(Hora de desfazer polêmicas, ou de criar mais ainda. Vamos tentar falar um pouco sobre Conservadorismo).
Olá!
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Vamos
dar uma cutucadinha de leve na onça? Todas as vezes em que vamos falar de
política, especialmente em um dos polos específicos que povoa o imaginário das
pessoas, dá um bocado de conversa. Quando eu falava neste
texto de dez anos atrás que a juventude estava despolitizada, não imaginava
que a política viesse para a crista da onda pouco tempo depois. Só que ela veio
toda torta, com uma montanha de clichês e senso comum no lugar da ponderação
que deveria permear atitudes racionais. E dá-lhe dizer que isso é comunismo,
aquilo é comunismo, o outro é comunismo. Qualquer coisa que eu não goste é
comunismo. Por essa razão, pus-me a escrever com mais detalhes sobre o que é
comunismo, tentando não ser parcial em momento algum, conforme está aqui.
Claro
que o final das contas de uma politização sem fundamento na história e na
realidade não poderia ser bom. E deu no que deu. Os fatos decorridos em Terra Brasilis
lembram um pouco de certos aspectos sociais que provém de minha infância.
Quando eu era menino pequeno, meu pai era daqueles operários que descarregavam
as mágoas e boa parte dos proventos no balcão de um boteco. Um, não; os vários
que existiam no trecho da Estrada da Vila Ema compreendido entre a Venda do
Chico e a padaria do Seo Arlindo, mais conhecidos hoje como Rua Domingos Afonso
e a Rua Gomes. E lá ia eu junto, vendo o patriarca molhar o bico junto dos
amigos, jogar um truco e comer porcarias várias. Minha mãe detestava que meu
pai nunca tenha abandonado esse costume, mas ela queria morrer de escarlatina
quando ele me levava junto, o que era frequente. Entretanto, sua opinião pouco
contava, porque era “lugar de homem” e outras alegações, mas, para ser franco,
o velho tinha a responsabilidade de não me dar nada alcoólico. Com a
liberalidade de tomar minhas caçulinhas e comer meus doces de armário, eu
ficava bem satisfeito, para dizer a verdade. Isso me pôs em contato com microcosmos
que, uns mais, outros menos, tinham cenários sempre muito semelhantes - salões
alugados com piso vermelhão e balcão de fórmica, duas ou três mesas e um
banheiro pútrido. A fauna que povoava esse habitat era variável, mas congregava
certos tipos que se repetiam a cada um deles. Havia os brincalhões, a maioria
deles, desavexados pela ingestão pouco controlada de bebida. Havia os que
ficavam sentimentais, os que estranhamente ficavam mais ensimesmados, os que se
tornavam inconvenientes, e até mesmo mais filosóficos. E havia os que ficavam
valentes. Esses eram os piores, porque, muito embora fosse uma valentia pouco
corajosa, valentia de bêbado, era daí que nasciam as encrencas, as brigas
inúteis, e, com pouco juízo, até uma faca mal segura na mão. Faziam-se de mandões,
diziam que suas mulheres não mandavam na vida deles, que os governantes eram
safados aproveitadores, e que se estivessem no governo fariam isso e aquilo. É
uma dessas pessoas que está (ainda) no poder. Com a diferença de não estar
bêbado.
Acontece
que o mundo está dividido em dois. Embora eu vá dizer pela enésima vez que
discordo frontalmente da neurose
espacial que tomou conta de nossas cabeças políticas, o fato é que há pouco
conhecimento dos dois lados. De um lado, há os que se dizem progressistas, que
são chamados de comunistas a cada vez que se fala em qualquer causa
igualitária. Do outro, os ditos conservadores, avessos a mudanças, que assim
são catalogados tão logo se oponham a qualquer musiquinha mais ousada. Então é
essencial que se esclareçam certos pontos para que se saiba com exatidão o que
se combate. Sabe aquelas situações em que você elogia quando acha que está
ofendendo? Pois é. Isso é típico do debate ruim. Vamos então tentar entender
melhor o que é o conservadorismo.
O que é conservadorismo?
Conservadorismo
pode ter muitas conotações, mas aqui vamos nos ocupar do âmbito político e
social. Ele é uma corrente que defende a manutenção das estruturas econômicas e
sociais, e em que as modificações, quando admitidas, devem ser vistas com
bastante prudência e levadas a cabo com muita lentidão, de modo a não
desestruturar os panoramas preexistentes. Essa pouca vontade em mudanças
geralmente vem acompanhada de um aspecto metafisico, que é a preservação de
valores morais, o mais das vezes derivados de princípios religiosos próprios da
cultura de onde parte.
Qual
seria a raiz filosófica do conservadorismo?
