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segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 70º tomo: o non causae ut causae (falsa causa)

(Sequências que fazem sentido nem sempre são expressão da verdade)

Olá!

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Eu falo muito sobre café, e tenho até mesmo uma série que fala sobre o tema, mas aqui não teremos o saboroso líquido como foco. Na verdade, eu quero usá-lo apenas como mote para desenvolver assunto de outra série. Vocês entenderão.

Há um confronto de baixo impacto entre os bebedores de café, sintetizado pela discussão “com ou sem açúcar”. Isso se dá de poucos anos para cá, quando uma camada da população resolveu pagar mais caro para ter café de melhor qualidade. Explica-se. O Brasil é o maior produtor mundial deste produto, mas o que havia de melhor sempre seguia para a Gringolândia. Quer dizer… ainda segue, mas o pessoal resolveu tentar entender o que estávamos perdendo, mesmo que com custo pouco convidativo, e desviou alguns pacotes para o mercado interno. E começou-se, com isso, a falar de termos que não se usavam nas padarias, como café especial, pontuação, grão X, grão Y, BSCA, número de moagem. E daí vem um universo novo, que fala sobre os cafés que não bebíamos, seus linguajares e cuidados: blooming, baristas, tempo de escoamento, bouquet, cupping, terroir, retrogosto, notas, notas e mais notas.

Aí vem o embate. Para aqueles que gostam do café tradicional, os novos apreciadores são arrogantes que gostam de “chafé”, um liquidozinho insípido que disfarça o alto custo nas pequenas quantidades. Que os “bons tempos” marcaram sua vida com um aroma forte, presente, que se espalhava pelas casas e pelos comércios, e o cafezinho de madame só é caro e fraco. Para os rivais, os cafezeiros da antiga se assemelham a porcos que pisam sobre pérolas. Extraem uma zurrapa cujo gosto amargo somente é resolvido com colheradas industriais de açúcar ou jatos ciclópicos de adoçante. E daí o que temos é uma espécie de melaço borrento, que já faz arder o estômago só de pensar. Deem um pincel a um macaco e ele produzirá macaquices, ainda que se usem pelos de marta e tintas renomadas, é o parecer dos esnobes.

Quando as coisas chegam neste ponto, a ninguém assiste razão. Eu me coloco no lugar neutro de quem observa da arquibancada, principalmente porque nunca deixei de tomar o café tradicional, eis que a sociabilidade exige, e radicalismos são para fanáticos. Mas, sim, sou entusiasta dos cafés especiais e acho que há uma torrente de argumentos para preferi-lo. A primeira razão vem de uma alegoria dos churrascos: a melhor picanha é indistinguível da mais ordinária pelanca quando ambas estão calcinadas. O mesmo vale para o grão de café. Excessivamente torrados, não se diferenciam uns dos outros, e tudo cai na mesma vala comum do sabor de carbono. Entre os cafés especiais, é possível perceber aquilo que se costuma chamar de "notas" - compostos orgânicos que sugerem certos sabores e que dão colorido único a um grão específico: sabores puxados para frutos, flores, castanhas, especiarias, chocolates, o que torna cada café bebido uma experiência única*. Preparar um café em prensa, infusão ou filtro faz com que se sintam nuances distintas de um mesmo grão. Nada disso se consegue com os cafés tradicionais, cuja variação só se dá na intensidade do amargor, o que fará exigir mais ou menos edulcorantes, seja açúcar ou adoçante. Aliás, neste ponto, vem o muro de Berlim dos bebedores de café, e dele brota um dos principais argumentos para que os apreciadores de café especial pisem na turma tradicional: café é um fruto, que não precisa de açúcar porque, sendo um fruto, já é doce. Aí, não é verdade. Aí, é falácia.

Vamos lá justificar por quê. O que é um fruto? Tecnicamente, é o desenvolvimento do ovário de uma flor, uma estrutura algo semelhante ao que temos em mamíferos, com a diferença de que, nas fêmeas, o ovário permanece, enquanto nas plantas o mesmo acaba virando uma proteção para as sementes, e se vai junto com elas para a terra, de onde brotarão novos exemplares. Aquilo que chamamos de frutos nem sempre os são, na real. Maçãs são um exemplo clássico - o verdadeiro fruto da macieira é aquela parte cascuda próxima das sementes. A parte polpuda que comemos, na verdade, é a expansão do receptáculo da flor, e não do ovário.

