(Viver em São Paulo já foi mais fácil. E manter a coerência dos argumentos também. Cuidado para não ser mais realista que o rei).
Olá!
Já
faz um bom tempo que eu moro no centro de São Paulo. Para quem é de outros
estados, talvez isso não signifique grande coisa, mas para quem é da Terra da
Garoa e cercanias, causa estranheza. Fosse ainda morador do Glicério, do Bixiga
ou se fôssemos concessivos com outros bairros, como a Santa Cecília e a
Aclimação, não teríamos esse olhar espantado, mas moro na Sé, onde o principal
contingente habitacional é de moradores de rua.
Nem
sempre morei aqui. Na verdade, nasci na Mooca e fui me afastando cada vez para
uma Zona Leste mais profunda, mais oriental. Quando eu era ainda bem pequeno,
morei com meus pais em uma série de casinhas de aluguel na Vila Ema e
imediações. A primeira que eu me lembro era um cômodo-e-cozinha em uma rua
chamada Vila Rosa, um beco sem saída que dava com um córrego, daqueles com
banheiro externo, para servir à coletividade do quintal. Era costume da época
construir algumas unidades a mais para garantir uma rendinha extra ao
proprietário, e fazer um banheiro que servisse a todas economizava dinheiro e
espaço. Depois, fui morar na casa do meu avô materno, para que meus pais
economizassem o dinheiro do aluguel. Na década de 70, ainda era factível a um
operário comprar um terreninho e construir sua casa, sem extensos e eternos
financiamentos, exatamente o que ocorreu. Ficamos lá por oito anos, até ficar
pronta a casinha no Jardim Independência, onde passei minha juventude, e que
virou de esquina após a prefeitura desapropriar uma boa parte das casas para
construir a atual Avenida Anhaia Melo. Ficava próxima a um riacho, e todas as
ruas eram de terra. Como fazia uma espécie de vale, eram comuns as inundações.
Meu pai foi esperto, e fez a casa alguns patamares mais alta, ao contrário dos
vizinhos, que sofriam nas chuvas. A terra empaçocada das margens formava uma
tabatinga grudenta que fazia parte da coloração de nossos calçados, então
éramos conhecidos como "aqueles da lama", além de outros epônimos
menos amigáveis, como “sapos”. Isso só foi acabar com a completa construção da galeria
para abrigar o córrego e com a construção da avenida em epígrafe.
Fiquei
por lá até casar, quando fui morar no porão da casa do meu sogro, no Jardim
Guairacá, por longos sete anos. Era uma casinhola que permitia trocar as
lâmpadas sem subir em escadas e banquinhos, de tão baixinha que era. A lógica
era a mesma que se aplicou aos meus pais: espreme-se em um canto modesto para
juntar o dinheiro do terreno, e depois dos tijolos necessários a um andar
térreo. Só que a década de 90 já não permitia comprar nada nas redondezas, e
fui achar um pouco de chão na Casa Grande, um bairro periférico ao Jardim Elba,
célebre por ser considerada a favela mais "carioca" de São Paulo.
Apesar da situação de risco, vivi lá por onze anos, e foram bons, porque a
maior parte da infância das crianças foi naquele projeto de sobrado que nunca
viu seu piso superior construído.
Acontece
que, à medida que o tempo passa, suas pernas vão ficando mais bambas e sua
paciência mais curta. O trajeto até a Liberdade, meu posto de trabalho, dava
uma hora e meia para vir, uma hora e meia para voltar, se não houvesse nenhuma
perturbação extra, como chuva ou greve. Três horas jogadas fora todo santo dia,
porque era raro conseguir sentar para ler, e ouvir música como se deve é meio
difícil em meio ao bate-lata que caracteriza nosso transporte público. Dessa
forma, fui criando uma vontade e um plano para mudar a uma casa próxima ao
metrô.
Tudo
começou com um grande copo de desânimo, porém. Qualquer casa que ficasse
minimamente próxima a uma estação custava pelo menos o dobro do que eu
conseguiria com meu sobrado perneta do Elba. Levando em conta que orçamento não
era coisa que sobejava em meu lar, os primeiros movimentos de desistência já
iam se evidenciando. A coisa reverteu com radicalismo, quando um colega me
indicou um apartamento a 50 metros da estação Sé, daqueles antigos, com uma
portaria digna de filme noir, mas com uma unidade bem nouvelle
cuisine, com “ingredientes” incomuns para os apês funcionais de hoje.
Começando por uma cozinha onde cabe a mesa, vejam vocês. Também tem um cômodo
de cada cor e uma distribuição em "S", com o corredor do hall de
entrada começando à esquerda, e gingando para a direita após a sala, para
acessar os quartos. É um arranjo atípico que a deixou incrivelmente mais bem
distribuída, e, a partir daí, o insondável aconteceu: já que o centro não vem
até nós, vamos nós ao centro. E aqui estou. Há quatorze anos.
