(Você já se viu em uma situação que parece igual a outra vivida no passado? Isso é um déjù-vu. Vamos filosofar sobre)
Olá!
Eu nunca tive galinhas na vida. É bem verdade que sempre
tive passarinhos, mas o máximo que eu cheguei perto de ter galinhas foi com
codornas. Só que minha filha trabalha com gente que mora em bairros rurais, e
apareceu em casa com quatro penosas. As galinhas não são minhas, mas o encargo
de lhes preparar um galinheiro é meu.
Não vou dizer que foi muito trabalhoso, nem que ficou um
primor de engenharia. Pelo contrário, ficou com o estilo de uma favela,
malgrado a insistência da patroa em recobri-la de telas de plástico, ao invés
de fechá-las com ripas. Melhor ainda, ficou mais fácil. Para tanto, fui atrás
de caibros, ripas e duas telhas de brasilite, que não teve escapatória,
precisei comprar.
Acontece que choveu e choveu e choveu, impossibilitando por
alguns dias a feitura da casinha. Deixei tudo encostado no muro e fui tomar um
café, porque não restava muito a fazer. Mais tarde, fui recolher os
neodinossauros para dormir, mas quando olhei no quintal não vi nenhuma delas.
Entrei assustado e fui procurá-las, até ver que estavam lá, embaixo das telhas
que formavam uma cabaninha, para se proteger dos pingos que ainda caíam.
A cena não teria nada demais, não fosse um detalhe. Como eu
abri o texto dizendo, nunca tive galinhas, mas todo o transcurso se deu à minha
frente como se já houvesse ocorrido em algum momento atrás, e que eu estava
novamente o vivenciando.
Não se trata de nenhum fenômeno raro, que somente alguns
iniciados têm acesso e que colocam como alguma virtude entregue pelos céus. Na
verdade, é bem frequente até. Chama-se déjà-vu, termo francês que significa
algo como “já visto”, e corresponde a algum tipo de falha cerebral em que se
tem a nítida impressão de que algum evento ocorrido no presente é uma
reprodução do mesmo evento ocorrido no passado. Seu nível de realismo é variável,
mas por vezes chega a ser assustador, durando inclusive um tempo considerável.
Eu já vivi essa experiência não sei quantas vezes. Sempre em
períodos curtos, sem nenhum tipo de gatilho notável, causou-me impressão apenas
quando criança. Para ser bem franco, percebo que eles vêm rareando, a ponto de
não me lembrar da última vez em que tive outra viagem dessas.
Mas não deixa de ser interessante esse tipo de
curto-circuito cerebral, que não é irrealista como uma alucinação, nem
fantasioso como uma história inventada. Achei por bem dar uma pesquisada no
assunto, mas – frustração – há pouquíssima coisa esclarecida, sendo que as
principais explicações continuam no campo de hipotético.
O grande problema de se estabelecer programas científicos
para investigar o déjà-vu está na inconstância do fenômeno. Não dá para
selecionar um tanto de participantes, juntá-los em uma sala e dizer: tenham
déjà-vus. Também não é possível colocar eletrodos na cabeça dos experimentandos
e falar para eles saírem por aí, aguardando ocorrências que podem demorar anos
para acontecer. Por esta razão, o conhecimento efetivo que se tem sobre o tema
não é tão seguro quanto gostaríamos que fosse. Mas existe a Filosofia, e eu
gostaria de tentar alguns palpites sobre o tema.
Algumas das explicações mais comuns trazem um componente
metafísico ao fenômeno. Certas correntes esotéricas entendem que o déjà-vu é um
modelo de premonição inconsciente, na qual a sensação de repetição se dá porque
a descrição do fato não fica na flor da consciência, mas escondida no âmago da
mente. Quando o vaticínio se concretiza, a sensação é de que ele já tinha sido
vivido. Os espíritas, por sua vez, entendem que o déjà-vu nada mais é do que a
repetição de uma experiência em vida passada. Um espírito que vai reencarnar
tem o livre-arbítrio de escolher as provas que enfrentará para fazer sua
purificação. Algumas delas incluem reviver experiências de vidas passadas para
aperfeiçoar sua conduta diante delas. Como há vários marcos temporais que
obrigatoriamente precisarão ser revividos (lei do carma), o déjà-vu nada mais é
do que uma leve recordação ainda guardada no subconsciente dos fatos que
ocorreram em um momento desses.