Já “fruta” é um nome genérico para aquilo que vemos nas bancas das feiras. Não faz diferença para Dona Maria e seo Zeca se abacaxis são infrutescências, se morangos são acessórios agregados ou se pêssegos são drupas, ou até mesmo se cocos são sementes. Ali, tudo é fruta, uma coisa muito mais coloquial. Entretanto, para o que queremos aqui, vamos tratar frutas e frutos como sinônimos. Isso porque o café, aquele coquinho vermelho ou amarelo, é uma fruta. Vem de uma florzinha branca muito bonita, que deriva para uma pequena esfera que contém uma semente normalmente bipartida. Se você pegar uma dessas madura, verá que realmente é doce, sem nenhuma remissão ao sabor ao qual estamos acostumados.

Dito tudo isso, vamos ponderar. O fato de ser um fruto não faz com que o tal se torne automaticamente doce. Um limão já é exemplo bastante - não há que se falar em doçura neste caso. Jiló é fruto, e é amargo; berinjela é fruto, e seu teor de doçura é baixo. Portanto, o primeiro aspecto desta conversa já fica vencido: ser fruto não é significado de dulçor.

Mas ainda podemos parecer perniciosos, alegando que o café é, sim, uma fruta doce, desde que esteja madura e etc. Sim, meu amigo, é verdade. Há até o costume de se preparar chás com sua cáscara, que, aliás, são bem gostosos. Só que o que é torrado e moído não é a polpa do fruto, a parte doce, mas a semente, e esta, se formos prosseguir com a analogia, costuma puxar para o amargo, vide caroços de maçã, laranja ou limão.

Então de onde vem o alegado dulçor do café? Ocorre que o sabor da semente crua do café é bastante adstringente, com aquela sensação de apertoso da cica do caju ou da banana verde. Isso não significa, entretanto, que não haja nenhum açúcar lá. Quando se faz o processo da torra, entra em ação um fenômeno químico conhecido como “reação de Maillard”. Esta foi descrita pelo químico francês Louis Camille Maillard, e se trata, muito superficialmente, do escurecimento de alimentos contendo açúcares e proteínas submetidos a uma elevação de temperatura. Deriva de complexas interações químicas que não competem ser esmiuçadas aqui, bastando que se saiba que produz aquela casquinha amarronzada do pão já assado, ou da superfície de um belo bife, ou ainda do doce de leite, para citar três exemplos. O grão de café também sofre a reação de Maillard, e, aplicada até uma certa faixa de temperatura, faz a condensação dos açúcares existentes no grão, e é daí que vem o sabor adocicado da bebida, o que a permite ser ingerida sem a adição de açúcar ou adoçantes.

Só que há um limite para que a reação de Maillard deixe de funcionar. Após uma determinada temperatura, os açúcares despertados pela reação passam por uma pirólise que resulta na separação de um composto carbônico, que significa, em nome mais acessível, uma carbonização. Em uma tradução para lá de livre, isso é “transformar em carvão”. Quem já foi criança e colocou um pedaço de carvão na boca sabe o quanto seu gosto é desagradável. Os açúcares carbonizados são intensamente amargos, e é exatamente isso que acontece com o pão que vira torrão, com a carne que vira sola, o doce de leite que vira bolacha e com o café de torra escura. Ele não é amargo por uma natureza do grão, mas porque foi torrado em excesso, e carbonizado. Junte-se a isso o fato de que a cafeína é, de fato, um composto amargo, mas uma torra feita no ponto certo supera esse “defeito”. Portanto, o ponto certo da torra é essencial para extrair de um café todo o seu potencial; nem tão claro que não interrompa sua adstringência, nem tão escuro que faça destacar o amargor. 

Os cafés ditos tradicionais são torrados em um ponto que já se atingiu a carbonização, e isso tem um motivo: qualquer café pode entrar lá, porque a carbonização é democrática, fazendo tudo ficar amargo, desde o grão nobre, até as patifarias das palhas e gravetos. O fato é que, no sabor, pouca diferença faz. Passamos anos e mais anos nos conformando com isso, como se fosse uma verdade absoluta, um destino inevitável. Isso tudo já são motivos suficientes para ao menos experimentarmos o que há no café que está nas xícaras dos estrangeiros, mas, voltando ao tema em si, não nos autoriza a usar argumentos errôneos. A historinha de que o café é doce porque é fruto, já devidamente desmistificada, é uma falácia de garboso nome em latim, non causae ut causae, que significa “tomar como causa o que não é causa”. Mais facilmente, é a falácia da falsa causa.