Quando
cheguei aqui, o centro de São Paulo vivia outra realidade. Eu pegava meus
filhos e afilhados e os levava para brincar de mula e maçaneta na Praça Clóvis.
Mendigos havia, mas eram tão clássicos que nós os conhecíamos pelo nome:
Bonitão, Raul Seixas, Caixote, Robinho. Uns morreram de miséria, outros foram
resgatados pela família ou se mandaram para outras paragens. De um jeito ou de
outro, faziam parte da nossa vizinhança e nos cumprimentávamos todos os dias.
Eventualmente, pedíamos algum servicinho, como carregar um móvel velho para o
ecoponto, e destinávamos a eles roupas e comida. Eu acho furadíssimo esse
modelo de pseudocaridade, que as pessoas fazem mais para amenizar suas culpas,
mas não serei eu a resgatar o modelo com o qual a sociedade deve lidar com a
situação, e doar algumas coisas não faz mal a quem tem necessidades imediatas.
Eu
mudei para cá no auge do último período de prosperidade econômica desta
claudicante nação. Falava-se então em uma população de rua da ordem de 10000
pessoas, o que não é pouco, mas a situação geral permitia a mim atravessar a Sé
pelo meio, sem grandes sustos, mesmo que a prudência mandasse tomar certo
cuidado.
Ocorre
que o brasileiro, embora nunca tenha encarado uma guerra, desconhece o que seja
paz. Logo as coisas degringolaram e entramos na espiral em que nos encontramos
atualmente, com uma cadeia de causas e consequências que tão bem sabemos, e o
centro se ressentiu das desastradas tentativas de desmonte da Cracolândia, da
queda do nível de investimento e não poderia deixar de sentir os efeitos da
pandemia. Ruas de comércio incessante como a São Bento e a José Bonifácio estão
com a maior parte de suas portas fechadas, e a montanha de placas de “aluga-se”
denuncia: a miséria voltou com força. Com tudo o que ela traz de desgraça.
Hoje, temos estimadas 32000 pessoas em situação de rua, segundo o Censo da
População em Situação de Rua, feito pela Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social (SMADS). É mais que o triplo, só isso. Percebem a
dimensão do nosso empobrecimento?
A
consequência direta é que vivemos dias violentos. O fluxo grande entre as
portarias do metrô e o posto da Guarda Civil não dão conta do volume novo de
assaltos que tem ocorrido no pedaço. Aqui cabe lembrar que nunca o centro foi
um lugar absolutamente tranquilo. Carteiras e relógios são roubados desde
sempre, pela mão leve dos finórios e rapidez dos trombadinhas. Mas o que nós
estamos vendo agora são arrastões, levados a cabo pela escolha de uma vítima
preferentemente feminina, que é cercada por bicicletas e atacada por sete ou
oito moleques de uma vez só, que fogem cada um para um lado, para depois dividir
o butim. É uma ação violentíssima, que inclui derrubar a vítima no chão e
enchê-la de chutes, caso haja alguma resistência. Mesmo o teoricamente inocente
pedido de esmolas está mais atemorizante: do pedido com cara desmanchada de
piedade, temos agora verdadeiras intimidações, com o "pedinte" te
seguindo até conseguir os tais trocados. É nesses dias em que me bate o
arrependimento de ter mudado, mas como estará a periferia? Não terá ela mesma
tido sua própria piora?
Mas
há questões que são próprias da região central. Há bairros que um paulistano da
Zona Norte nunca verá na Zona Sul, e o pessoal da Zona Oeste pode conhecer a
Zona Leste só de ouvir falar, mas o centro é um lugar para onde todos vão,
pelos mais diferentes motivos. O perigo daqui não é uma exclusividade dos seus
poucos habitantes, mas da cidade inteira. A mulher que é derrubada nas
escadarias do metrô provavelmente não mora na Sé, mas na Vila Matilde, no
Butantã, em Pirituba, no Campo Belo.
E
o que vai acontecendo é que aqueles mendigos diários a quem cumprimentávamos e
destinávamos trocados vão nos causando medo. Já não os conhecemos nem os
saudamos. Seus pedidos ganham contorno de ameaça e o convívio cada vez mais se
impossibilita. Nós sabemos que o trocado não vai para o lanche, mas para a
cachaça e a droga, e isso não é de hoje. A grande novidade é que você sabe que
isso alimenta a cadeia de marginalidade que se desenrola debaixo de nossos
olhos.
O
mendigo que pede, hoje, é uma ameaça. Essa é a sensação geral e o pensamento
falacioso, ainda que compreensível. Isso porque nós confundimos, no plano
lógico, mentira com falácia. O pedido do mendigo pode ser uma mentira, mas não
é uma falácia. Vamos ver melhor isso.
