(O que é a “batalha” entre os filósofos analíticos e continentais que sempre é apresentada nos livros de filosofia contemporânea?)
“O homem é um ser que se criou a si próprio ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si próprio”.
Octavio Paz
“… porque não existe 'A' filosofia, mas existem muitas filosofias, muitos modos e razões para dizer-se filósofos”.
Franca d’Agostini
Olá!
O Bosque
do Papa não é grande o suficiente para tomar um dia inteiro. Sim, eu estou
ainda em Curitiba e continuo andando pela cidade. Aqui é um lugar muito
interessante pelo seu ecletismo e que, de certa forma, guarda suas semelhanças
com São Paulo. As vantagens são óbvias: organização e limpeza são modelares,
pontos fragílimos da Terra da Garoa. Mas em termos de ter de tudo, parece a sua
miniaturização. Muita comida, muito café, muitos eventos culturais, e,
principalmente, muito lugar para visitar, mesmo sem os gigantismos paulistanos.
Curitiba tem sua porção de colonização inglesa, coisa que
também ocorre em São Paulo. E que, da mesma forma, ocorreu de uma maneira
diferente com relação aos trabalhadores braçais que vieram aos montes para
povoar as fábricas e as roças. Aqui, os ingleses vieram menos com gente e mais
com dinheiro, para fazer grandes negócios, e instalaram empresas de grande
porte, como a Linhas Corrente ou Alpargatas, mas, principalmente, companhias de
prestação de serviços públicos, notadamente a São Paulo Railway, a empresa
ferroviária mais importante de São Paulo do século passado.
Em Curitiba não foi diferente. O vice-cônsul Harry Gomm era
um empresário inglês que tinha negócios com erva-mate no Sul, e prosperou ainda
mais na região. Ergueu residência em Curitiba, e se tornou símbolo da elite de
outrora. É a Casa Gomm.
A casa em si é uma mansão totalmente feita de madeira, a
última remanescente nesse estilo em Curitiba. Por ser feita nesse material,
pode ser cambiada para este local, onde está fixada hoje. Aqui, está sediada a
Coordenação do Patrimônio Cultural do Paraná e, por essa razão, as visitas
públicas são limitadas.
O parque em si é bem pequenininho, pouco mais do que uma
praça, praticamente integrando o espaço de um shopping que lhe é vizinho. Mesmo
assim, ou até por isso, é um espaço bastante movimentado.
Para dar um ar mais britânico ao lugar, há algumas
referências paisagísticas que são típicas daquele mundo, como este caramanchão
em semicírculo.
Outra coisa é uma daquelas típicas cabines telefônicas
fechadas, tão comuns nas ilhas britânicas. É original, obtida por doação da
própria terra da rainha (ops, não mais).
O painel do paredão contém uma estilização da Union Jack,
a famosa bandeira do Reino Unido que é a mescla das cruzes dos quatro países
que o compõe: a cruz de Santo André (Escócia), a de São Patrício (Irlanda) e a
de São Jorge (Inglaterra e Gales). Eu sei que a maioria das pessoas que vem
aqui não precisa dessa explicação, mas é sempre bom lembrar que Reino Unido não
é sinônimo de Inglaterra, ok?
O parque é também um pequeno espaço cultural que enaltece as
artes britânicas. Essa casinha é uma reprodução da história de Peter Rabbit, de
Beatrix Potter, que ficou famoso no Brasil por causa do desenho animado que
retrata o coelho esperto e rebelde. Seu traço delicado é sua marca registrada,
e é, sem dúvida, o canto favorito das crianças.
Na parede, pequeníssimas biografias de seus maiores
expoentes artísticos: Shakespeare, Blake e os Beatles.
Não conheço muito a obra de William Blake, devo confessar a
ignorância. Com relação aos outros dois, é justo o contrário. Do bardo, li
praticamente tudo, atraído por uma coleção de peças que meu pai
surpreendentemente comprou, numa dessas negociações tortuosas dos alcoólatras.
Já com relação aos músicos de Liverpool, a coisa veio com o amadurecimento. Era
aquela coisa: vestido na pele do roqueirinho de subúrbio, não admitia que
aquela música divertidinha pudesse representar meus gostos.
A coisa mudou quando eu comecei a ouvir as músicas mais
elaboradas, posteriores ao álbum Rubber Soul, que nem pareciam ser Beatles.
Acho que a primeira que eu ouvi foi Strawberry Fields Forever. Eu me perguntei:
isso é Beatles? Daí, foi uma sucessão: A Day in the Life, The Benefit Mister
Kite, Come Togheter… até chegar em I Am the Walrus, quando eu pirei na
batatinha e dei todo meu respeito aos Fab Four, inclusive para as músicas que
antes eu desprezava.
É legal ver essas transformações que se aproximam de uma
catarse. Testemunhei meu moleque mais velho sofrendo o mesmo fenômeno quando
ouviu pela primeira vez a música Hocus Pocus, dos holandeses do Focus. A
princípio uma música engraçada, inconfundível pelo canto no estilo yodel,
com o tempo e com a audição mais acurada, vai se tomando pé da complexidade da
peça, e isso ficou evidente no menino de seus doze ou treze anos. Das risadas,
foi se ganhando um silêncio e olhos arregalados, até chegar a exclamação final:
“O que esses caras fizeram aí?”. É uma espécie de deslumbramento misturado com
surpresa, e produz esse tipo de sensação.
