(As origens sempre são objeto de nossa curiosidade. A mesma coisa se aplica a palavras e expressões)
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De onde você vem? Essa é uma daquelas perguntas que passam
pela cabeça de todo mundo. Algumas vezes, quando ainda somos crianças,
perguntamo-nos como chegamos ao mundo. Pessoas que creem em múltiplas
encarnações gostariam de saber o que eram em vidas passadas. E há quem goste de
traçar as origens familiares, tentando encontrar algum ramo de sua linhagem que
pertença à nobreza. Isso gera as longas árvores genealógicas, muitas delas com
forçadas de barra monumentais só para dar aparência insigne e augusta a alguém
nem tão esplêndido assim.
De minha parte, menos metafísico, queria confirmar com mais
certeza os relatos de meus ascendentes, que eram as únicas ferramentas
disponíveis até bem pouco tempo atrás e, se por um lado traziam todo um
colorido à nossa imaginação, por outro careciam, infelizmente, de precisão. Eu,
por exemplo, sei que meus avós paternos eram italianos, e os maternos eram um
da Itália, outro da Espanha. Mas e antes disso? De onde eram os avós dos meus
avós? É sempre possível fazer suposições, mas sem cravar grandes prognósticos.
Daí que surgiram nos últimos tempos exames baseados em DNA
para traçar as origens baseados na semelhança genômica. Isso me chamou bastante
a atenção, de modo que me interessei por sapear um orçamento. Caro! Mas a magia
da internet permite que tentemos conseguir promoções, e verifiquei que vários
canais do YouTube oferecem cupons de desconto para quem fizesse um orçamento
por sua indicação. Isso fez minha cabecinha mascateira girar suas engrenagens:
é óbvio que eles não permitem cupons cumulativos via site, mas o que
aconteceria se eu usasse a rapidez típica dos mercadores e um pouco de confusão
mental no meu interlocutor? O jeito é tentar fechar um contato e conseguir
falar com alguém de carne e osso. Em uma delas, fiz uma maçaroca de ofertas
dadas por vários youtubers, introduzi a temática da vontade inenarrável, falei
sobre os fregueses que se ganham e a quantidade de indicações que a gente
consegue fazer e mais um monte de blá-blá-blá que minha suposta descendência
judaica parecia ensinar. Sim, é verdade. Eu ando por Higienópolis e o pessoal
me cumprimenta, como se pertencesse à comunidade. Quem me dera.
O resultado foi surpreendentemente bom, com um desconto de 40%
para dois exames, o meu e o da patroa, o que já serve para os filhos também.
Recebidos os kits e enviadas as babas, o resultado chegou em quinze dias. Com
relação à patroa, deu mais ou menos o que se esperava: uma mistura de Europa
Central e Américas, com pitadas de Itália e África Subsaariana. Quanto a mim,
93% de ascendência europeia, com ênfase nas Penínsulas Itálica e Ibérica e
Europa Central, o que certamente vem da França, com um restinho do norte da
África e do Oriente Médio. Duas surpresas, no entanto. Mesmo com a cara típica
de judeuzinho do Bom Retiro, menos de dois por cento do meu DNA vem dessa
etnia, e um bom pedaço dele, cerca de 10%, vem do Cáucaso, cujo representante
mais comum em Terra Brasilis vem dos armênios.
Não tenho nenhuma notícia de parentes da Armênia. Tentei
ainda puxar o restinho da memória dos parentes mais antigos para tentar achar
alguma possível via, mas nada. A única coisa que eu sei é que meus avós moravam
na Mooca e o seo Poladian, maldosamente chamado de turco da foto*, era
um vizinho que tinha uma casa fotográfica. O resto é história, ainda mais
porque não quero deposições contra a honra para nenhum dos meus familiares.
Todos nós gostamos de conhecer origens, porque nossa
cabecinha carrega um telencéfalo extremamente desenvolvido e que é louco por
estabelecer correlações de causa e efeito, mesmo que nem sempre elas sejam
reais. E se procuramos saber de nossas origens, também nos apetece conhecer
as origens de nossos países, de nossas religiões, de nossos sistemas sociais,
de nosso conhecimento científico e até mesmo de nossos times. Fazemos isso
porque uma história contada inteira dá encadeamento muito mais lógico ao estado
atual do mundo, e mata uma espécie de fome de conhecimento. É como ocorre com
as baratas que aterrorizam os verões brasileiros. Se sabemos por onde elas
entram, podemos agir tapando buracos e instilando venenos, ao passo que uma
mera presença misteriosa dá aquela sensação de braços amarrados. Ou então
falando mais fácil: podemos passar a vida inteira sem perguntar de onde veio o
bibelô que está na estante, mas é muito mais legal quando ele tem uma história
e nós podemos transmiti-la, não é verdade?
