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terça-feira, 21 de maio de 2024

Navegações de cabotagem – a Casa Gomm e o confronto entre os filósofos britânicos e os demais europeus

(O que é a “batalha” entre os filósofos analíticos e continentais que sempre é apresentada nos livros de filosofia contemporânea?)

“O homem é um ser que se criou a si próprio ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si próprio”.

Octavio Paz

 

“… porque não existe 'A' filosofia, mas existem muitas filosofias, muitos modos e razões para dizer-se filósofos”.

Franca d’Agostini

Olá!

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O Bosque do Papa não é grande o suficiente para tomar um dia inteiro. Sim, eu estou ainda em Curitiba e continuo andando pela cidade. Aqui é um lugar muito interessante pelo seu ecletismo e que, de certa forma, guarda suas semelhanças com São Paulo. As vantagens são óbvias: organização e limpeza são modelares, pontos fragílimos da Terra da Garoa. Mas em termos de ter de tudo, parece a sua miniaturização. Muita comida, muito café, muitos eventos culturais, e, principalmente, muito lugar para visitar, mesmo sem os gigantismos paulistanos.

Curitiba tem sua porção de colonização inglesa, coisa que também ocorre em São Paulo. E que, da mesma forma, ocorreu de uma maneira diferente com relação aos trabalhadores braçais que vieram aos montes para povoar as fábricas e as roças. Aqui, os ingleses vieram menos com gente e mais com dinheiro, para fazer grandes negócios, e instalaram empresas de grande porte, como a Linhas Corrente ou Alpargatas, mas, principalmente, companhias de prestação de serviços públicos, notadamente a São Paulo Railway, a empresa ferroviária mais importante de São Paulo do século passado.

Em Curitiba não foi diferente. O vice-cônsul Harry Gomm era um empresário inglês que tinha negócios com erva-mate no Sul, e prosperou ainda mais na região. Ergueu residência em Curitiba, e se tornou símbolo da elite de outrora. É a Casa Gomm.

A casa em si é uma mansão totalmente feita de madeira, a última remanescente nesse estilo em Curitiba. Por ser feita nesse material, pode ser cambiada para este local, onde está fixada hoje. Aqui, está sediada a Coordenação do Patrimônio Cultural do Paraná e, por essa razão, as visitas públicas são limitadas.

O parque em si é bem pequenininho, pouco mais do que uma praça, praticamente integrando o espaço de um shopping que lhe é vizinho. Mesmo assim, ou até por isso, é um espaço bastante movimentado.


Para dar um ar mais britânico ao lugar, há algumas referências paisagísticas que são típicas daquele mundo, como este caramanchão em semicírculo.

Outra coisa é uma daquelas típicas cabines telefônicas fechadas, tão comuns nas ilhas britânicas. É original, obtida por doação da própria terra da rainha (ops, não mais).

O painel do paredão contém uma estilização da Union Jack, a famosa bandeira do Reino Unido que é a mescla das cruzes dos quatro países que o compõe: a cruz de Santo André (Escócia), a de São Patrício (Irlanda) e a de São Jorge (Inglaterra e Gales). Eu sei que a maioria das pessoas que vem aqui não precisa dessa explicação, mas é sempre bom lembrar que Reino Unido não é sinônimo de Inglaterra, ok?

O parque é também um pequeno espaço cultural que enaltece as artes britânicas. Essa casinha é uma reprodução da história de Peter Rabbit, de Beatrix Potter, que ficou famoso no Brasil por causa do desenho animado que retrata o coelho esperto e rebelde. Seu traço delicado é sua marca registrada, e é, sem dúvida, o canto favorito das crianças.

Na parede, pequeníssimas biografias de seus maiores expoentes artísticos: Shakespeare, Blake e os Beatles.

Não conheço muito a obra de William Blake, devo confessar a ignorância. Com relação aos outros dois, é justo o contrário. Do bardo, li praticamente tudo, atraído por uma coleção de peças que meu pai surpreendentemente comprou, numa dessas negociações tortuosas dos alcoólatras. Já com relação aos músicos de Liverpool, a coisa veio com o amadurecimento. Era aquela coisa: vestido na pele do roqueirinho de subúrbio, não admitia que aquela música divertidinha pudesse representar meus gostos.

A coisa mudou quando eu comecei a ouvir as músicas mais elaboradas, posteriores ao álbum Rubber Soul, que nem pareciam ser Beatles. Acho que a primeira que eu ouvi foi Strawberry Fields Forever. Eu me perguntei: isso é Beatles? Daí, foi uma sucessão: A Day in the Life, The Benefit Mister Kite, Come Togheter… até chegar em I Am the Walrus, quando eu pirei na batatinha e dei todo meu respeito aos Fab Four, inclusive para as músicas que antes eu desprezava.