Mas voltando ao Reino Unido, notei que não tinha nenhum
filósofo sendo contemplado nos muros do parque, ao contrário do que temos na
Torre dos Filósofos do Bosque
Alemão. Será que os filósofos ilhéus não produziram nada de digno a ser
reverenciado? Nada disso, tem muita gente boa por lá. Roger
Bacon, Guilherme
de Ockham, Harold
Osborne, Thomas
Hobbes, Adam
Smith, John
Locke, David
Hume, Thomas
Morus, Michael
Oakeshott, G.
E. Moore, Gilbert
Ryle e Bertrand
Russell são apenas alguns dos pensadores que já citei por aqui e que são
nativos das Ilhas Britânicas, sem prejuízo de que Shakespeare, Blake e até
mesmo Beatles terem produzido material que se pode considerar filosófico. Sendo
assim, podemos fazer fortes remissões à filosofia britânica, e eu gostaria de
trazer para vocês um debate razoavelmente recente, que poderíamos colocar como
um dos Fla-Flus filosóficos mais importantes, expressado pela contraposição
entre o Reino Unido e o restante da Europa, que é o embate analíticos vs.
continentais.
Algumas balizas, para começar a conversar. Os assim chamados
filósofos continentais só tem esse nome porque os analíticos quiseram meio que
se isolar, e todo mundo que não fosse anglófono era continental, principalmente
franceses e alemães. Isso denota também com quem os analíticos eram mais
inclusivos: não só britânicos, mas estadunidenses, canadenses e australianos
eram os mais frequentes nesse universo. Isso significava que outras
nacionalidades estivessem proibidas de pisar em solo analítico? Absolutamente
não. É só uma questão de frequência. Já com relação ao termo “analíticos”, não
seria uma arrogância reservar um termo que, no final das contas, pode ser
aplicado a toda Filosofia? Afinal, a análise de um objeto é a atividade
filosófica por excelência. É que o princípio dessa corrente se deu nas
universidades inglesas de Oxford e de Cambridge, que tinha a revista Analysis
como seu órgão de divulgação, o que acabou emprestando seu nome para a linha de
pensamento.
A questão começa com a ampla evolução científica que teve
lugar até o século XIX. O mundo virou de ponta-cabeça e, se hoje nos
surpreendemos com as novidades, imaginem o que foi aprender como dominar a
eletricidade, utilizar medicamentos sintéticos, tomar vacinas que preveniam
doenças que matavam milhões de pessoas, mandar mensagens telegráficas através
do mundo e se comunicar em segundos, refinar petróleo e utilizá-lo como
combustível… Os impactos eram imensos, e todo esse progresso estava vinculado à
ciência e sua consequência prática, a tecnologia. Isso fez com que a filosofia
olhasse para si própria e percebesse o quanto a sua filha mais ilustre estava
grande e, principalmente, o quanto estava ficando cada vez mais distante de sua
antiga matriz. Sendo assim, os pensadores desse mesmo momento histórico
perceberam que era necessário se reaproximar da ciência. A especulação
filosófica clássica, com abordagens distantes do âmbito concreto, ameaçava
colocá-la na obsolescência. A metafísica, por exemplo, precisou passar por uma
intensa transformação e se transformar em ontologia para continuar fazendo
algum sentido. A pesquisa epistemológica começa a se basear em estruturas
matemáticas e lógicas, enquanto o sujeito vai ganhando importância mais
centralizada no processo do conhecimento. Essa reaproximação, como seria de se
esperar, foi feita por mais de um caminho. E aqui vai começar a divisão entre
analíticos e continentais.
Os filósofos analíticos achavam que a aproximação com a
ciência deveria ser dada com a chave da lógica, em uma espécie de matematização
do pensamento. Bebem na fonte de Frege
para elaborar regras que normatizem a expressão de ideias, que, no limite, são
traduzidas em linguagem. Por este motivo, o grande objeto de estudo dos
analíticos é a linguagem e seus usos. Eles discutem especialmente a capacidade
da linguagem em expressar a realidade e as armadilhas que sua utilização traz
para a perfeita compreensão do mundo. Em suma, é preciso verificar como a
linguagem pode desvirtuar a lógica e trazer uma realidade que, no limite, não
existe. A riqueza dos analíticos, entretanto, não está em separar o joio do
trigo para queimá-lo em uma fogueira, muito pelo contrário. Sua principal tarefa
é desvendar a lógica mental que está por trás das expressões, mesmo as
corriqueiras, porque é através delas que conseguimos deduzir o que se passa em
uma mente; a linguagem é o espelho do que se pensa. Desta forma, frases como
“Estou com sede” e “Juro que estou com sede” dizem exatamente a mesma coisa do
ponto de vista indicativo: tenho sede. Mas a segunda forma carrega uma função a
mais, desempenhativa. Isso significa que jurar que se tem sede adiciona uma
expressividade de reversão de uma mentira, por exemplo. Preciso jurar que tenho
sede porque posso ter usado essa expressão como desculpa para sair de uma
situação embaraçosa, por exemplo. E é com carga linguística que modifico a
expressividade.