A falsa causa é uma falácia informal onde é atribuída uma origem errônea para um fenômeno qualquer. É super comum de acontecer e tem a ver com aquela velha necessidade de explicar tudo, ou de se levar vantagem em um discurso. No primeiro caso, pode ser feita sem malícia, apenas pela força das intenções. Já no segundo, a atribuição da falsa causa torna-se uma técnica para direcionar o debate de acordo com o interesse da parte que a profere.

É muito semelhante à falácia da correlação de coincidência, com a vital diferença de que o fator temporal não é significativo na primeira. Reputa-se uma fruta como doce independentemente de que fenômeno acontece primeiro, enquanto na correlação é necessário que exista uma sequência.

Os exemplos são inúmeros, porque se trata de falácia comum, como se pode perceber de sua dinâmica, que é muito maleável. Vou dar mais uma história, para ficar bem claro. Cemitérios eram locais tão sagrados quanto as igrejas, pelo menos até a década de 80, e profanar o corpo de um morto equivalia a cometer uma heresia do tipo blasfêmia medieval. Acontece que, de lá para cá, os cemitérios viraram locais perigosos, propícios a roubos não só dos mortos, mas dos vivos também. Já motivos para isso. São lugares ermos, principalmente aqueles de capelinhas, com muitos objetos de algum valor (alguns de bastante). Os mortos podem carregar joias, peças de estimação que custam uns bons cobres, alianças, e até dentes de ouro, coisa que só os mais velhos ainda têm. Fiscalizar toda a área de grandes necrópoles é uma questão complicada, porque a área é extensa e os esconderijos são muitos. Então o negócio de furto aos defuntos tem suas vantagens, adicionando-se outros negócios paralelos que foram se juntando, como o tráfico de drogas, novamente favorecido pela estrutura própria de um cemitério. Além disso, virou também uma moradia semelhante à que temos nas ruas, com a vantagem de se colocar em proteção contra intempéries. O principal ingrediente é o sangue frio de se viver à noite no campo dos mortos e o estômago de invadir suas covas.

Bem, os motivos. Por que os cemitérios chegaram nesse estado de coisas? Em toda reportagem que leio/ouço/assisto, há uma variedade de causas, e sempre tem uma que aponta para a "falta de Deus no coração". Como as pessoas não tem mais, passam a desrespeitar tudo, até os mortos.

Não consegui achar nenhuma estatística que fale da religiosidade dos meliantes de cemitérios, então dei uma comparada entre os religiosos nos presídios e na população em geral, e a discrepância não é tão destacada entre ambas a ponto de justificar a hipótese. A quantidade de ocorrência zero até a década de 80 para os boletins quase diários de hoje em dia não pode ser explicada por essa causa. No caso, a queda no nível de religiosidade das pessoas seria um componente ínfimo de um conjunto complexo de causas, que inclui impunidade, insensibilidade à miséria, queda de investimentos públicos, aumento global da criminalidade, deficiência no sistema de moradias e um pacote completo de outras coisas mais. Sempre que se tenta dar uma causa única a problemas complexos, recair-se-á na falácia da falsa causa. Por isso é bom ter cuidado com respostas fáceis. Isso inclui os sabores complexos do café especial. Bons ventos a todos!

Recomendações de cafés!

Vou por um caminho alternativo hoje, sem nenhuma verba de patrocínio (que seriam bem vindas). Vou indicar marcas de café que eu adquiro no meu dia-a-dia, e que podem ser compradas pela internet. Das duas primeiras, eu inclusive tenho assinatura, que consiste no envio mensal já programado de determinada quantidade de grãos. Todas elas eu assino embaixo:

Unique: https://uniquecafes.com.br/clube-u/

Crio: https://www.crio.cafe/assinatura-crio

Veroo: https://veroo.com.br/#assine

Kawá/Jotacê: https://www.cafekawa.com.br/cadastro

Casa 134 cafés: https://www.casa134cafes.com.br/nossos-cafezoes

Seleção do Mário: https://cafeselecaodomario.com.br/collections/all

Netcafés: https://loja.netcafes.com.br/

Aceito sugestões nos comentários.

* Não confundir notas com sabores. Notas são muito sutis, que não provém de nenhuma adição ao café, e não é possível dizer que há um gosto de maracujá, por exemplo, mas algumas características que lembram maracujá, como acidez cítrica e presente, além de um corpo levemente espesso. Existe no mercado cafés saborizados, e aí sim, temos adições de elementos para dar algum sabor. São bem comuns a associação com essência de baunilha ou uísque.  

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