A mesma coisa acontece com as palavras, essa espécie de
átomo da linguagem, as primeiras a carregarem consigo algum sentido. E o estudo
da origem das palavras e das expressões idiomáticas é conhecido como Etimologia.
Da mesma forma que ocorre com seres humanos e com coisas,
sempre importa mais o sentido imediato das palavras. É quase uma coisa
instintiva. Preocupamo-nos com seu uso e seu significado dentro de uma frase,
no mais das vezes sem pensar em sua história, o que faz com que o estudo
etimológico pareça secundário. Acontece que, se em um momento corriqueiro possa
ser verdade que minúcias linguísticas nem passem pela nossa cabeça, em qualquer
leitura mais aprofundada a correta interpretação da origem de uma palavra traz
informações que enriquecem muito o sentido geral que se obtém.
Quando coletamos informações sobre uma cidade, como costumo
fazer em meus textos de viagens, muitas vezes damos de frente com nomes
indígenas, muito sonoros, mas que não sabemos de imediato o que querem dizer.
Ao desvendá-los, ganhamos dados que não falam somente sobre a palavra em si,
mas sobre a própria origem do lugar, e isso mostra a importância da Etimologia
para além da curiosidade. No caso do estado de Pernambuco, por exemplo, uma das
versões diz que este nome vem do tupi paranã-puka, que significa algo
como "buraco no mar". Isso se deveria ao fato de que há um braço de
mar dividindo a ilha de Itamaracá ao continente, que fica praticamente
encaixada na costa, como se fosse uma peça de puzzle. Notem as
informações extraídas somente da origem do nome: trata-se de uma região
costeira, onde há ao menos uma ilha que contém importância geográfica. É mais
ou menos o que eu já havia falado neste
texto, sob outro viés, em que eu choramingava contra as mudanças de nomes
significativos de ruas por sumidades absolutamente alheias à história daquele
local. Outro exemplo, este vindo do português mesmo: Bahia. Sabe-se que seu
nome completo era Bahia de Todos os Santos, o que já nos diz se tratar de
região litorânea, com um acidente geográfico específico (a baía) e que foi
descoberto no dia 1 de novembro, por ocasião da festividade católica de Todos
os Santos, dia destinado, ora vejam, para homenagear todos os santos
reverenciados por aquela igreja, inclusive os desconhecidos.
Bom… sejamos justos e verifiquemos a etimologia da palavra Etimologia.
É uma palavra que vem do grego e é a fusão dos termos etimo e logos.
Este último já é velho conhecido nosso, e, no contexto aplicado, significa
estudo. Porém, como o tema é origem das palavras, vou dar uma caprichada. Logos
é uma palavra polissêmica, ou seja, pode ter múltiplos sentidos. Sua raiz mais
profunda está na capacidade humana de interligar o discurso com a estrutura do
universo. Em outros termos, o logos é nossa razão, a transformação de realidade
em conceitos e em linguagem, e seu consequente processamento. Por isso, quase
sempre que queremos nos referir ao estudo sistemático de alguma área,
acrescentamos a ele o termo "logia".
E o que é esse tal de étimo? É o significado mais profundo,
a verdadeira acepção de um termo. Sempre que se faz um estudo aprofundado de
uma palavra qualquer, é em busca do étimo que se vai.
Percebemos que a busca pelo étimo revela vias diversas de
transmissão dos termos através da história. Como vivemos no Brasil e temos o português
como língua base, a maior parte de nossa etimologia é de origem latina. Ocorre
que nossa mestiçagem linguística é ainda maior que em Portugal. Tudo começa lá
mesmo, porque o latim que origina a última flor do Lácio é cheio de misturas
bárbaras, além do próprio latim já carregar consigo muitas etimologias
indiretas. Eu falava sobre o étimo. Ele chegou a nós pelo latim etymon,
que, por sua vez, é oriundo do grego étymos. O mesmo ocorreu por via das
invasões ao império romano, que trouxeram palavras germânicas, árabes et
cetera. A alface de sua salada, por exemplo, tão cara aos portugueses, veio
do Magreb, que conheciam a folhagem por al khass.
Só que em Pindorama a coisa é ainda mais enriquecida com
vitaminas e ferro. Esta é uma terra de imigrantes, de escravatura tardia e que
era povoada de indígenas, o que fez com que sua língua se tornasse ainda mais
preenchida de termos que o português de Portugal. Notem que alguns deles são
vazios de sentido para os conterrâneos de Camões, mas que podem ser
aproveitados por aqui sem perdas: “tocaia” e “esconderijo” são sinônimos no
Brasil, sendo que o primeiro, sendo de origem tupi-guarani, inexiste em
Portugal; no Brasil, a palavra “tchau” se tornou marca da despedida breve,
vindo do italiano ciao, o que não ocorre em Portugal. “Moleque”, de
origem africana, não faz grande sentido na ponta da península. E assim vai.