Os continentais, por outro lado, se aproximam da ciência pelo
lado do âmbito psicológico. A fenomenologia
de Husserl inaugura uma abordagem metodológica que traz a consciência
daquele que interage com o objeto para o centro da pesquisa, e, dessa forma,
percebe-se como o fator humano, cristalizado no indivíduo que se põe na
relação, se torna muito mais presente.
A multiplicação do nível de subjetividade é uma das
principais características da filosofia continental. Isso já dá uma ideia do
quanto é mais distante da objetividade fria da escola analítica. A linguagem é,
dentre outros, um ato humano, e não um emaranhado de sentenças lógicas. O
psicologismo e a visão pessoal do mundo são suas características mais
genéricas, sempre lembrando que estamos falando de um conjunto de pensadores
que pouco tem de coincidentes, mas que, por amor à concisão, continuaremos os
tomando naquilo que tem de mais genérico.
Então, está aqui. A aproximação a ciência feita pelos
analíticos se deu pela clave da lógica, enquanto os continentais o fizeram pelo
caminho da psicologia. Evidentemente, a primeira é mais hard code, mais,
preto no branco, mais 1+1=2, enquanto a segunda tem um leque muito mais aberto,
que redundou em correntes mais numerosas, que incluíram o Existencialismo, a
Psicanálise, a Teoria Crítica, o Estruturalismo e tantas outras vertentes que
se desenrolam até os dias de hoje.
Fala-se em dicotomia entre as duas. Houve confronto entre
ambas as correntes? Ah, bastante. Particularista, a filosofia analítica
coloca-se como uma espécie de última bolacha do pacote, aqueles que praticam a
última forma válida de filosofia, aplicada à lógica. Tudo o que vai além disso
é literatura, no que os continentais são ricos. Os analíticos dizem que os
continentais enchem seus textos de palavras, mas são vazios de conteúdo. Sendo
errôneos em suas estruturas, o que escrevem se torna incompreensível. Por conta
disso, são prolixos e herméticos, sendo que não conseguem traduzir em linguagem
suas ideias fabulescas.
Por outro lado, os continentais têm os analíticos na conta
de uma grande estiagem filosófica, cujo propósito é aquilo que hoje diríamos
ser “passar no Enem”, porém com a pretensão de estarem acima até mesmo das
ciências. Criam estruturas enormes para falar “bom dia” e reduzem a linguagem a
uma fala de robôs, como se fosse possível plasmar o entendimento através de fórmulas
prontas e acabadas. É uma guerra entre a lógica e a humanística, como se vê.
Quem tem razão? Como costuma acontecer nesses casos, um
pouco para lá, um pouco para cá. Os analíticos têm razão com relação à
ilegibilidade dos continentais. Se fizermos uma comparação direta entre os
textos de uma corrente e de outra, a diferença salta aos olhos. Os analíticos
chegam a ser chatos na minúcia, a ponto de causar náuseas no nível de detalhes
que atingem, mas eles são claros. Se não são fáceis de ler, é porque há
dificuldade nos conceitos que professam, mas não na limpidez da escrita -
poucas dúvidas deixam. É o exato oposto do que fazem os continentais, que
escrevem como se fosse para si mesmos, cheios de metáforas e de divagações que
vão ao sabor do próprio psicológico. Parecem fazer uma brincadeira de
cerca-Lourenço com o leitor, dando infinitos volteios antes de dizer o que
querem, e o que querem nem sempre é compreensível. Por isso, é muito comum
fazer a leitura desses autores acompanhados de comentadores que debruçaram sua
vida inteira em compreendê-los. Por outro lado, os continentais têm razão ao
dizer que os analíticos são desérticos com relação à totalidade dos problemas
filosóficos, em razão de fundear todo o seu cabedal em análise da linguagem. É
aceitável que adotem esse procedimento como um dos modos possíveis de
filosofar, mas não como o único. Eles parecem aqueles corintianos (eu sou
corintiano) que não admitem que há outros times igualmente gloriosos, e que não
há futebol fora dos limites do parque São Jorge. Com isso, seu campo de atuação
fica tão restrito que acabam excluindo sua filosofia de qualquer outro campo, o
que, sejamos francos, a empobrece.
Por fim, saímos de lá inspirados pela cultura inglesa e, ao
invés do costumeiro cafezinho, fomos tomar um chá, ainda que não fosse cinco da
tarde. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Achei um livrinho que é muito bom, que já abre justamente
abordando o tema em tela, e deixo aqui a indicação para vocês.
D’AGOSTINI, Franca. Analíticos e Continentais. Guia à
Filosofia dos Últimos Trinta Anos. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
Com relação ao parque…
Parque e Casa Gomm
Rua Bruno Filgueira, 850
Bigorrilho
Curitiba/PR
A aproximadamente 410km do centro de São Paulo
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