Se
formos buscar a mais profunda origem do conservadorismo, encontraremos o
próprio instinto de preservação, onde procuramos manter as condições mínimas de
sobrevivência e por lá estabelecemos uma estabilidade. Em tese, se chegamos até
onde estamos, se não nos extinguimos como espécie e como sociedade, foi porque
as próprias contingências existenciais foram moldando a realidade da maneira
como se nos apresentam. Mudar essas condições sempre representa um risco, e,
por isso, conservadores tendem a acolher apenas mudanças que não impliquem em
transformações rápidas e radicais.
Não é um
contrassenso que a maioria dos protestantes sejam conservadores?
Realmente,
a um primeiro olhar, nada mais revolucionário parece o movimento protestante em
seus primórdios, que desafiou uma hierarquia consolidada como era o Catolicismo
de então. Mas, de um modo geral, os protestantes são conservadores porque a
revolução proposta por Lutero e companhia era mais um retorno ao Cristianismo
original, fortemente ligado a uma interpretação literal da Bíblia, do que uma
tentativa de implantação de novos hábitos. Quase a totalidade das vertentes
protestantes guiam seu pensamento pelo princípio da sola scriptura, ou seja, a Bíblia como única fonte legítima de
interpretação religiosa. Isso deriva para um conteúdo moral muito mais rígido e
imutável do que acontece com os católicos, que aplicam outras fontes
doutrinárias, como o magistério da igreja e a tradição. Sendo assim, não há
ambiguidade no fato de serem as igrejas protestantes geralmente mais
conservadoras.
Isso
significa que o catolicismo não é conservador?
O
catolicismo, assim como a grande maioria das religiões, tem um pano de fundo
conservador, especialmente quando pensamos que a sede da igreja é tida como autoridade
máxima em questão de fé, e que existem dogmas baixados a escrito e que a
estrutura de poder seja extremamente rígida, tendendo ao imutável. Em certos
aspectos, o catolicismo é ainda mais conservador do que algumas formas de
protestantismos. O que acontece é que o catolicismo é, em geral, menos
literalista que o protestante, o que ajuda a acomodar um pouco melhor suas
doutrinas com a ciência, por exemplo. Cito o caso da evolução, que já expus neste
texto, que não representa um problema para os católicos, que simplesmente
colocam Deus como o motor da evolução, e ponto.
Por que é
tão comum a dobradinha “liberal na economia, conservador nos costumes”?
Se
você observar bem, quem defende esse tipo de visão são as camadas de elite e,
no final das contas, a intenção é ser conservador em tudo. E por que? Porque
uma economia com máximos níveis de liberdade tende a deixar o dinheiro na mão
de quem já o tem. Ser liberal na economia É ser conservador, especialmente
quando a visão dita liberal não vem acompanhada por uma vontade de aplicar
liberdade em outros aspectos da sociedade e da cultura.
A base do
conservadorismo de fato é a família?
Há
uma distorção aqui. Como são raros os casos em que alguém não esteja inserido
em alguma forma de organização familiar, há um forte apelo emocional em se
nomear a família como base social. Não que de fato a família não seja o próximo
estágio que se segue ao indivíduo na formação das comunidades, mas o
conservadorismo normalmente está preocupado com um único modelo familiar,
chancelado pela igreja estabelecida, como se formas tentaculares ou
multicomponenciais não pudessem exercer a contento a mesma função. Desta forma,
a base familiar da sociedade é verdadeira, porque é lá que se obtém as
primeiras noções de convívio, de princípios e de sobrevivência, mas a forma como
ela se organiza não precisa ser unívoca, porque diferentes formas de família
são capazes de fazer essa mesma transmissão de valores.
Quais são
pensadores do conservadorismo que podem dar uma base segura sobre o que é o
movimento?
Eu
já mencionei Michael Oakeshott neste
texto, e a base do seu pensamento é que racionalizações para novas
sociedades fatalmente tropeçarão no inesperado quando saírem do papel. Isso
indica que falta à atitude progressista uma observação empírica da realidade, e
qualquer inconformidade que não esteja prevista em seus manuais fará com que
haja o risco do colapso, tanto da tese, quanto do próprio mecanismo social. Já
Edmund Burke, considerado o pai do conservadorismo moderno, entendia que os
processos políticos deveriam se basear em segurança, com a articulação de
conservação, transmissão e melhoria. Isso significa dizer que, no seu entender,
havia uma lógica subjacente entre manutenção de um status quo não-imobilista, onde cada melhoria seria testada aos
poucos, o que não existia em uma ação revolucionária, sempre banhada de
arbitrariedade. Uma atitude revolucionária era um risco tão grande quanto o
resultado da Revolução Francesa, a quem Burke considerava um grande erro. Para
ele, qualquer atitude revolucionária é uma ação que não se propõe a se debruçar
sobre a real condição política de uma sociedade. Ele entendia, à moda de
Aristóteles, que a realidade plasmava a racionalidade, e que o resultado de o
mundo ser como ele é advém do fato de que esta é a melhor maneira de as coisas
ser como são.