Os etimólogos fazem trabalho de gente grande. Normalmente,
temos o termo presente e consegue-se recuar no tempo com alguma tranquilidade
até certo ponto. Daí para trás, os elementos vão ficando mais e mais nebulosos,
até se perderem na poeira do tempo. Entretanto, a busca é fundamentalmente
sempre a mesma: encontrar o radical de um termo. Essa palavra vem de raiz, que
é uma alegoria para o que de mais profundo uma palavra pode ter. Para descobrir
essa origem mais remota, é bastante normal a necessidade de uma espécie de
engenharia reversa, atentando à maneira como a palavras se formam para fazer o
processo invertido. Eles levam em consideração fatores como:
Afixação: um radical dificilmente é apresentado
sozinho para dar significado completo a uma palavra. Notem, por exemplo, que os
verbos contêm suas várias desinências para situar o tempo e as pessoas. O verbo
“cruzar”, por exemplo, tem seu radical cruz-, que sempre estará presente
em qualquer palavra que lhe seja derivada, além do sufixo -ar, que lhe dá a
característica de ser um infinitivo, e daí por diante na conjugação: cruzei,
cruzaste, cruzaria, cruzem, cruzando e via discorrendo. Também há
prefixos que modificam o radical - entrecruzar, descruzar e por aí vai.
Apofonia: é a alteração de timbre de vogais em
vocábulos que compartilham um mesmo radical. É muito comum observar este
fenômeno nos plurais onde a letra “O” é fechada no singular e aberta no plural:
porto/portos, novo/novos, gostoso/gostosos. Há casos, porém, em que a alteração
é mais radical, com a substituição de uma vogal por outra. Um clássico vem da
correlação podos em grego e pedis em latim. Ambas significam “pé”
em português, mas a diferença no uso do radical faz com que palavras grafadas
de maneira diferente tenham significado igual, como em podofilia e
pedolatria, o ato de ter fetiche por pés. Não confundir com pedofilia, por
gentileza, que é coisa muito mais séria.
Assimilação: a junção de certas letras no processo de
afixação tem a tendência de fazer com que uma assimile a outra, modificando-a
ou suprimindo-a. Comparando a palavra ajuntar e adjunto, podemos verificar que
ambas possuem o mesmo radical e o mesmo prefixo. Entretanto, em ajuntar ocorreu
a assimilação da letra “D” no prefixo ad, enquanto em adjunto isso não ocorreu.
Particípio: é o processo de adjetivação de um verbo.
A questão aqui é que frequentemente vemos um particípio nascer de outro
particípio. Desta forma, quando se acha o radical de uma palavra, encontraremos
um particípio, e ele mesmo já será a derivação de outra.
Há ainda outros fenômenos de transformação, como a tendência
em se trocar sistematicamente uma letra por outra, como demonstrei no texto deste
link, ou a utilização de letras de ligação para acomodação fonética. Um bom
exemplo é a palavra “chaleira”, cuja composição dispensaria a consoante “L”,
mas fica muito esquisito falar chaeira, concordam? É muito mais
acomodado linguisticamente a palavra com a adição da ligação, mas
etimologicamente se torna um problema quando acontece em uma língua remota.
A etimologia não cuida unicamente das origens das palavras,
mas também das expressões idiomáticas, que são muito mais particulares de cada
língua, porque envolvem muito do viver popular próprio. Isso faz com que a
tradução de uma expressão brasileira não faça sentido algum em Portugal ou em
Angola, por exemplo. O termo “pedra noventa”, comum no século XX nas regiões de
colonização italiana, é completamente estranha em Portugal. E por que? É que é
uma expressão que vem do jogo de tombola, semelhante ao bingo, que é composto
por cartelas com números que vão sendo sorteados de um saquinho, até que alguém
as complete. A maior das pedras é a noventa, e, portanto, o pedra noventa é o
amigo que não dá furo, aquele em que a gente pode confiar.
Por todo o exposto, é bem fácil de notar como a etimologia
não é apenas um apanhado de curiosidades sobre a origem dos nomes (embora essa
seja uma característica absolutamente legítima). É também um delineador das
rotas por onde o conhecimento passa. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Um clássico das consultas etimológicas:
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010,
* Chamar um armênio de turco é a mesma coisa que glorificar
o assassino de seus pais, meu caro leitor. Para maiores detalhes, leiam este
texto.
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