(Se tudo acaba, por que a Filosofia não deveria acabar? Mas ela não termina sem que tudo o mais termine)
“História não é nada senão Filosofia, e esses nomes poderiam ser totalmente trocados”
Schlegel
Olá!
Eu corro atrás de cafés, como já falei inúmeras vezes por
aqui. Isso inclui não somente a Paulicéia Desvairada, mas os lugares para onde
viajo e as paragens onde meus filhos moram: Curitiba, o moleque mais velho;
Taubaté, a menina mais nova. Nesta última, já dominei todos os estabelecimentos
onde se serve o produto da rubiácea, e há alguns muito bons. Só que eles não
são tantos, e a síndrome ectodemomaníaca me impulsiona para as cidades ao redor
da metrópole taubateana, Tremembé inclusa.
Certa feita, numa tarde de domingo, pesquisei uma casa que,
em tese, produziria o café mais bem votado da região, e, pelas indicações,
estava sempre aberto, prontinho para nos receber. Bem, estava fechado. Tinha um
sol na tampa da cabeça de cada contribuinte, e o impulso inicial foi de pegar a
mesma estrada de volta. Mas fomos dar uma volta, para achar uma água de coco ou
coisa parecida. Achamos, no final das contas, a antiga estação ferroviária da
cidade. Não custa dar uma olhada.
Criada para escoar a produção de arroz dos terrenos
alagadiços da base da Mantiqueira, a estação foi construída por monges
trapistas para se coligar ao eixo principal da ferrovia Central do Brasil, que
ligava os dois principais polos consumidores brasileiros, Rio e São Paulo.
Com o advento da multiplicação das rodovias, as linhas de
ferro foram ficando mais e mais de lado, sendo que somente o ramal principal
ainda funciona nessa região, com exclusivo transporte de carga.
Os artigos ferroviários viraram artigos de museu desde
então, e as marias-fumaça são lembradas com saudades por seus antigos usuários,
como já vi em tantos
lugares, mas não mais como equipamentos de uso, mas como pitorescos
recursos turísticos.
Este modelo tem origem suíça, e foi cedido pela prefeitura
de Taubaté para enriquecer o acervo deste pequeno empreendimento. Antigamente,
ficava no Parque do Vale do Itaim, e foi transferida para a estação para
torná-la um cartão postal.
A administração permite que a locomotiva seja visitada, para
que se note como o duplo trabalho de “pilotar” e manter o funcionamento era
árduo, principalmente pelas altas temperaturas que eram atingidas.
Se comparadas aos atuais equipamentos do metrô, por exemplo, as antigas composições eram tão rústicas que se exigia tão ou mais força física do que habilidade técnica.
O vagão de madeira também podia ser visitado até pouco tempo
atrás. Entretanto, diversos atos de vandalismo obrigaram a administração a
mantê-lo fechado, infelizmente.
Tratava-se de um equipamento de primeira classe para essa
linha, que, mesmo assim, era de padrão popular, pelos bancos de madeiras sem
estofamento.
Assim como o tempo passa, passa também a realidade de um
determinado momento. Ainda que a linha férrea de Tremembé não tivesse sido
desativada, ela não seria a mesma. As composições a vapor não são mais
utilizáveis, tirante a motivação turística, e a gare já não seria igual,
tivéssemos trens a óleo ou a energia elétrica. Por isso, não adianta se
lamentar pelo monumento que hoje resta, porque essa é a única forma de ele
ainda existir como era: uma homenagem ao passado.
As coisas têm fim - esse é o fato. Se pensamos em uma linha
reta, tem o momento em que o abismo chega; se pensamos em ciclos, eles se
renovam com muitas diferenças, mas, no fim das contas, ainda que comece outro,
um clico também acaba. As estações acabam, como acaba um namoro, como acaba um
emprego, como acaba a saúde, como acaba a vida. Acabam as ideias, acabam as
espécies, acabam as sociedades e, em um dia meio descuidado, já provavelmente
sem nossa presença, acabará o planetinha azul que boia em um mar de vácuo. Se
tudo isso acaba, será que a filosofia um dia acabará?
Desde já, vamos colocar o óbvio. Sendo uma atividade
exclusivamente humana, o pensamento morre se a espécie morrer. Sendo assim, não
vou considerar meteoros ou vírus conspiratórios, e não é sobre isso que eu
quero dissertar.