Mas eu quero traçar hipóteses sobre coisas mais próximas da
concretude. E apesar de não ter encontrado uma explicação direta pela área da
Psicologia, ainda é nela que eu vou me socorrer. Mais especificamente na teoria
de cognição de Donald Hebb, psicólogo canadense, que militou fortemente na área
do behaviorismo, o estudo psicológico pelo viés comportamental.
Desde nossa infância, recebemos estímulos que vêm do
ambiente que nos cerca. O caminho é sempre o mesmo: algum sentido é excitado e
as fibras nervosas encaminham a informação obtida para ser processada pelo
sistema nervoso central. De acordo com o que se recebe, certos neurônios são
acionados e formar uma rede sináptica, e conforme a mesma experiência se
repete, mais e mais reforçados ficam esses conjuntos de neurônios que atuam em
conjunto. Digamos que todas as vezes em que nossas mães iriam nos alimentar,
elas amarrassem um babador em nosso pescoço. Isso faria com que os neurônios
que comandam nosso ato de sucção e do prazer do alimento já fossem escalados no
seu conjunto. É esse tipo de agregação de neurônios para realização de uma
tarefa que Hebb chamava de assembleia
neuronal.
Os neurônios são células que se comportam de maneira
peculiar no corpo humano. Enquanto as demais células se multiplicam aos
borbotões e morrem com a mesma volúpia, os neurônios somente se desenvolvem até
o término do desenvolvimento cerebral. Daí para frente, quando eles morrem, não
há reposição, e isso explica muitas das doenças da velhice*. Mas cada um deles
não se restringe a uma única tarefa. As assembleias se desfazem assim que o
estímulo cessa, e os seus participantes ficam livres para ser incluídos em outras
assembleias e em outras sinapses.
Essa formação das assembleias neuronais, portanto, fica
inscrita em algum lugar do SNC, e é resgatada assim que recebe o estímulo específico,
tratando de acionar toda a cadeia própria daquela tarefa. Quem conhece
informática, fica surpreso como esse tipo de funcionamento é semelhante ao que
ocorre nos componentes de um computador, e é fazendo essa comparação que me vem
à mente uma possibilidade de funcionamento do déjà-vu. Vamos ver se consigo
expressá-la.
Um computador precisa de memória, do contrário não teria
onde armazenar seus dados. A maior parte destes fica gravada no disco rígido (hard disk em inglês), carinhosamente
conhecido como HD, onde lá ficam através do uso de pontos magnéticos. Mas não
basta jogar a informação lá e deixá-la grudada. Há toda uma sistematização por
trás disso. Vou falar como funciona o armazenamento em um HD de forma
extremamente simples. Todo o espaço físico de um disco é separado em milhões de
pequenos compartimentos onde as informações são gravadas. Digamos que você
tenha uma unidade zerada, e comece a armazenar suas músicas, textos, fotos,
vídeos e documentos em geral. Essas informações todas ficarão lá guardadas pelo
tempo que você achar necessário. Os dados serão gravados e sobrará uma boa
porção de disco para futuros armazenamentos.
Ocorre que existirão certas informações que você quererá descartar um dia. Neste caso, ao apagá-las, ficará no disco um buraco onde antes havia informações.
Este buraco, caso não fosse reaproveitado, tornar-se-ia
inútil pelo restante da vida do HD. O que o computador faz é aproveitar esses
buracos com informações novas. Entretanto, seria coincidência demais se o
arquivo novo tiver o mesmíssimo tamanho que aquele que foi apagado. O que
ocorrerá na estúpida maioria das vezes é que tenhamos tamanhos menores ou
maiores. Sendo menor, a informação nova preencherá uma parte do espaço e ainda
restará um tanto para outras informações.
Se a informação nova for maior, ocupará mais de um buraco, ficando pulverizada por vários pontos do disco rígido.
