas nos fazem desconfiar dos elementos motivadores para o bairrismo deste local. A Mooca é muito antiga, com seus primeiros registros históricos surgindo apenas dois anos após a fundação de São Paulo. É povoada de fábricas e suas consequentes vilas operárias, o que dá um certo fechamento nas comunidades que se formam. Esse é um fato que se deu em outros bairros também, como o Brás e o Bom Retiro, mas, por diferentes motivos, as coletividades desses locais foram se esgarçando, modificando e dispersando, com remanescentes diferentes daqueles que lá estavam no processo de industrialização. Na Mooca, que se manteve fabril por mais tempo, e que não teve nenhum evento causador de diásporas (como a construção do metrô ou de alguma rodoviária inútil), as mesmas comunidades se mantiveram mais intocadas, e, com isso, aquele clima mais familiar, de todo mundo se conhecer há gerações. Além disso, e mais uma vez pela origem industrial do bairro, foi aqui que movimentos anarquistas e sindicalistas chegaram com mais força, o que reforça o sentimento de pertencimento que nasceu das células e se espraiou para os botequins e praças; para os pontos de convívio, em suma – indo parar no futebolzinho sagrado do fim de semana. E isso causa a sensação de um mundo à parte, de cidade dentro da cidade. Quem é da Mooca se considera mooquense antes de ser paulistano. Para os mais exaltados, antes de ser brasileiro. O Moleque subsiste porque agrega todos esses valores, é a bandeira grená que esse povo carrega para gritar “orra, meu” pela cidade toda.

Inclusive eu. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Publicação oficial patrocinada pelo clube:

AGARELLI, Ângelo; GALLUPPO, Fernando; ROMANO NETTO, Vicente. Glórias de um Moleque Travesso. São Paulo: BB Editora, 2012.