É legal ver essas transformações que se aproximam de uma catarse. Testemunhei meu moleque mais velho sofrendo o mesmo fenômeno quando ouviu pela primeira vez a música Hocus Pocus, dos holandeses do Focus. A princípio uma música engraçada, inconfundível pelo canto no estilo yodel, com o tempo e com a audição mais acurada, vai se tomando pé da complexidade da peça, e isso ficou evidente no menino de seus doze ou treze anos. Das risadas, foi se ganhando um silêncio e olhos arregalados, até chegar a exclamação final: “O que esses caras fizeram aí?”. É uma espécie de deslumbramento misturado com surpresa, e produz esse tipo de sensação.

Mas voltando ao Reino Unido, notei que não tinha nenhum filósofo sendo contemplado nos muros do parque, ao contrário do que temos na Torre dos Filósofos do Bosque Alemão. Será que os filósofos ilhéus não produziram nada de digno a ser reverenciado? Nada disso, tem muita gente boa por lá. Roger Bacon, Guilherme de Ockham, Harold Osborne, Thomas Hobbes, Adam Smith, John Locke, David Hume, Thomas Morus, Michael Oakeshott, G. E. Moore, Gilbert Ryle e Bertrand Russell são apenas alguns dos pensadores que já citei por aqui e que são nativos das Ilhas Britânicas, sem prejuízo de que Shakespeare, Blake e até mesmo Beatles terem produzido material que se pode considerar filosófico. Sendo assim, podemos fazer fortes remissões à filosofia britânica, e eu gostaria de trazer para vocês um debate razoavelmente recente, que poderíamos colocar como um dos Fla-Flus filosóficos mais importantes, expressado pela contraposição entre o Reino Unido e o restante da Europa, que é o embate analíticos vs. continentais.

Algumas balizas, para começar a conversar. Os assim chamados filósofos continentais só tem esse nome porque os analíticos quiseram meio que se isolar, e todo mundo que não fosse anglófono era continental, principalmente franceses e alemães. Isso denota também com quem os analíticos eram mais inclusivos: não só britânicos, mas estadunidenses, canadenses e australianos eram os mais frequentes nesse universo. Isso significava que outras nacionalidades estivessem proibidas de pisar em solo analítico? Absolutamente não. É só uma questão de frequência. Já com relação ao termo “analíticos”, não seria uma arrogância reservar um termo que, no final das contas, pode ser aplicado a toda Filosofia? Afinal, a análise de um objeto é a atividade filosófica por excelência. É que o princípio dessa corrente se deu nas universidades inglesas de Oxford e de Cambridge, que tinha a revista Analysis como seu órgão de divulgação, o que acabou emprestando seu nome para a linha de pensamento.

A questão começa com a ampla evolução científica que teve lugar até o século XIX. O mundo virou de ponta-cabeça e, se hoje nos surpreendemos com as novidades, imaginem o que foi aprender como dominar a eletricidade, utilizar medicamentos sintéticos, tomar vacinas que preveniam doenças que matavam milhões de pessoas, mandar mensagens telegráficas através do mundo e se comunicar em segundos, refinar petróleo e utilizá-lo como combustível… Os impactos eram imensos, e todo esse progresso estava vinculado à ciência e sua consequência prática, a tecnologia. Isso fez com que a filosofia olhasse para si própria e percebesse o quanto a sua filha mais ilustre estava grande e, principalmente, o quanto estava ficando cada vez mais distante de sua antiga matriz. Sendo assim, os pensadores desse mesmo momento histórico perceberam que era necessário se reaproximar da ciência. A especulação filosófica clássica, com abordagens distantes do âmbito concreto, ameaçava colocá-la na obsolescência. A metafísica, por exemplo, precisou passar por uma intensa transformação e se transformar em ontologia para continuar fazendo algum sentido. A pesquisa epistemológica começa a se basear em estruturas matemáticas e lógicas, enquanto o sujeito vai ganhando importância mais centralizada no processo do conhecimento. Essa reaproximação, como seria de se esperar, foi feita por mais de um caminho. E aqui vai começar a divisão entre analíticos e continentais.

Os filósofos analíticos achavam que a aproximação com a ciência deveria ser dada com a chave da lógica, em uma espécie de matematização do pensamento. Bebem na fonte de Frege para elaborar regras que normatizem a expressão de ideias, que, no limite, são traduzidas em linguagem. Por este motivo, o grande objeto de estudo dos analíticos é a linguagem e seus usos. Eles discutem especialmente a capacidade da linguagem em expressar a realidade e as armadilhas que sua utilização traz para a perfeita compreensão do mundo. Em suma, é preciso verificar como a linguagem pode desvirtuar a lógica e trazer uma realidade que, no limite, não existe. A riqueza dos analíticos, entretanto, não está em separar o joio do trigo para queimá-lo em uma fogueira, muito pelo contrário. Sua principal tarefa é desvendar a lógica mental que está por trás das expressões, mesmo as corriqueiras, porque é através delas que conseguimos deduzir o que se passa em uma mente; a linguagem é o espelho do que se pensa. Desta forma, frases como “Estou com sede” e “Juro que estou com sede” dizem exatamente a mesma coisa do ponto de vista indicativo: tenho sede. Mas a segunda forma carrega uma função a mais, desempenhativa. Isso significa que jurar que se tem sede adiciona uma expressividade de reversão de uma mentira, por exemplo. Preciso jurar que tenho sede porque posso ter usado essa expressão como desculpa para sair de uma situação embaraçosa, por exemplo. E é com carga linguística que modifico a expressividade. 

