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segunda-feira, 27 de maio de 2024

Navegações de cabotagem – a Estação Ferroviária de Tremembé e o fim da filosofia

(Se tudo acaba, por que a Filosofia não deveria acabar? Mas ela não termina sem que tudo o mais termine)

“História não é nada senão Filosofia, e esses nomes poderiam ser totalmente trocados”

Schlegel

 

Olá!

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Eu corro atrás de cafés, como já falei inúmeras vezes por aqui. Isso inclui não somente a Paulicéia Desvairada, mas os lugares para onde viajo e as paragens onde meus filhos moram: Curitiba, o moleque mais velho; Taubaté, a menina mais nova. Nesta última, já dominei todos os estabelecimentos onde se serve o produto da rubiácea, e há alguns muito bons. Só que eles não são tantos, e a síndrome ectodemomaníaca me impulsiona para as cidades ao redor da metrópole taubateana, Tremembé inclusa.

Certa feita, numa tarde de domingo, pesquisei uma casa que, em tese, produziria o café mais bem votado da região, e, pelas indicações, estava sempre aberto, prontinho para nos receber. Bem, estava fechado. Tinha um sol na tampa da cabeça de cada contribuinte, e o impulso inicial foi de pegar a mesma estrada de volta. Mas fomos dar uma volta, para achar uma água de coco ou coisa parecida. Achamos, no final das contas, a antiga estação ferroviária da cidade. Não custa dar uma olhada.

Criada para escoar a produção de arroz dos terrenos alagadiços da base da Mantiqueira, a estação foi construída por monges trapistas para se coligar ao eixo principal da ferrovia Central do Brasil, que ligava os dois principais polos consumidores brasileiros, Rio e São Paulo.

Com o advento da multiplicação das rodovias, as linhas de ferro foram ficando mais e mais de lado, sendo que somente o ramal principal ainda funciona nessa região, com exclusivo transporte de carga.

Os artigos ferroviários viraram artigos de museu desde então, e as marias-fumaça são lembradas com saudades por seus antigos usuários, como já vi em tantos lugares, mas não mais como equipamentos de uso, mas como pitorescos recursos turísticos.

Este modelo tem origem suíça, e foi cedido pela prefeitura de Taubaté para enriquecer o acervo deste pequeno empreendimento. Antigamente, ficava no Parque do Vale do Itaim, e foi transferida para a estação para torná-la um cartão postal.

A administração permite que a locomotiva seja visitada, para que se note como o duplo trabalho de “pilotar” e manter o funcionamento era árduo, principalmente pelas altas temperaturas que eram atingidas.


Se comparadas aos atuais equipamentos do metrô, por exemplo, as antigas composições eram tão rústicas que se exigia tão ou mais força física do que habilidade técnica.

O vagão de madeira também podia ser visitado até pouco tempo atrás. Entretanto, diversos atos de vandalismo obrigaram a administração a mantê-lo fechado, infelizmente.

Tratava-se de um equipamento de primeira classe para essa linha, que, mesmo assim, era de padrão popular, pelos bancos de madeiras sem estofamento.

Assim como o tempo passa, passa também a realidade de um determinado momento. Ainda que a linha férrea de Tremembé não tivesse sido desativada, ela não seria a mesma. As composições a vapor não são mais utilizáveis, tirante a motivação turística, e a gare já não seria igual, tivéssemos trens a óleo ou a energia elétrica. Por isso, não adianta se lamentar pelo monumento que hoje resta, porque essa é a única forma de ele ainda existir como era: uma homenagem ao passado.

As coisas têm fim - esse é o fato. Se pensamos em uma linha reta, tem o momento em que o abismo chega; se pensamos em ciclos, eles se renovam com muitas diferenças, mas, no fim das contas, ainda que comece outro, um clico também acaba. As estações acabam, como acaba um namoro, como acaba um emprego, como acaba a saúde, como acaba a vida. Acabam as ideias, acabam as espécies, acabam as sociedades e, em um dia meio descuidado, já provavelmente sem nossa presença, acabará o planetinha azul que boia em um mar de vácuo. Se tudo isso acaba, será que a filosofia um dia acabará?

Desde já, vamos colocar o óbvio. Sendo uma atividade exclusivamente humana, o pensamento morre se a espécie morrer. Sendo assim, não vou considerar meteoros ou vírus conspiratórios, e não é sobre isso que eu quero dissertar.