Ora, se a informação não é armazenada de forma contínua no disco, como o computador sabe qual a sequência certa para poder recuperá-la? É que existe um outro setor no próprio disco que armazena o mapa de gravações de todos os dados nele existentes. É um registro que funciona mais ou menos assim: o documento texto.txt começa no endereço A e vai até o endereço B, daí reinicia no endereço C e vai até o endereço D, daí vai até o endereço E e termina no endereço F, por fim vai ao endereço G e termina no endereço H. Na hora em que a informação é requerida, o controlador do HD pega o seu mapeamento e retorna a informação completa para o computador.
Percebam que este mapeamento é parte integrante da informação, e sem ele o dado gravado é morto. Está lá, mas não serve para nada. Se você pegar o esqueleto desse mapeamento e der um salto de um endereço para qualquer lado, a informação remontada será totalmente desconexa e a central não saberá processá-la. Já tentou abrir um arquivo e deu uma mensagem de erro? Essa é uma das causas possíveis.
Da maneira que estou pensando, algo semelhante ocorre no
cérebro quando acontece um déjà-vu. As assembleias neuronais são semelhantes ao
mapeamento das informações contido no HD, que serve muito bem quando a
informação é coerente, mas que se perde quando há ruídos. Certas situações vão
fazer com que um determinado esquema de assembleia seja acionado, seja por
semelhança, seja por contiguidade, seja por unidade, seja por pregnância ou por
qualquer outro motivo que a evoque. Acontece que a assembleia acionada não
corresponde à realidade, apenas possui algum fator em comum análogo a ambas - a
situação real e a situação recordada. Ela foi chamada por engano, só que está
agora na memória de trabalho e precisa dar uma solução para o fenômeno que tem
à sua frente. É como se o mapeamento houvesse sido chamado e sido aplicado para
outros dados. Em um sistema de informática, os erros são tratados em uma
mensagem amigável, para o usuário compreender que algo está errado, e no
cérebro o erro é tratado como se fosse uma situação já ocorrida, justamente
porque já existe uma estrutura (a assembleia) preparada para reconhecer o
evento preexistente.
Dessa forma, o fenômeno teria a ver com o processo de
aprendizagem que cada um de nós passou, e que tem reflexos quando seu
acionamento é dissonante com relação ao seu propósito inicial. Não constatamos
isso logo de cara porque a formação da assembleia é muito difusa. Essa rede não
acontece por nosso próprio impulso. Eu não digo: tenho uma situação X e vou
chamar a cadeia de neurônios que respondem a ela, porque isso vai sendo fixado
aos poucos, especialmente na infância. Mas, da mesma forma que ocorre com as
falsas memórias, com a dissonância cognitiva, com a pareidolia, com a descontinuidade mental e
tantos outros, aqui também temos um descompasso cerebral, que lança mão de
experiências já passadas para colocar no lugar da cognição não completada.
Não sei se faz sentido o que eu disse. Os comentários estão
disponíveis para quem quiser achincalhar (sem xingar), mas é que minha cabeça
não é só filosofia, mas informática também. Afinal de contas, foi nessa área
que eu encontrei o ganha-pão, já que o salário de professor não é digno em Ilha
de Vera Cruz.
Por fim, eu sei que Donald Hebb tem seu lado polêmico, com
os estudos e experimentos de privação sensorial que acabaram por redundar em
cometimento de ilegalidades pelos órgãos de segurança estadunidenses. São duas
coisas: a primeira, é que Hebb não pretendia submeter ninguém a sofrimento
psicológico, e a segunda é que o uso de seus estudos ocorreu à revelia dele. Entretanto,
o fato é que os abusos ocorreram, e, por isso, faço questão de frisar que tudo
o que usei aqui não tem relação com essa parte de suas teorias, mas apenas com
sua parte mais relacionada ao funcionamento neuronal.
Vou aproveitar que a chuva deu uma amenizada para terminar
minha obra prima de engenharia. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Em italiano.
HEBB, Donald. L’organizzazione
del comportamento. Uma teoria neuropsicologica.
Milão: Franco Angeli, 1975.
* Embora existam pesquisas que vem demonstrando que há, sim,
uma reprodução contínua nos neurônios cerebrais, mas adotarei o consenso atual
para não criar confusões no meu texto.
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