O que poderiam ser motivadores do fim de uma atividade
humana? De cara, pensamos na sua obsolescência. Nós não usamos mais máquinas de
escrever porque os computadores as superaram com muitas vantagens. Isso se
aplica a inúmeras coisas, passando por trens a vapor e, talvez, filosofia. Nos
seus primórdios, a filosofia tinha todo um universo a explorar, assim como se
fosse uma nave espacial partindo pelo espaço sideral do conhecimento. A
diferença fundamental é a ausência da tal nave, ou seja, do instrumental
necessário para explorar esse mesmo universo. A comparação com a nave é de todo
cabida, porque as primeiras preocupações filosóficas que existiram na antiga
Grécia eram altamente imbricadas com a ciência, tanto que os primeiros
pensadores eram conhecidos como filósofos da physis, justamente por
estarem preocupados com a arché,
o componente fundamental de toda a realidade. Essa busca pela essência, é bem
verdade, não excluía um componente metafísico, mas sempre voltava seu olhar
para os tijolinhos que constituíam a realidade em si mesma, fosse ela
constituída por pedrinhas, fosse constituída pelo bafo dos deuses. Terra,
fogo,
água
e ar,
todos
juntos ou separados, foram pesquisados mentalmente, a única ferramenta
disponível, que funciona até hoje como geratriz de ideias. Sendo assim, o olhar
cosmológico desses filósofos já vinha colado com a ciência, mas esse era ainda
um sonho distante, um espírito da curiosidade e da descoberta, e não uma área
que se servisse de instrumentos e anotações. A lógica era o substrato do
pensamento, e não as experiências metódicas.
É bem evidente que esse caminho foi ficando para trás, já
poucos séculos depois, mas mormente nos dias atuais, quando o filosofar já
cessa nos primeiros movimentos que delineiam um ato empírico, mesmo que não
seja factível naquele momento. Explicando: quando alguém pensa no multiverso,
está devaneando. Quando coloca em princípios lógicos, passa a filosofar. Ao
propor modos de experienciá-lo, já aí estamos no âmbito científico. Demócrito
falou da realidade feita de átomos, e isso ficou aguardando mais de dois
milênios para ganhar contorno experimental. Hoje, eu filosofo qualquer novidade
e a coisa já entra no laboratório. Digamos que uma prova do multiverso seria a
possibilidade de medir diferentes acelerações da gravidade em diferentes pontos
do universo. Isso ainda hoje não é possível de fazer, mas o caminho para provar
(e para falsear) já está dado; não temos mais filosofia, temos ciência.
Outra abordagem que podemos seguir é a ausência do
surgimento de grandes sistemas filosóficos, que abranjam diversas áreas do
conhecimento e interajam entre si. Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino,
Kant e Hegel são bons exemplos de filósofos que procuraram desvendar amplos
espectros do conhecimento, de modo a instituir sistemáticas completas de
pensar. Falaram de tudo, desde aspectos metafísicos até estéticos, passando por
epistemologia e amplas discussões éticas, com seus vários desdobramentos.
Quais seriam então as grandes novidades da filosofia? Tudo o
que veio pelo ramal de Hegel foram as críticas ao seu sistema, como Marx,
Bauer, Schopenhauer e Nietzsche. O que veio após Kant foram aperfeiçoamentos,
mesmo que compusessem grandes correntes, como a fenomenologia. Até mesmo a
filosofia da religião não é novidade, porque são remoçamentos da escolástica
ou, no máximo, adaptações do marxismo, como é o caso da teologia da libertação.
Por fim, tem aquela velha pergunta que coloca a filosofia
como encerrada antes mesmo de começar, morrendo sem nascer: filosofia para quê?
Em um mundo onde cada vez mais estamos impregnados de técnica, cada vez menos a
via da explicação vem pela especulação pura. “A filosofia é o conhecimento com
o qual e sem o qual o mundo fica tal e qual” é um gracejo já antigo, mas que
muitas vezes parece fazer sentido. O saber filosófico tem aspectos totalizantes
- a ideia de essência busca trazer o que há de comum em todos os elementos de
um determinado objeto, ou busca um aspecto crítico e problematizador de itens
morais. Não naquele aspecto do ético, mas descendo ao nível de se perguntar o
que é a própria ética, para dar um exemplo. Mas o que nós temos se distancia tanto
desse nível de profundidade que nada muda, no meu ato de escutar uma música,
saber se ela pertence à escola estética X ou Y, se versa sobre aspectos
metafísicos tais e tais, se tende ao pensamento de fulano ou sicrano. Tudo o
que me basta é que a música me agrade. Punto, finito. A sensação que dá
é que a filosofia é um empreendimento superado, mesmo que não seja impossível
de continuar existindo. Não tem mais nada a dizer, mais nada que não possa ser mais
bem esclarecido por outras vias.