Uma
falácia ocorre dentro de uma argumentação. E a definição de argumento passa
pela noção de proposição, a que em tratei neste
texto, mas que vou repassar rapidamente, por amor à concisão.
Uma
proposição é qualquer frase, seja afirmativa ou negativa, que pode receber um
valor de verdade. Sendo assim, posso afirmar tranquilamente que dizer que
"a bola é um artefato cheio de ar" é uma proposição, porque isso pode
ser verdadeiro ou falso. Se é ou não é uma declaração intuitiva ou óbvia, não
importa. O que caracteriza a proposição é ser verdadeira ou falsa. Se a bola de
fato tem ar, a proposição é verdadeira; se tem água ou pedra, é falsa - punto
e finito.
Acontece
que nem tudo o que sai da sua boca é propositivo. Imagine o centroavante que se
desmarca e pede o passe: "toca, toca, toca!" é o curto, porém
facilmente compreensível pedido do camisa nove. Seu toca-toca é verdadeiro ou
falso? Ora, nem uma coisa, nem outra. Não estamos diante de uma proposição, mas
de uma frase imperativa, que exprime um desejo, uma ordem, um conselho, uma
sugestão ou qualquer outra coisa cujo escopo não é obter um valor de verdade,
mas uma interveniência que parta de uma pessoa para outra.
É
aqui que temos um procedimento falacioso: expressões imperativas nunca são
falaciosas, porque não são argumentos. O mendigo que te pede pode mentir, mas
não está sendo falacioso. Certo: seu pedido pode conter apelos à
misericórdia e à
emoção, dentre outros, mas aqui o cerne não é argumentar, e sim obter um
favor. Ele mente, mas não é falacioso. Alegar isso é um erro lógico chamado de falácia
das falácias, ou argumentum ad logicam, uma espécie de macartismo*
lógico de quem vê falácias em tudo.
Outra
maneira de cometer o argumentum ad logicam é desqualificar uma conclusão pelo
erro nas premissas. Embora argumentações defeituosas possam causar contorções e
câimbras mentais, elas não invalidam, de per si, a conclusão que
pretendem defender. Por exemplo: é consenso que o excesso de consumo de carnes
vermelhas não faz bem. Isso pode levar algumas pessoas a inferir que o
organismo humano não é adaptado para esse tipo de alimentação. Se isso fosse
verdade, os seres humanos não produziriam certas enzimas, como a lipase e a
colesterase, específicas para o processamento de alimentos de origem animal.
Isso não muda o fato de que o alto consumo de carne é prejudicial, e embora o
argumento da má adaptação seja ruim, isso é insuficiente para invalidar a
conclusão. Baixada em termos lógicos, a coisa fica mais ou menos assim:
Consumir
alimentos que nosso organismo não está adaptado para processar é prejudicial
Nosso
organismo não está adaptado para o consumo de carne
Portanto,
o consumo de carne é prejudicial
A
premissa menor cai no problema que mencionamos logo atrás, mas a conclusão
continua sendo verdadeira. Os motivos podem ser outros: muita gordura, falta de
outros nutrientes, sei lá. Mas não é puramente a falsidade do argumento que
invalida a conclusão. As coisas não são simples assim.
Outro
exemplo clássico de falácia das falácias, desta vez por um erro lógico formal:
Se
uma pessoa gosta de futebol, então ela vai a estádios.
Um
certo policial gosta de futebol.
Portanto,
ele vai a estádios.
O
erro aqui é evidente. O tal policial mencionado vai a estádios por dever
funcional, já que jogos de futebol representam aglomerações com alto potencial
para encrenca. Se ele gosta ou não de futebol, é algo irrelevante. É o que a
gente chama de afirmação do consequente, sobre o que já falei especificamente neste
texto. O argumentum ad logicam entra quando se desconsidera que o referido
militar efetivamente vai a estádios, mesmo que não goste de futebol (aliás,
isso seria sempre o ideal, para uma melhor concentração no trabalho).
Dessa
forma, é bom conhecer a falácia das falácias, porque ela tende a ser uma
expressão do dogmatismo. Alguém que procura tantos defeitos nos discursos dos
outros acaba por perder o foco em seus próprios argumentos, ficando mais com o
papel de chato do rolê do que do bom debatedor. Bons ventos a todos!
Recomendação
de leitura:
Para
fazer uma breve comparação entre o que era o centro há décadas atrás e o que é
hoje, o livro abaixo é uma recomendação e tanto.
BARBEIRO,
Heródoto. Meu velho centro: histórias do coração de São Paulo. São
Paulo: Boitempo: Sesc, 2007.
*O
macartismo era uma doutrina política estadunidense propalada pelo senador
republicano Joseph McCarty, que, durante a guerra fria, via qualquer tipo de
oposição ou atitude crítica ao governo como prova de comunismo por quem a
profecia, criando um clima de caça às bruxas muitas vezes completamente
desfundamentada.
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