(De grão em grão, a galinha filosofal enche o papo. Já são quatrocentos textos que redijo por aqui. Perguntam meus poucos leitores: isso me consola? Não sei. Vamos ver)
Olá!
Este é meu
texto de número quatrocentos neste blog, e como eu já havia prometido há alguns
anos, sempre que fosse tempo de efemérides eu iria filosofar especificamente
sobre minha escrita, o que me influencia e leva a redigir da forma como redijo.
E, desta vez, vou unir um pouco do que me perguntam com as coisas que me
motivam.
Antes e
rapidamente, uma estatística bem pontual. Em 138 meses de existência deste
humilde espaço, são quatrocentos textos publicados. Isso dá uma média de quase
três textos ao mês, e a cada dois anos e nove meses eu tenho uma efeméride como
a que eu agora comemoro, o que não está nada mal, no final das contas. É óbvio
que há meses extremamente produtivos, onde eu gerei meu pico de nove textos, no
ainda pandêmico dezembro de 2021, como há meses em que nem uma linha sequer foi
traçada, o que não ocorre desde novembro de 2016. Bom… vamos ao que interessa.
Para que
escrever tanto, notadamente sobre Filosofia? Uma das perguntas mais permanentes
sobre essa área é sobre sua utilidade. De fato, não dá para desqualificar a
filosofia como conhecimento, mas tenho que concordar que a vida tem suas
necessidades pragmáticas, e isso colide com a ideia de se assentar por quatro
anos em um bacharelado abordando a área. Quando eu estava estagiando, essa foi
uma colocação para a classe, que ficou bem dividida. Obviamente há alunos que
estão apenas com o corpo presente em aula, mas levando em conta aqueles que têm
algum mínimo de interesse, a posição adotada sempre foi muito em função das
perspectivas de vida de cada um: os pretendentes a humanas viam belíssimas
funções para a coruja de Minerva, enquanto os direcionados para exatas e
aplicações práticas achavam uma inútil caceteação. Inclusive havia a
divergência entre mim e o professor Arnaldo, meu tutor. Talvez empolgado pela
próxima formação, eu achava imprescindível ter noção sobre o substrato do
conhecimento para poder transmiti-lo, enquanto o mestre, já tarimbado,
alinhava-se aos que não viam utilidade na Filosofia, por entender que o
conhecimento por si só já era uma justificativa. Utilidade seria uma função
acessória, dispensável no caso.
Só que há uma
boa quantidade de contradição nessa pergunta. Se hoje falamos sobre
pragmatismo, é porque alguém pensou no pragmatismo, uma atividade filosófica,
não é? E, no final das contas, inutilidades geram utilidades. Um jogo de
futebol, em si, não tem mais valor do que uma prática de lazer, tão inútil
quanto qualquer filosofia. Entretanto, é uma cadeia de valor gigantesca que
gira em torno da pelada com mania de grandeza: mercado de jogadores, artigos
futebolísticos, praças esportivas, direitos de transmissão, elaboração de
contratos, ortopedia, imprensa especializada, e assim muito por diante. O cerne
tem utilidade discutível, seja lá o que isso signifique, mas tudo o que gira ao
redor tem utilidade prática para lá de consolidada. Idem, portanto, com a Filosofia.
Olhada sob um viés fragmentado, de fato não muda muita coisa saber que o ser é
e o não-ser não é, mas se pensarmos que é por aí que nasce o questionamento para
se chegar na origem de qualquer problema, talvez devamos reconhecer que ela
está na pergunta da origem do universo, do mundo, da vida.
Eu teria sempre
o argumento de que ensinar Filosofia já é, por si só, um motivo e uma
utilidade. Entretanto, manter uma atividade como a minha precisa de propósitos
diferentes, já desvinculados do objetivo letivo. Eu não escrevo mais para
propor temas aos alunos, mas para propor questionamentos (e algumas tentativas
de respostas) a quem se interessar e, como fim último, dar a mim mesmo
satisfação pessoal. Não é um belo motivo?