O que poderiam ser motivadores do fim de uma atividade humana? De cara, pensamos na sua obsolescência. Nós não usamos mais máquinas de escrever porque os computadores as superaram com muitas vantagens. Isso se aplica a inúmeras coisas, passando por trens a vapor e, talvez, filosofia. Nos seus primórdios, a filosofia tinha todo um universo a explorar, assim como se fosse uma nave espacial partindo pelo espaço sideral do conhecimento. A diferença fundamental é a ausência da tal nave, ou seja, do instrumental necessário para explorar esse mesmo universo. A comparação com a nave é de todo cabida, porque as primeiras preocupações filosóficas que existiram na antiga Grécia eram altamente imbricadas com a ciência, tanto que os primeiros pensadores eram conhecidos como filósofos da physis, justamente por estarem preocupados com a arché, o componente fundamental de toda a realidade. Essa busca pela essência, é bem verdade, não excluía um componente metafísico, mas sempre voltava seu olhar para os tijolinhos que constituíam a realidade em si mesma, fosse ela constituída por pedrinhas, fosse constituída pelo bafo dos deuses. Terra, fogo, água e ar, todos juntos ou separados, foram pesquisados mentalmente, a única ferramenta disponível, que funciona até hoje como geratriz de ideias. Sendo assim, o olhar cosmológico desses filósofos já vinha colado com a ciência, mas esse era ainda um sonho distante, um espírito da curiosidade e da descoberta, e não uma área que se servisse de instrumentos e anotações. A lógica era o substrato do pensamento, e não as experiências metódicas.

É bem evidente que esse caminho foi ficando para trás, já poucos séculos depois, mas mormente nos dias atuais, quando o filosofar já cessa nos primeiros movimentos que delineiam um ato empírico, mesmo que não seja factível naquele momento. Explicando: quando alguém pensa no multiverso, está devaneando. Quando coloca em princípios lógicos, passa a filosofar. Ao propor modos de experienciá-lo, já aí estamos no âmbito científico. Demócrito falou da realidade feita de átomos, e isso ficou aguardando mais de dois milênios para ganhar contorno experimental. Hoje, eu filosofo qualquer novidade e a coisa já entra no laboratório. Digamos que uma prova do multiverso seria a possibilidade de medir diferentes acelerações da gravidade em diferentes pontos do universo. Isso ainda hoje não é possível de fazer, mas o caminho para provar (e para falsear) já está dado; não temos mais filosofia, temos ciência.

Outra abordagem que podemos seguir é a ausência do surgimento de grandes sistemas filosóficos, que abranjam diversas áreas do conhecimento e interajam entre si. Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Kant e Hegel são bons exemplos de filósofos que procuraram desvendar amplos espectros do conhecimento, de modo a instituir sistemáticas completas de pensar. Falaram de tudo, desde aspectos metafísicos até estéticos, passando por epistemologia e amplas discussões éticas, com seus vários desdobramentos. 

Quais seriam então as grandes novidades da filosofia? Tudo o que veio pelo ramal de Hegel foram as críticas ao seu sistema, como Marx, Bauer, Schopenhauer e Nietzsche. O que veio após Kant foram aperfeiçoamentos, mesmo que compusessem grandes correntes, como a fenomenologia. Até mesmo a filosofia da religião não é novidade, porque são remoçamentos da escolástica ou, no máximo, adaptações do marxismo, como é o caso da teologia da libertação.

Por fim, tem aquela velha pergunta que coloca a filosofia como encerrada antes mesmo de começar, morrendo sem nascer: filosofia para quê? Em um mundo onde cada vez mais estamos impregnados de técnica, cada vez menos a via da explicação vem pela especulação pura. “A filosofia é o conhecimento com o qual e sem o qual o mundo fica tal e qual” é um gracejo já antigo, mas que muitas vezes parece fazer sentido. O saber filosófico tem aspectos totalizantes - a ideia de essência busca trazer o que há de comum em todos os elementos de um determinado objeto, ou busca um aspecto crítico e problematizador de itens morais. Não naquele aspecto do ético, mas descendo ao nível de se perguntar o que é a própria ética, para dar um exemplo. Mas o que nós temos se distancia tanto desse nível de profundidade que nada muda, no meu ato de escutar uma música, saber se ela pertence à escola estética X ou Y, se versa sobre aspectos metafísicos tais e tais, se tende ao pensamento de fulano ou sicrano. Tudo o que me basta é que a música me agrade. Punto, finito. A sensação que dá é que a filosofia é um empreendimento superado, mesmo que não seja impossível de continuar existindo. Não tem mais nada a dizer, mais nada que não possa ser mais bem esclarecido por outras vias.

Na verdade, eu naveguei, naveguei e criei o problema apenas por me afastar do conceito fundamental da filosofia. Notem que toda essa discussão sobre fim da filosofia, todo esse debate sobre superação da filosofia e sobre como os novos temas que não mais surgem, nada mais são do que filosofar.

Só não dá para dizer que filosofamos a cada instante porque dividimos nosso pensamento com o senso comum. Claro: se não tivéssemos um pensamento irreflexivo, mais próximo de gabaritos pré-prontos, provavelmente não existiríamos como espécie. Mas mesmo o mais bronco dos contribuintes tem algum momento em que se põe a refletir. Como raciocinar é inerente ao ser humano, filosofar também é.

O que nos leva a filosofar é a realidade circunstante. E essa realidade é moldada pelo tempo, não só cronológico, mas aquela espécie de tempo espiritual que Hegel deu o nome de Zeitgeist. Esse espírito do tempo (dado pela interação entre a realidade vivida e o ambiente que nos cerca). A realidade não é só o mundo palpável, mas o que as nossas consciências projetam sobre ele. A maneira como tudo isso acontece é o que chamamos de História. Não só vivemos a história, mas pensamos a história, damos sentido a ela e a influenciamos. Só percebemos isso quando paramos para pensar.

Assim, a verdade é que a filosofia se confunde com a própria história, conforme dizia o poeta filosófico (ou seria filósofo poético?) Friedrich Schlegel, que, de tão pouco se filosofar sobre a própria filosofia, pouco se sabe sobre ela mesma. É impossível estabelecer limites sobre a interação do que vivemos com o que pensamos. É costume dizer que a filosofia ocidental principia com Tales de Mileto, mas isso é uma mera convenção. É evidente que se praticava pensamento filosófico não somente antes de Tales, mas também em outros lugares que não eram a Magna Grécia. Isso se aplica a qualquer momento, em qualquer lugar. A filosofia se entrelaça com a história porque sempre há lógica e intenções por trás da ação humana. A grande diferença está no objeto: a história desenrola os fatos; a filosofia, as reflexões. Como essas reflexões são sobre os fatos, eis que ambos se imiscuem de maneira quase apaixonada. Parafraseando Renato Russo, uma completa a outra e vice-versa, que nem feijão com arroz. Isso porque, novamente, não há como dissociar a história dos homens, e não há como dissociar os homens de suas reflexões. Sempre, enquanto houver história, haverá filosofia.

Em adição, quando comparamos filosofia e ciência, cometemos um erro categorial. Nós subimos muito um sarrafo que a filosofia não precisa saltar, que é a barreira da prova. É fundamentalmente a mesma coisa que acontece quando se tenta cientificizar uma religião. O escopo dessa última não é (ou não deveria ser) provar a existência de um deus, mas de fornecer subsídios para a manutenção de uma fé. Com a filosofia é parecido. Ela busca substratos de realidade que vão além do mundo tangível. A filosofia não precisa ficar adstrita a isso, porque ela prescinde de provas. Sua matéria-prima é o pensamento racional, o raciocínio bem concatenado, a lógica, e por isso é chamada de mãe do conhecimento.

Isso tudo posto, é bobagem pensar em um fim da filosofia, porque nem mesmo o mais bronco dos homens das cavernar deixou de ter seus momentos de reflexividade. É disso que se alimenta e diferencia a espécie humana. A não ser que chegue o meteoro ou o vírus malvadão. Aí sim, a filosofia acaba. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Citei um autor interessante, que é muito dado a aforismos que misturam literatura com filosofia. Segue uma boa indicação.

SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos Críticos. In: O Dialeto dos Fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 2000.


Com relação à estação…

Estação Ferroviária de Tremembé

Rua Albuquerque Lins, 231

Bom Jesus

Tremembé/SP 

A aproximadamente 140km do centro de São Paulo 

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