É
possível um conservador de esquerda?
É
preciso aqui fazer uma distinção bastante clara entre o que é o conservadorismo
e a prática conservadora. Levado unicamente na acepção do termo, qualquer
pessoa que quer manter um status quo
poderia ser chamada de conservadora, inclusive o mais barbudo dos comunistas.
Acontece que, quando abordado pelo ângulo das correntes políticas, um
conservador não é designado apenas como aquele que quer manutenção do poder,
mas que se chegue a um determinado modelo, notadamente de substrato “tradicional
cristão”, bem entre aspas.
Qual a
diferença entre um conservador e um reacionário?
Aqui,
temos uma aplicação daquilo que, em Desenvolvimento de Sistemas, nós chamamos
de Lei da Herança. Uma instância qualquer é herdeira de outra se ela possui
todas as características do original, acrescida de características próprias.
Como funciona isso? Imagine que você vai à feira querendo comprar legumes; se
você comprou abobrinha, também comprou um legume. Se comprou alface, já não.
Isso porque a abobrinha possui todas as características intrínsecas do legume:
ser passível de cozimento, ter alta quantidade de fibras, apresentar-se com uma
morfologia fechada e assim por diante. Além disso, ela possui características
próprias, como ser verde, ter sabor próprio e mais. Então a conclusão é a
seguinte: toda abobrinha é um legume, mas nem todo legume é abobrinha. Idem:
Todo reacionário é um conservador, mas nem todo conservador é um reacionário. O
reacionário é um tipo de conservador que tem um nível de aceitação a mudanças
ainda menor, e que calca suas ideias em um componente menos racional. Um
reacionário sempre se apoia em um passado glorioso, ou uma tradição inelutável,
que sai dos campos das ideias e parte para a reação (daí a origem do termo), apoiando-se
em um heroísmo do passado que deu origem a valores inelutáveis. Em síntese,
para um reacionário há sempre um passado idealizado, e por isso eles tendem a
resgatar monarquias ou regimes de exceção. É exatamente aí que se encaixam
aqueles que gostam de exaltar o período militar brasileiro.
Qual a diferença entre um conservador e um fascista?
Vale a regra aplicada anteriormente. Não se pode afirmar, prima facie, que um conservador seja fascista, mas muito do que pensam os fascistas tem raiz no conservadorismo. Há diferenças flagrantes: divergências com a importância do Estado, liberalismo econômico e outras, mas, como um todo, certas proximidades incômodas podem fazer com que ambas as ideologias sejam confundidas.
Como é
sua posição em relação ao conservadorismo?
Vamos
lá. Eu tenho um espírito progressista, mas muitas de minhas atitudes são
conservadoras. Como exemplo, posso mencionar que não tenho nenhum problema,
nenhum mesmo, com a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas eu
mesmo tenho um casamento heteronormativo, com uma mulher da mesma etnia que eu.
Eu passei por anos a fio atuante na igreja católica, e provavelmente meu único
ponto de minoria hoje é ser ateu, mas isso demorou muito
tempo. Isso acontece porque eu sou humano, e entendo que há uma mescla de
conformismo e comodidade que nos favorece a não ousar. Há posições pessoais que
derivam de muitas coisas: momento histórico, variações econômicas, mudanças
sociais e até adesões políticas de conveniência. Isso faz com que não só
sejamos liberais em algumas coisas e conservadores em outras, mas que sejamos
liberais em determinado momento para nos tornarmos conservadores em outros. Não
são só questões de convicções, mas de pragmatismo também. Por isso mesmo,
desconfie daqueles que aderem de forma automática a qualquer pacote fechado de
ideologia. Qualquer. Quem faz isso, vive de muletas. Em tese, ser contrário ao
porte de armas não deveria ser uma pauta rematadamente progressista, mas ela
está no pacote; o mesmo se aplica a conservadores que são contrários a
privatizações - é uma posição que não é proibida, apesar de rara.
O
que eu fiz aqui? Defendi ou ataquei o conservadorismo? Quem ler com cuidado,
verá que não fiz nem uma coisa, nem outra. É uma posição legítima que, na
média, eu não defendo e não aprecio, mas que está aí dentro do espectro
político possível dentro de um contexto democrático, partindo da premissa que
ele, em si, tem suas razões e argumentos, embora sejam tão pouco utilizados
pelos seus mais fanáticos defensores. Bons ventos a todos!
Recomendação
de leitura:
Quer
conhecer conservadorismo sob uma ótica racional? Leia Burke, será interessante.
BURKE,
Edmund. Reflexões sobre a revolução na
França. Brasília: UnB, 1982.
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