Na verdade, eu naveguei, naveguei e criei o problema apenas por me afastar do conceito fundamental da filosofia. Notem que toda essa discussão sobre fim da filosofia, todo esse debate sobre superação da filosofia e sobre como os novos temas que não mais surgem, nada mais são do que filosofar.
Só não dá para dizer que filosofamos a cada instante porque
dividimos nosso pensamento com o senso comum. Claro: se não tivéssemos um
pensamento irreflexivo, mais próximo de gabaritos pré-prontos, provavelmente
não existiríamos como espécie. Mas mesmo o mais bronco dos contribuintes tem
algum momento em que se põe a refletir. Como raciocinar é inerente ao ser
humano, filosofar também é.
O que nos leva a filosofar é a realidade circunstante. E
essa realidade é moldada pelo tempo, não só cronológico, mas aquela espécie de
tempo espiritual que Hegel deu o nome de Zeitgeist. Esse espírito do
tempo (dado pela interação entre a realidade vivida e o ambiente que nos cerca).
A realidade não é só o mundo palpável, mas o que as nossas consciências projetam
sobre ele. A maneira como tudo isso acontece é o que chamamos de História. Não
só vivemos a história, mas pensamos a história, damos sentido a ela e a influenciamos.
Só percebemos isso quando paramos para pensar.
Assim, a verdade é que a filosofia se confunde com a própria
história, conforme dizia o poeta filosófico (ou seria filósofo poético?)
Friedrich Schlegel, que, de tão pouco se filosofar sobre a própria filosofia,
pouco se sabe sobre ela mesma. É impossível estabelecer limites sobre a
interação do que vivemos com o que pensamos. É costume dizer que a filosofia
ocidental principia com Tales de Mileto, mas isso é uma mera convenção. É
evidente que se praticava pensamento filosófico não somente antes de Tales, mas
também em outros lugares que não eram a Magna Grécia. Isso se aplica a qualquer
momento, em qualquer lugar. A filosofia se entrelaça com a história porque
sempre há lógica e intenções por trás da ação humana. A grande diferença está
no objeto: a história desenrola os fatos; a filosofia, as reflexões. Como essas
reflexões são sobre os fatos, eis que ambos se imiscuem de maneira quase
apaixonada. Parafraseando Renato Russo, uma completa a outra e vice-versa, que
nem feijão com arroz. Isso porque, novamente, não há como dissociar a história
dos homens, e não há como dissociar os homens de suas reflexões. Sempre,
enquanto houver história, haverá filosofia.
Em adição, quando comparamos filosofia e ciência, cometemos
um erro categorial. Nós subimos muito um sarrafo que a filosofia não precisa
saltar, que é a barreira da prova. É fundamentalmente a mesma coisa que
acontece quando se tenta cientificizar uma religião. O escopo dessa última não
é (ou não deveria ser) provar a existência de um deus, mas de fornecer
subsídios para a manutenção de uma fé. Com a filosofia é parecido. Ela busca
substratos de realidade que vão além do mundo tangível. A filosofia não precisa
ficar adstrita a isso, porque ela prescinde de provas. Sua matéria-prima é o
pensamento racional, o raciocínio bem concatenado, a lógica, e por isso é
chamada de mãe do conhecimento.
Isso tudo posto, é bobagem pensar em um fim da filosofia,
porque nem mesmo o mais bronco dos homens das cavernar deixou de ter seus
momentos de reflexividade. É disso que se alimenta e diferencia a espécie
humana. A não ser que chegue o meteoro ou o vírus malvadão. Aí sim, a filosofia
acaba. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Citei um autor interessante, que é muito dado a aforismos
que misturam literatura com filosofia. Segue uma boa indicação.
SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos Críticos. In: O
Dialeto dos Fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 2000.
Com relação à estação…
Estação Ferroviária de Tremembé
Rua Albuquerque Lins, 231
Bom Jesus
Tremembé/SP
A aproximadamente 140km do centro de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário