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sábado, 8 de outubro de 2022

Pequeno guia das grandes falácias – 65º tomo: a falácia das falácias (argumentum ad logicam)

(Viver em São Paulo já foi mais fácil. E manter a coerência dos argumentos também. Cuidado para não ser mais realista que o rei).

Olá!

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Já faz um bom tempo que eu moro no centro de São Paulo. Para quem é de outros estados, talvez isso não signifique grande coisa, mas para quem é da Terra da Garoa e cercanias, causa estranheza. Fosse ainda morador do Glicério, do Bixiga ou se fôssemos concessivos com outros bairros, como a Santa Cecília e a Aclimação, não teríamos esse olhar espantado, mas moro na Sé, onde o principal contingente habitacional é de moradores de rua.

Nem sempre morei aqui. Na verdade, nasci na Mooca e fui me afastando cada vez para uma Zona Leste mais profunda, mais oriental. Quando eu era ainda bem pequeno, morei com meus pais em uma série de casinhas de aluguel na Vila Ema e imediações. A primeira que eu me lembro era um cômodo-e-cozinha em uma rua chamada Vila Rosa, um beco sem saída que dava com um córrego, daqueles com banheiro externo, para servir à coletividade do quintal. Era costume da época construir algumas unidades a mais para garantir uma rendinha extra ao proprietário, e fazer um banheiro que servisse a todas economizava dinheiro e espaço. Depois, fui morar na casa do meu avô materno, para que meus pais economizassem o dinheiro do aluguel. Na década de 70, ainda era factível a um operário comprar um terreninho e construir sua casa, sem extensos e eternos financiamentos, exatamente o que ocorreu. Ficamos lá por oito anos, até ficar pronta a casinha no Jardim Independência, onde passei minha juventude, e que virou de esquina após a prefeitura desapropriar uma boa parte das casas para construir a atual Avenida Anhaia Melo. Ficava próxima a um riacho, e todas as ruas eram de terra. Como fazia uma espécie de vale, eram comuns as inundações. Meu pai foi esperto, e fez a casa alguns patamares mais alta, ao contrário dos vizinhos, que sofriam nas chuvas. A terra empaçocada das margens formava uma tabatinga grudenta que fazia parte da coloração de nossos calçados, então éramos conhecidos como "aqueles da lama", além de outros epônimos menos amigáveis, como “sapos”. Isso só foi acabar com a completa construção da galeria para abrigar o córrego e com a construção da avenida em epígrafe.

Fiquei por lá até casar, quando fui morar no porão da casa do meu sogro, no Jardim Guairacá, por longos sete anos. Era uma casinhola que permitia trocar as lâmpadas sem subir em escadas e banquinhos, de tão baixinha que era. A lógica era a mesma que se aplicou aos meus pais: espreme-se em um canto modesto para juntar o dinheiro do terreno, e depois dos tijolos necessários a um andar térreo. Só que a década de 90 já não permitia comprar nada nas redondezas, e fui achar um pouco de chão na Casa Grande, um bairro periférico ao Jardim Elba, célebre por ser considerada a favela mais "carioca" de São Paulo. Apesar da situação de risco, vivi lá por onze anos, e foram bons, porque a maior parte da infância das crianças foi naquele projeto de sobrado que nunca viu seu piso superior construído.

Acontece que, à medida que o tempo passa, suas pernas vão ficando mais bambas e sua paciência mais curta. O trajeto até a Liberdade, meu posto de trabalho, dava uma hora e meia para vir, uma hora e meia para voltar, se não houvesse nenhuma perturbação extra, como chuva ou greve. Três horas jogadas fora todo santo dia, porque era raro conseguir sentar para ler, e ouvir música como se deve é meio difícil em meio ao bate-lata que caracteriza nosso transporte público. Dessa forma, fui criando uma vontade e um plano para mudar a uma casa próxima ao metrô.

Tudo começou com um grande copo de desânimo, porém. Qualquer casa que ficasse minimamente próxima a uma estação custava pelo menos o dobro do que eu conseguiria com meu sobrado perneta do Elba. Levando em conta que orçamento não era coisa que sobejava em meu lar, os primeiros movimentos de desistência já iam se evidenciando. A coisa reverteu com radicalismo, quando um colega me indicou um apartamento a 50 metros da estação Sé, daqueles antigos, com uma portaria digna de filme noir, mas com uma unidade bem nouvelle cuisine, com “ingredientes” incomuns para os apês funcionais de hoje. Começando por uma cozinha onde cabe a mesa, vejam vocês. Também tem um cômodo de cada cor e uma distribuição em "S", com o corredor do hall de entrada começando à esquerda, e gingando para a direita após a sala, para acessar os quartos. É um arranjo atípico que a deixou incrivelmente mais bem distribuída, e, a partir daí, o insondável aconteceu: já que o centro não vem até nós, vamos nós ao centro. E aqui estou. Há quatorze anos.