Acontece que o
fenômeno do viés
de confirmação faz com que acolhamos assertivas e opiniões com as quais já
tenhamos concordância, que confirmem o que julgamos conhecer. Quando ocorre de
soltar algum texto mais polêmico, como o que escrevi exatamente
a cem posts atrás, a reação é mais aguda, do tipo "você acha que a
filosofia pode substituir deus na sua vida?". Não acho, simplesmente
porque são coisas diferentes. Mas essa categoria de pergunta deixa transparecer
uma posição: de que precisamos de algum tipo de sentido e, in extremis, de consolação para nossa existência incerta. Para o
quê? Para o fato de nos reconhecermos finitos, provavelmente.
Só que há
enganos nesse tipo de pensamento. Primeiro, que deus e filosofia não são
irreconciliáveis, como tão bem provaram Santo
Agostinho, São
Tomás de Aquino e Boécio.
E, depois, que a filosofia não tem objetivo de consolar, de confortar, de autoajudar.
A Filosofia é outra coisa.
Quando o
pensamento filosófico nasce, já possui em si um espírito de desvelar o que
estava por trás da realidade, sem importar se o que estava lá era bom ou ruim.
Alguns dos mais renomados pré-socráticos viam divindades nos mecanismos de
constituição da natureza, e algumas delas eram más, como o intercâmbio entre
amor e ódio de Empédocles,
e isso não importava, não consolava, não trazia conformação, mas uma visão que
o filósofo julgava ser a mais adequada para explicar o universo.
Quem estuda
filosofia para encontrar sentidos positivos na vida ou razões para existir,
entrou no boteco errado, porque ela não trabalha com esse produto. Eu sei que
certos termos induzem a pessoa a fazer confusão. Quando alguém pergunta qual é
a sua filosofia de vida, está usando uma figura de linguagem, que se mistura
com objetivos, e não filosofia de fato. Filosofia, aqui, é tratada como
alegoria para fundamento, para base, para substrato, como o alicerce que dá a
vida um sentido, o que é falso. Outros enquadram autoajuda como sistemas de
pensamento, o que é uma evidente empulhação. Sistemas de pensamento ou sistemas
filosóficos são grandes arranjos lógicos que buscam dar explicação para grande
parte dos fenômenos intelectuais que permeiam a humanidade. Platão,
Aristóteles, Kant e Hegel são alguns exemplos de pensadores que fizeram grandes
encadeamentos de raciocínios para abordar metafísica, epistemologia, ética,
estética, política e sociedade, sem discernimentos obrigatórios do que nos traz
alegria ou tristeza. Autoajuda não é nada disso. É uma espécie de estimulante
para cansados e muleta para inseguros, evitando temas polêmicos ou dolorosos.
Filosofia, por outro lado, é verdade posta, natureza escancarada, realidade tal
como ela é, mesmo que o filósofo esteja errado, mesmo que a tal verdade não
seja possível. Ou seja, se eu tenho que ocultar algo, não é Filosofia.
Mesmo que eu
procurasse respostas espinhosas, é ainda necessário ter em mente que filósofos
não são imunes a erros e constatações que se demonstram furadas. Muito pelo
contrário. Como a Filosofia não se apoia na prova, não tem os grandes
experimentos científicos para lhe dar apoio; como não se refugia na fé, não tem
uma divindade para lhe servir de ad
hoc, e como além de tudo tem que se focar na lógica, não tem a
liberdade da arte. Quadros de Dalí e sinfonias de Stockhausen não têm lugar nos
meandros filosóficos. Os filósofos são muito bons para detectar as grandes
questões e esmiuçar como elas se embaraçam, mas para desenroscar o fio nem
sempre se mostram como os melhores proponentes. Marx descreveu lindamente como
a história se movimenta pela luta de classes, mas o comunismo não se provou até
hoje como a resposta. Kierkegaard narrou como a existência é escolha e
angústia, mas sua solução parece a resposta de um padre. Adam Smith enxergou
como o mercado se equilibra entre oferta e demanda, só que largado ao sabor do
vento se demonstra como uma lavoura de miséria. Em resumo, as respostas da
filosofia sempre são estimulantes do pensamento, mas não entregas prontas e
acabadas.
