(Caras e bocas traduzem uma cena como um todo? É possível ter uma expressão como componente de uma verdade local?)
Olá!
Tal
qual a patroa, eu fiz minha primeira tatuagem em uma idade meio avançada
para o padrão. Os motivos foram quase os mesmos: quando eu podia voltar o foco
dos meus parcos tostões para fazer uma, tínhamos toda uma ojeriza social aos
tatuados, trabalho incluso. Depois, a questão foi se tornando menos
empregatícia e mais orçamentária mesmo, porque não se trata de serviço
exatamente barato. Talvez a grande diferença entre nós foi o momento em que a
vontade surgiu. Eu queria fazer uma ainda menor de idade, cuja aceitação nem
passou em sonhos pela cabeça dos meus pais; já no caso dela a coisa veio bem
mais tarde, já bem adulta, com os filhos já feitos.
Aconteceu de esses últimos tomarem seus rumos, e, embora
ainda surja algum perrengue episódico, o fato é que eles vão se ajeitando e,
com isso, algumas contas ficaram menos salgadas, permitindo projetar gastos
dantes infactíveis. Além disso, a correlação entre tatuagem e mau-caratismo não
faz mais o mesmo sentido, eu tenho emprego fixo e não sujeito a inspeções
corporais e a ampla oferta fez com que os preços dessem uma razoável
arrefecida. Taubaté, aliás, por trás da cara conservadora, tem uma proporção
per capita de estúdios que aparenta a mim (sem nenhum critério estatístico) ser
maior que a de São Paulo. É por lá que fiz os meus rabiscos.
Quando eu fiz minha tatuagem, a patroa estava lá,
perguntando sarcasticamente se eu queria “dar a mãozinha”. Devo confessar que
havia momentos que dava vontade mesmo. Eu fazia caras e bocas de colocar medo
até em um lobo faminto, sempre segundo a consorte. Eu sei que eu sou meio
careteiro mesmo, até porque as agulhadas atingem uns pontinhos de fato mais
nevrálgicos, e aí o esgar é de rigor. Mas também não foi para tanto, a ponto de
já ter feito uma segunda e estar a caminho da terceira. E acho que aí chega.
Ou não.
Mas não é sempre que minhas expressões são exacerbadas. No
próprio dia-a-dia, nós costumamos mudar de cara de acordo com as
circunstâncias, até mesmo porque essa é uma forma involuntária (às vezes) de
expressão. Acontece eventualmente de que tanto a patroa quanto a patroinha (o
moleque mais velho nunca) olhem para minha cara e digam que algo não vai bem.
Tem momentos em que é verdade. Como eu já disse por
aqui, meu trabalho fundamentalmente consiste em tomar pressão no lombo, e,
por vezes, isso é incômodo, ou aflitivo, ou provoca raiva, tédio, medo. Então é
natural que a expressão mude. Mas tem vezes que não. Eu estou simplesmente na
minha e vem a inquirição repentina. Segue um diálogo comum nessas ocasiões:
Patroa: “Você tá com a cara esquisita”
Eu: “Eu?”
Patroa: “É. Aconteceu alguma coisa?”
Eu: “Não… Eu tô com a cara esquisita?”
Patroinha: “Tá sim, eu também percebi”
Eu (começando a me incomodar): “Não. É coisa da
cabeça de vocês”
Patroa: “Tá vendo?”
Patroinha: “É. O que aconteceu?”
Eu (já irritado): “Nada, gente. Tá tudo como sempre”
Patroa: “Bom, se você não quer falar, não tenho como
ajudar”
(e assim por diante)
Mais do que irritado, eu fico bolado. Por que minha cara de
judeu de todo santo dia causa espécie quando não há nenhum motivo para tanto? O
que acontece para que as pessoas achem que você está calmo em plena borrasca ou
nervoso quando está deitado na nuvem?