Quando cheguei aqui, o centro de São Paulo vivia outra realidade. Eu pegava meus filhos e afilhados e os levava para brincar de mula e maçaneta na Praça Clóvis. Mendigos havia, mas eram tão clássicos que nós os conhecíamos pelo nome: Bonitão, Raul Seixas, Caixote, Robinho. Uns morreram de miséria, outros foram resgatados pela família ou se mandaram para outras paragens. De um jeito ou de outro, faziam parte da nossa vizinhança e nos cumprimentávamos todos os dias. Eventualmente, pedíamos algum servicinho, como carregar um móvel velho para o ecoponto, e destinávamos a eles roupas e comida. Eu acho furadíssimo esse modelo de pseudocaridade, que as pessoas fazem mais para amenizar suas culpas, mas não serei eu a resgatar o modelo com o qual a sociedade deve lidar com a situação, e doar algumas coisas não faz mal a quem tem necessidades imediatas.

Eu mudei para cá no auge do último período de prosperidade econômica desta claudicante nação. Falava-se então em uma população de rua da ordem de 10000 pessoas, o que não é pouco, mas a situação geral permitia a mim atravessar a Sé pelo meio, sem grandes sustos, mesmo que a prudência mandasse tomar certo cuidado. 

Ocorre que o brasileiro, embora nunca tenha encarado uma guerra, desconhece o que seja paz. Logo as coisas degringolaram e entramos na espiral em que nos encontramos atualmente, com uma cadeia de causas e consequências que tão bem sabemos, e o centro se ressentiu das desastradas tentativas de desmonte da Cracolândia, da queda do nível de investimento e não poderia deixar de sentir os efeitos da pandemia. Ruas de comércio incessante como a São Bento e a José Bonifácio estão com a maior parte de suas portas fechadas, e a montanha de placas de “aluga-se” denuncia: a miséria voltou com força. Com tudo o que ela traz de desgraça. Hoje, temos estimadas 32000 pessoas em situação de rua, segundo o Censo da População em Situação de Rua, feito pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). É mais que o triplo, só isso. Percebem a dimensão do nosso empobrecimento?

A consequência direta é que vivemos dias violentos. O fluxo grande entre as portarias do metrô e o posto da Guarda Civil não dão conta do volume novo de assaltos que tem ocorrido no pedaço. Aqui cabe lembrar que nunca o centro foi um lugar absolutamente tranquilo. Carteiras e relógios são roubados desde sempre, pela mão leve dos finórios e rapidez dos trombadinhas. Mas o que nós estamos vendo agora são arrastões, levados a cabo pela escolha de uma vítima preferentemente feminina, que é cercada por bicicletas e atacada por sete ou oito moleques de uma vez só, que fogem cada um para um lado, para depois dividir o butim. É uma ação violentíssima, que inclui derrubar a vítima no chão e enchê-la de chutes, caso haja alguma resistência. Mesmo o teoricamente inocente pedido de esmolas está mais atemorizante: do pedido com cara desmanchada de piedade, temos agora verdadeiras intimidações, com o "pedinte" te seguindo até conseguir os tais trocados. É nesses dias em que me bate o arrependimento de ter mudado, mas como estará a periferia? Não terá ela mesma tido sua própria piora?

Mas há questões que são próprias da região central. Há bairros que um paulistano da Zona Norte nunca verá na Zona Sul, e o pessoal da Zona Oeste pode conhecer a Zona Leste só de ouvir falar, mas o centro é um lugar para onde todos vão, pelos mais diferentes motivos. O perigo daqui não é uma exclusividade dos seus poucos habitantes, mas da cidade inteira. A mulher que é derrubada nas escadarias do metrô provavelmente não mora na Sé, mas na Vila Matilde, no Butantã, em Pirituba, no Campo Belo.

E o que vai acontecendo é que aqueles mendigos diários a quem cumprimentávamos e destinávamos trocados vão nos causando medo. Já não os conhecemos nem os saudamos. Seus pedidos ganham contorno de ameaça e o convívio cada vez mais se impossibilita. Nós sabemos que o trocado não vai para o lanche, mas para a cachaça e a droga, e isso não é de hoje. A grande novidade é que você sabe que isso alimenta a cadeia de marginalidade que se desenrola debaixo de nossos olhos.

O mendigo que pede, hoje, é uma ameaça. Essa é a sensação geral e o pensamento falacioso, ainda que compreensível. Isso porque nós confundimos, no plano lógico, mentira com falácia. O pedido do mendigo pode ser uma mentira, mas não é uma falácia. Vamos ver melhor isso.

Uma falácia ocorre dentro de uma argumentação. E a definição de argumento passa pela noção de proposição, a que em tratei neste texto, mas que vou repassar rapidamente, por amor à concisão.

Uma proposição é qualquer frase, seja afirmativa ou negativa, que pode receber um valor de verdade. Sendo assim, posso afirmar tranquilamente que dizer que "a bola é um artefato cheio de ar" é uma proposição, porque isso pode ser verdadeiro ou falso. Se é ou não é uma declaração intuitiva ou óbvia, não importa. O que caracteriza a proposição é ser verdadeira ou falsa. Se a bola de fato tem ar, a proposição é verdadeira; se tem água ou pedra, é falsa - punto e finito.