Por essas e por
outras é que, ao menos no meu caso, a filosofia não serve de consolação, como
se fosse um substituto para deus. A não ser que possamos considerar que o
conhecimento seja uma maneira válida de se passar os dias, e o saber possa ser
considerado uma forma de suprir as ausências que inevitavelmente temos em
nossas vidas.
Não digo isso
com presunção. Eu sempre procuro dar boa base para as coisas que escrevo, e
embora meus textos não sejam acadêmicos, com formatações ABNT e cobertura de
fontes a cada letra, até porque quero dar certa leveza a temas áridos, vocês
sempre poderão perceber nas indicações que há uma obra na qual os posts são
calcados. Evidentemente não tenho todos eles na cabeça. Mas há fatos que
acontecem na minha vida para os quais procuro inspiração no que aprendi de
filosofia e correlatos. E às vezes vou buscar referências em compêndios mais
simples. Nem só de Kant e Hegel a Filosofia viverá, mas de toda palavra que
reserve alguma lógica e força especulativa.
E por que digo
isso? Desde uns sete ou oito anos para cá, existe uma coleção chamada Grandes
Ideias da Humanidade. Ela surgiu em terras ianques e fez sucesso por lá, e aqui
nas terras do seo Cabral também
acabou emplacando, embora tenham diminuído o formato para economizar no custo
sem diminuir no preço. Cada um dos livros é dirigido para uma determinada
pauta, e assim temos o Livro da Filosofia, da Política, da Sociologia, dos
Negócios e assim por diante. De tempos em tempos, novos volumes são lançados,
com novas áreas sendo abordadas, cada vez mais específicas. Todos os livros
traçam uma linha temporal e vão costurando os diferentes autores com os
principais fatos históricos. Até pouco tempo atrás eu tinha a coleção em dia,
mas lançaram cinco novos títulos e eu não estou podendo dispender a grana todo
em um só aviamento.
São livros
feitos no capricho, há de se convir. Tem um bom projeto gráfico, o papel utilizado
é de primeira linha, todos tem capa dura, várias ilustrações e os pesquisadores
são eficientes, dificilmente deixando passar em branco algum autor ou ideia
importante. É bem verdade que o tamanho reduzido dos últimos lançamentos torna
um pouco mais difícil sua leitura por gente pouco privilegiada de visão, como é
o caso deste escriba, mas ficam belos na estante e contém informação relevante.
Mas a grande
questão: livros desse tipo, que contém informação enciclopédica, são de fato
uma boa fonte para consulta?
A resposta é
simples e, em parte, opinativa. Sim, são uma ótima fonte para consulta. Mas
isso tudo nos termos corretos, que vou tentar destrinchar agora.
Essas
enciclopédias trazem inúmeras referências que podem ser úteis. Imagine que se
queira saber mais sobre um tema específico, digamos Epistemologia. Se você
localizar qualquer autor que trate sobre o tema, conseguirá fazer inúmeros
links sobre outros autores, até se conseguir formar uma visão um pouco mais
ampla. Então Sócrates puxará Platão, que puxará Aristóteles, que puxará
Descartes, que puxará Kant e assim até o término, formando um compêndio
bastante razoável sobre Epistemologia. É quase a mesma coisa que faço, muito
mais humildemente, neste espaço. Eu jamais poderei esgotar um assunto aqui,
porque não é minha proposta e não tenho forças para tanto, mas há um
encadeamento que procuro dar através de links e resumos de temas que espero
serem instigantes o bastante para estimular, aí sim, a pesquisa mais
aprofundada.