Os continentais, por outro lado, se aproximam da ciência pelo lado do âmbito psicológico. A fenomenologia de Husserl inaugura uma abordagem metodológica que traz a consciência daquele que interage com o objeto para o centro da pesquisa, e, dessa forma, percebe-se como o fator humano, cristalizado no indivíduo que se põe na relação, se torna muito mais presente.

A multiplicação do nível de subjetividade é uma das principais características da filosofia continental. Isso já dá uma ideia do quanto é mais distante da objetividade fria da escola analítica. A linguagem é, dentre outros, um ato humano, e não um emaranhado de sentenças lógicas. O psicologismo e a visão pessoal do mundo são suas características mais genéricas, sempre lembrando que estamos falando de um conjunto de pensadores que pouco tem de coincidentes, mas que, por amor à concisão, continuaremos os tomando naquilo que tem de mais genérico.

Então, está aqui. A aproximação a ciência feita pelos analíticos se deu pela clave da lógica, enquanto os continentais o fizeram pelo caminho da psicologia. Evidentemente, a primeira é mais hard code, mais, preto no branco, mais 1+1=2, enquanto a segunda tem um leque muito mais aberto, que redundou em correntes mais numerosas, que incluíram o Existencialismo, a Psicanálise, a Teoria Crítica, o Estruturalismo e tantas outras vertentes que se desenrolam até os dias de hoje.

Fala-se em dicotomia entre as duas. Houve confronto entre ambas as correntes? Ah, bastante. Particularista, a filosofia analítica coloca-se como uma espécie de última bolacha do pacote, aqueles que praticam a última forma válida de filosofia, aplicada à lógica. Tudo o que vai além disso é literatura, no que os continentais são ricos. Os analíticos dizem que os continentais enchem seus textos de palavras, mas são vazios de conteúdo. Sendo errôneos em suas estruturas, o que escrevem se torna incompreensível. Por conta disso, são prolixos e herméticos, sendo que não conseguem traduzir em linguagem suas ideias fabulescas.

Por outro lado, os continentais têm os analíticos na conta de uma grande estiagem filosófica, cujo propósito é aquilo que hoje diríamos ser “passar no Enem”, porém com a pretensão de estarem acima até mesmo das ciências. Criam estruturas enormes para falar “bom dia” e reduzem a linguagem a uma fala de robôs, como se fosse possível plasmar o entendimento através de fórmulas prontas e acabadas. É uma guerra entre a lógica e a humanística, como se vê.

Quem tem razão? Como costuma acontecer nesses casos, um pouco para lá, um pouco para cá. Os analíticos têm razão com relação à ilegibilidade dos continentais. Se fizermos uma comparação direta entre os textos de uma corrente e de outra, a diferença salta aos olhos. Os analíticos chegam a ser chatos na minúcia, a ponto de causar náuseas no nível de detalhes que atingem, mas eles são claros. Se não são fáceis de ler, é porque há dificuldade nos conceitos que professam, mas não na limpidez da escrita - poucas dúvidas deixam. É o exato oposto do que fazem os continentais, que escrevem como se fosse para si mesmos, cheios de metáforas e de divagações que vão ao sabor do próprio psicológico. Parecem fazer uma brincadeira de cerca-Lourenço com o leitor, dando infinitos volteios antes de dizer o que querem, e o que querem nem sempre é compreensível. Por isso, é muito comum fazer a leitura desses autores acompanhados de comentadores que debruçaram sua vida inteira em compreendê-los. Por outro lado, os continentais têm razão ao dizer que os analíticos são desérticos com relação à totalidade dos problemas filosóficos, em razão de fundear todo o seu cabedal em análise da linguagem. É aceitável que adotem esse procedimento como um dos modos possíveis de filosofar, mas não como o único. Eles parecem aqueles corintianos (eu sou corintiano) que não admitem que há outros times igualmente gloriosos, e que não há futebol fora dos limites do parque São Jorge. Com isso, seu campo de atuação fica tão restrito que acabam excluindo sua filosofia de qualquer outro campo, o que, sejamos francos, a empobrece.

Por fim, saímos de lá inspirados pela cultura inglesa e, ao invés do costumeiro cafezinho, fomos tomar um chá, ainda que não fosse cinco da tarde. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Achei um livrinho que é muito bom, que já abre justamente abordando o tema em tela, e deixo aqui a indicação para vocês.

D’AGOSTINI, Franca. Analíticos e Continentais. Guia à Filosofia dos Últimos Trinta Anos. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

 

Com relação ao parque…

Parque e Casa Gomm

Rua Bruno Filgueira, 850

Bigorrilho 

Curitiba/PR 

A aproximadamente 410km do centro de São Paulo 

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