Eu reflito nessas coisas e, de repente, me pego olhando para
a mesma patroa, que está cabisbaixa na poltrona da sala, e consigo vê-la daqui
de minha bancada. Parece entristecida, como se estivesse nostálgica ou
frustrada. Fico remexendo nos meus fantasmas e perguntando a mim mesmo se tenho
cuidado bem dela, como me comprometi ao lhe tirar da casa do pai. Fico me
questionando se tenho realmente sido um bom companheiro, se não sou mais
estúpido do que o tolerável, se ela não tem frustrações com o amanhã sem
perspectivas, se não se recorda dos bons tempos de juventude e não vê motivos
para se alegrar com o que o futuro a reservou. Vou ficando meio depressivo, e
estou a ponto de ir lá, conversar com ela, quase para pedir desculpas. No que
me impulsiono, ela solta a gargalhada da piada que acabara de ler no celular,
compenetrada. Sinto-me um pouco constrangido comigo mesmo, porque, mesmo que
tenha tido um sentimento de compaixão, meu equívoco foi flagrante. Ou
seja, a brincadeira não acontece somente quando eu sou objeto contemplado, mas
quando eu observo os outros também. E aprendo que o fenômeno não só ocorre
comigo no polo passivo, mas também como uma pessoa que tem sua sensibilidade
adulterada por um contexto que, muitas vezes, é somente imaginado.
Imaginado ou induzido? Essa é a grande questão. As coisas,
como bem sabemos, não se encontram isoladas em um ambiente, como se estivessem
enfiadas em um quartinho de cor neutra. São várias as interações que acontecem
entre os objetos e o meio que os cercam, mesmo que todos os componentes estejam
estáticos. Ora, vejam: nós somos objetos também, e, sendo assim, qualquer um
que nos observe o fará com a influência das nossas cercanias. Uma expressão
pode passar de serena a entediada pelo simples fundo em que está inserido – um
campo florido ou um quarto semiescuro. Há um efeito teórico aplicado em
cinematografia que explora muito desse conceito, o efeito Kuleshov.
O efeito Kuleshov foi sistematizado por Lev Kuleshov, um
teórico de cinema e cineasta russo, que, fundamentalmente, dizia que a
percepção das pessoas é influenciada pela sequência de imagens que lhe é
apresentada em tela, o que pode mudar o sentido original do que é exibido
anteriormente em função daquilo que é apresentado a posteriori. Em miúdos: eu
só fecho um contexto quando tenho um conjunto de impressões maior do que uma
imagem simples.
Tendo essa tese em mente, Kuleshov promoveu um experimento
que se tornaria influente no cinema a partir de então. Como as imagens
originais do experimento se perderam, há algumas versões correntes, todas com o
mesmo suposto resultado, mas a mais clássica é a que segue: Kuleshov montou
três sequências de três fotogramas, sendo que a sequência seria o close no
rosto impassível de um ator, seguido por uma cena variável e pelo retorno ao
close no ator. Na primeira sequência, o ator observa um prato de sopa; na
segunda, um caixão com uma criança morta e, na terceira, uma mulher lúbrica. É
importante reforçar que a expressão do close é sempre igual, nas três sequências.
Perguntando a entrevistados que sentimentos eles achavam que o personagem tinha
diante de cada uma das cenas, para a primeira falou-se em fome, para a segunda
em luto e, para a terceira, em excitação.
Isso demonstra, segundo Kuleshov, a importância da montagem
no universo do cinema. A maneira como as cenas se sequenciam são de vital
importância para que o espectador construa mentalmente a narrativa, e o diretor
precisa levar isso em conta se quiser participar desta formação ativamente. É
possível brincar com o efeito. O que eu quero fazer com a faca que tenho em
mãos? Cortar uma carne, ferir uma pobre transeunte ou colher um mamão?
A grande pergunta é: a expressão é sempre a mesma; como ela
ganha o sentido que lhe é atribuído? Como ela faz “adivinhar” o que o
protagonista pensa? Eu não sou da área de psicologia, mas sou curioso, e vou
tentar uma resposta através de duas correntes. Quem quiser divergir e me
ensinar alguma coisa, fique à vontade nos comentários.
A primeira é que fazemos associações por conta de estímulos
que recebemos durante toda a nossa vida. Embora nossas reações imediatas sejam
instintivas, o fato é que elas não são unívocas. Basta que se pense nas pessoas
que caem na gargalhada nas situações mais dramáticas possíveis. É algo
absolutamente inesperado, mas possível – o famoso rir de nervoso. Sendo assim,
a expressão impassível fica dentro do escopo das possibilidades de reações.
Afinal de contas, temos a sensação de que o ator está "travado"
diante de qualquer uma das situações. Mas nós não fazemos essa associação
porque a temos em nós espontaneamente, e sim porque as observamos nos outros.