Entretanto, é
preciso não cair na armadilha de se achar um intelectual apenas por ter esse
tipo de livro na estante. O conhecimento que eles fornecem é superficial, uma
espécie de guia para correr atrás de profundidade. Se, por exemplo, percebo que
eu tendo a puxar sotaque todas as vezes que vou para uma cidade diferente da
minha, e encontro uma referência sobre o assunto em um desses livros, ganho
fontes para correr atrás. É um fenômeno chamado mere exposition, e que ocorre quando somos apresentados a
determinados fatores ambientais que fazem com que adaptemos nossas condutas sem
que percebamos. Não fosse a existência de um tópico desses na coleção,
dificilmente eu o conheceria e procuraria em compêndios mais especializados. Esse
é exatamente o caso de uma consulta a livros dessa coleção que redundou em uma
consulta mais profunda e que terminou neste
texto.
Volto ao cerne
do texto. A questão de se sentir consolado pela filosofia é, na verdade, uma
assertiva meio falsa. Não no sentido de se não ser possível encontrar no
conhecimento uma causa para defender na vida ou para encontrar propostas para
dúvidas que são angustiantes de fato. Mas isso não é um conforto para o fim, e
sim um motivador para não se desesperar em uma vida sem sentido. Esses sentidos
podem ser tremendamente simples, como já preconizavam os epicureus
há mais de dois milênios atrás. Tudo pode ser motivo de prazer se não formos
exigentes com o mundo que nos cerca. Por exemplo: as coisas que eu escrevo aqui
hoje bastam por si mesmas. Se eu fosse criar expectativa por um número
gigantesco de leituras, eu já teria procurado outra turma. Se eu fosse para o
YouTube, teria que ter muito mais gasto e ocupação, e podendo atingir
unicamente mais frustração. Se abrisse uma conta no Instagram, talvez houvesse
mais gente percebendo minhas olheiras do que prestando atenção em que estou
dizendo. Tudo isso poderia se tornar um grande peso se minhas expectativas
forem muito altas.
Mas a vida
ensina. A gente baixa o nível de expectativas e, com isso, sofre menos… Bom, aí
já é estoicismo.
E eu nem sei bem qual caminho ético é melhor, mas também não importa. O que é
legal na história da filosofia é que você percebe que muita gente já se
defrontou com os mesmos problemas que nós, e isso sim é um motivo de grande
consolação, porque demonstra que somos muito parecidos nessa barca chamada
humanidade. Alguém, em algum momento, já pensou nos mesmos dilemas que vivemos
hoje. Ele coloca isso na pedra e tempos depois nos sentimos acolhidos por uma
proposta de solução, que podemos guardar e aperfeiçoar, ou simplesmente aprender
com ela. Todas as vezes que eu coloco um texto neste blog, tenho a esperança de
que alguém venha aqui e ao menos se sinta induzido a saber mais, mesmo que seja
para se opor. E isso, agora sim, me consola, porque me dá um lugar no mundo. Se
(e somente se) isso serve de consolação, então a resposta se torna positiva.
Bons ventos a todos e até a próxima efeméride, daqui a uns dois ou três anos.
Mas continuem lendo os textos não redondos.
Recomendação
de leitura:
Como eu já bem
falei no corpo do texto, recomendo toda a coleção Grandes Ideias da Humanidade,
da Editora Globo, sempre com o espírito de se ter o início do início em um
determinado tema.
Parabéns por chegar à marca dos 400. E sentir-se motivado para continuar escrevendo.
ResponderExcluirTambém penso que "entrou no boteco errado" quem procura na filosofia uma forma de consolação.
Não sei se é o caso, mas essa tentativa de preencher a vida com positividade via textos filosóficos me lembra aquele livro que até vendeu bem um tempo atrás, "Mais Platão, menos prozac" - e que me pareceu meio cascaqueteiro e ajudou a embalar a onda da chamada filosofia "clínica" (aliás, não sei se você já abordou esse tema aqui no seu blog; fica a sugestão). Um abraço.
Obrigado! Boa sugestão, já foi para a fila.
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