Acontece que nem tudo o que sai da sua boca é propositivo. Imagine o centroavante que se desmarca e pede o passe: "toca, toca, toca!" é o curto, porém facilmente compreensível pedido do camisa nove. Seu toca-toca é verdadeiro ou falso? Ora, nem uma coisa, nem outra. Não estamos diante de uma proposição, mas de uma frase imperativa, que exprime um desejo, uma ordem, um conselho, uma sugestão ou qualquer outra coisa cujo escopo não é obter um valor de verdade, mas uma interveniência que parta de uma pessoa para outra.

É aqui que temos um procedimento falacioso: expressões imperativas nunca são falaciosas, porque não são argumentos. O mendigo que te pede pode mentir, mas não está sendo falacioso. Certo: seu pedido pode conter apelos à misericórdia e à emoção, dentre outros, mas aqui o cerne não é argumentar, e sim obter um favor. Ele mente, mas não é falacioso. Alegar isso é um erro lógico chamado de falácia das falácias, ou argumentum ad logicam, uma espécie de macartismo* lógico de quem vê falácias em tudo.


Quando vi esse termo pela primeira vez, tive uma impressão errônea. Achei que se tratava da falácia mais importante ou mais utilizada de todas, tipo um rei dos reis, campeão dos campeões. Ou então que fosse a mais difícil de perceber, a mais sutil e perniciosa. Nem uma coisa, nem outra. Grosso modo, a falácia das falácias nada mais é do que tratar reiteradamente como falaciosa qualquer assertiva que nos incomode ou cause inconveniente. Como eu disse: o mendigo que te pede não está fazendo uma proposição, mas dirigindo uma súplica; o centroavante que te grita não é verdadeiro, nem falso: é um centroavante chamando o jogo. Não é possível qualificá-los como falaciosos pelo simples fato de que não são proposições.

Outra maneira de cometer o argumentum ad logicam é desqualificar uma conclusão pelo erro nas premissas. Embora argumentações defeituosas possam causar contorções e câimbras mentais, elas não invalidam, de per si, a conclusão que pretendem defender. Por exemplo: é consenso que o excesso de consumo de carnes vermelhas não faz bem. Isso pode levar algumas pessoas a inferir que o organismo humano não é adaptado para esse tipo de alimentação. Se isso fosse verdade, os seres humanos não produziriam certas enzimas, como a lipase e a colesterase, específicas para o processamento de alimentos de origem animal. Isso não muda o fato de que o alto consumo de carne é prejudicial, e embora o argumento da má adaptação seja ruim, isso é insuficiente para invalidar a conclusão. Baixada em termos lógicos, a coisa fica mais ou menos assim:

Consumir alimentos que nosso organismo não está adaptado para processar é prejudicial

Nosso organismo não está adaptado para o consumo de carne

Portanto, o consumo de carne é prejudicial

A premissa menor cai no problema que mencionamos logo atrás, mas a conclusão continua sendo verdadeira. Os motivos podem ser outros: muita gordura, falta de outros nutrientes, sei lá. Mas não é puramente a falsidade do argumento que invalida a conclusão. As coisas não são simples assim.

Outro exemplo clássico de falácia das falácias, desta vez por um erro lógico formal:

Se uma pessoa gosta de futebol, então ela vai a estádios.

Um certo policial gosta de futebol.

Portanto, ele vai a estádios.

O erro aqui é evidente. O tal policial mencionado vai a estádios por dever funcional, já que jogos de futebol representam aglomerações com alto potencial para encrenca. Se ele gosta ou não de futebol, é algo irrelevante. É o que a gente chama de afirmação do consequente, sobre o que já falei especificamente neste texto. O argumentum ad logicam entra quando se desconsidera que o referido militar efetivamente vai a estádios, mesmo que não goste de futebol (aliás, isso seria sempre o ideal, para uma melhor concentração no trabalho).

Dessa forma, é bom conhecer a falácia das falácias, porque ela tende a ser uma expressão do dogmatismo. Alguém que procura tantos defeitos nos discursos dos outros acaba por perder o foco em seus próprios argumentos, ficando mais com o papel de chato do rolê do que do bom debatedor. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Para fazer uma breve comparação entre o que era o centro há décadas atrás e o que é hoje, o livro abaixo é uma recomendação e tanto.

BARBEIRO, Heródoto. Meu velho centro: histórias do coração de São Paulo. São Paulo: Boitempo: Sesc, 2007.

*O macartismo era uma doutrina política estadunidense propalada pelo senador republicano Joseph McCarty, que, durante a guerra fria, via qualquer tipo de oposição ou atitude crítica ao governo como prova de comunismo por quem a profecia, criando um clima de caça às bruxas muitas vezes completamente desfundamentada.

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