Então, a cada vez que vemos uma pessoa reagindo à fome, à morte ou à libido,
registramos sua reação e a colocamos na nossa coletânea de possibilidades. Cada
observação de reações é um estímulo para que reforcemos a maneira com a qual
enxergamos o mundo. Como a impassividade está nesse rol, fazemos facilmente a
associação do contexto, mesmo que seja a mera junção de recortes. Esse é o
caminho que vem do behaviorismo.
O resumo então é muito simples. Julgamos as expressões das
pessoas porque temos uma habitualidade que lhe dá base. Acostumamo-nos a ver as
pessoas fazendo caras e bocas para determinadas situações, e, com isso,
emprestamos esse sentido que temos guardados em nós para situações que, talvez,
não sejam exatamente o que pensamos. Isso acontece porque podemos tentar prever
comportamentos com base naquilo que constantemente observamos no mundo.
Por outro lado, temos que a realidade é toda constituída por
um continuum. Os retratos são pinçados da realidade como quadros que fazem
parte de uma cadeia de causas e consequências, um antes e um depois, em
sucessão infinita. As fitas de cinema são um exemplo perfeito dessa
continuidade - uma longa cadeia de fotogramas que se sucedem logicamente. Essa
montagem lógica da realidade é esperada pelo cérebro, e, mais do que isso, é
procurada por ele. Por isso, furos da realidade posta são desesperadamente supridos
pela cabecinha oca para acomodá-los ao que ela aguarda. Isso possibilita que
sejam vistas coisas que não existem de fato, como no desenho abaixo:
Quem bate o olho percebe que um ramo de grão está sobreposto
por um banner. Só que, se você retirar este último, não verá a continuidade do
galho, mas uma faixa de tinta amarela. Essa complementaridade mental que damos
às coisas permitem fenômenos como as ilusões de ótica, a pareidolia
e outros mais. Situacionalmente, temos o mesmo princípio. Em uma sucessão de
imagens, procuramos formar um nexo causal entre elas, de modo a ter posta a tal
continuidade. A expressão do ator pode ter sido extraída de qualquer uma das
três situações, ou até de nenhuma, mas o fato é que pode ser associada a
qualquer uma delas. Se estivesse fazendo uma pernacchia*, por exemplo,
teríamos um alerta de estranheza ligado, justamente pelo desencaixe do contexto
(o que exigiria de nós novas informações), mas sendo uma expressão neutra,
facilmente dá continuidade às circunstâncias que lhe seguem, justamente por lhe
dar sentido lógico. Esse engodo à mente através das percepções sensoriais, que
traduzem um sentido que isoladamente não existiria é de estudo da psicologia da
gestalt.
Novamente resumindo, temos que nosso cérebro procura fazer
um link abstrato entre diferentes cenas e situações para estabelecer conexões
causais entre elas, da mesma forma que tenta estender imaginariamente as
imagens para conectá-las.
A conclusão é que, seja por uma via ou outra, ou até por
ambas e até outras, é inevitável que haja um componente subjetivo na realidade.
Há uma mente que faz as costuras entre os diferentes componentes que constroem
um ambiente, e cada uma delas doa sentido próprio, formado pelo que há em seu
interior. É por isso que o velho Kant ensinava que não há como se ter acesso à
coisa-em-si: somos exclusivos no universo, e nós, somente nós, vemos a
realidade da forma como vemos.
Como eu disse anteriormente, em matéria de psicologia sou um
mero curioso, mas, como adepto da filosofia, gosto de especular, e estou aberto
a explicações melhores sobre um fenômeno que é possível de perceber
empiricamente, mesmo que não haja comprovações científicas definitivas sobre o
mesmo. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Livro português que trata do efeito Kuleshov:
BERTHOLO, Joanna et al. Efeito Kuleshov. Lisboa: Dois Dias,
2014.
É muito fácil encontrar na internet exemplos do efeito
Kuleshov. Segue um para quem quiser ver:
https://www.youtube.com/watch?v=_gGl3LJ7vHc&pp=ygUIa3VsZXNob3Y%3D
* é aquela brincadeira tipicamente italiana de imitar um
flato colocando a língua entre os lábios e soprando fortemente.
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