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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Navegações de cabotagem – O Soca Paçoca de São Luiz do Paraitinga e os momentos em que tradição é diferente de conservadorismo

Olá!


A vida é um eterno devir, já dizia nosso bom e velho Heráclito. Ainda que Parmênides não concordasse muito, o fato é que aqui não tratamos de Metafísica, mas de quotidiano mesmo. E este não para, como o tal rio no qual não nos banhamos duas vezes, seja porque ele não é mais o mesmo, seja porque nós não o sejamos. Digo tudo isso porque, hoje em dia, e dados todos os turbilhões pelos quais minha vida passou no recém findo decênio*, minhas redes de amizades ficaram muito mais restritas ao pessoal que conheço e mantenho contato em cidades do interior do que na capital da brava gente paulista. São coisas da vida e resisto estoicamente à melancolia, fazendo justamente o que? Visitas in loco a essa galera. É o que fiz no último inverno, na virada de agosto para setembro, quando fui mais uma vez a São Luiz do Paraitinga, terra que já visitei mais de dez vezes desde a primeira vez que lá fui, no contexto da série do cesto da gávea de onde observo o mundo, lá pelos idos de setembro/2016. Meio que me empolguei com a cidade, tanto que tomei a inédita e ainda irrepetida atitude de dedicar três textos à dita cuja (legíveis aqui, aqui e aqui). Fomos à loja nova da Neca, costureira e agitadora cultural que mora na Vila do Rosário, mas que finalmente se convenceu a descer o morro e transferir seus artesanatos para o miolo onde as coisas acontecem. Antes de ir até a casa da Dani, a Neca perguntou se a gente tinha vindo para a festa. Festa? Que festa?

São Luiz do Paraitinga não passa duas semanas sem ter algum tipo de evento, seja ligado ao folclore, seja ligado à religiosidade, seja ligado à história, seja por pura farra. Portanto, é muito difícil dar com as costas por aqui e não pegar algum tipo de agito em andamento. No caso, estávamos no meio da temporada de inverno, e a festa em questão tinha o curioso nome de Soca Paçoca.



O festival é extremamente simples. Os sitiantes de todas as partes do município se juntam na praça da Matriz com amendoim e outros ingredientes para que as pessoas aprendam a fazer paçoca, um dos doces mais populares da culinária brasileira, dada sua simplicidade e baixo custo. Porém, ao contrário das paçoquinhas Amor e Paçoquita, feitas em maquinário moderno, aqui a coisa se desenrola no método tradicional, ou seja, no pilão.



E o que é um pilão, além de uma marca de café, meus jovens? É um artefato de madeira escavado em uma única peça, que dá ao pedaço de tronco o formato aproximado de um cálice. Deve ser feito com uma árvore suficientemente seca e cuja madeira não interfira no sabor dos alimentos que serão processados em seu interior.



Sua função é produzir a moagem de alimentos, preponderantemente grãos. Esse trabalho é feito através de uma haste contendo uma ponta arredondada, chamada de mão. O material desta haste precisa ser mais duro do que o do pilão, para que tudo se dê como manda o figurino.



Esse labor é chamado de “soca”, pelo óbvio motivo de que os grãos são socados na cuba do pilão até ser reduzidos a pó. Não serve só para moer amendoim, mas para separar cascas de arroz, limpar grãos de café e qualquer outro trabalho que dependa de golpes sucessivos.



Mas, como estamos falando de paçoca, o Soca Paçoca se restringe ao amendoim e demais ingredientes. Os próprios produtores rurais se encarregam de trazê-los para a festa, com o apoio do pessoal que se voluntaria para fazer as medidas e distribuições.



A soca produz um ruído ritmado característico, que não pode ser muito rápido para não cansar, nem muito lento para não render. Quando há pilões maiores, a soca pode ser feita por mais pessoas de uma só vez, e, neste caso, o sincronismo é de rigor. É aí que a coisa começa a ficar mais interessante. Ao som das pancadas, temos um fundo rítmico com o qual os antigos colonos podiam entoar canções para acompanhar a lida, como já era comum com as lavadeiras e outros ofícios cadenciados e monótonos.



No caso do produto doce, os ingredientes são muito simples: amendoim, açúcar mascavo (de preferência) e farinha de milho. É bater, bater e bater até que o próprio óleo do amendoim se encarregue de fazer a liga, dando uma consistência mínima para o granulado.



Já a paçoca salgada, feita com carne, é um pouco mais trabalhosa. Além do amendoim e da farinha de milho, é colocada carne já temperada e cozida na mistura, além das pimentas usuais para quando os antepassados queriam dar uma disfarçada no sabor já meio “passado” da carne guardada por dias. Era uma maneira de se defender dos recursos escassos de outrora. O preparo também é mais longo, e o resultado final é semelhante a uma farofa.



Tudo é muito saboroso, e, novamente ao contrário das Paçoquitas, não se tratava de uma guloseima infantil, mas de uma alimentação consumida como desjejum ou almoço. Por isso, o seu acompanhamento mais célebre era café passado em coador de pano, que também é preparado aos litros durante a festa.



Como eu disse, conforme o pessoal vai pegando compasso, a soca perfaz um fundo percussivo, e os violeiros o utilizam para compor seu som. O grupo Orgulho Caipira já realiza essa tarefa no Soca Paçoca há anos, quando comandam as festividades e reproduzem antigas canções de ofício, além de sucessos bem conhecidos da música de raiz.



À medida que o pessoal da cidade vai chegando, e os turistas vão se reunindo a eles, a praça vai ficando cheia, e já não há pilões livres (na verdade, já há filas neles). Ninguém se aborrece: a dinâmica da festa é que a galera comece naturalmente a dançar neste momento. Algumas das danças são bem típicas, como o sabão e o catira.



Mas o que há de pano de fundo nessa festa? É que São Luiz do Paraitinga é uma cidade que foi fundada por tropeiros, os responsáveis pelo transporte entre os portos e as regiões das minas, situadas no atual estado de Minas Gerais, através do conjunto de caminhos e ramais conhecido como Estrada Real. Tudo isso era feito no lombo de burros, o bicho mais forte e adaptado ao terreno acidentado que caracterizava o trajeto.



Em tempos em que não existiam geladeiras, era necessário obter alimentos que combinassem alto valor nutritivo, boa capacidade de conservação, facilidade possível no preparo e, claro, um mínimo de sabor aprazível. Tudo isso podia ser conseguido com as simpáticas paçocas, tanto a doce quanto a salgada.



Sua origem é indígena, cujo nome remete justamente ao seu modo de preparo. Há uma variação bastante grande por todo o país, sendo que em algumas regiões é utilizada a farinha de mandioca, ou compactada em forma de barras e rolhas, quando é necessária uma compressão maior. Todas as paçocas produzidas no evento são do tipo pulverizada, daquelas que são vendidas em saquinhos, e distribuída livremente para os comilões.



No final das contas, podemos lançar olhares diferentes sobre este divertido evento. Para quem passa de passagem, é pura gulodice de um povo que adora uma festa. Para quem entende haver ali uma manifestação cultural um pouco menos rasa, já é possível entender que temos um pouco da história daquele povoado sendo contada, mas esse é um alheamento que impede de ver um pouco de nossos próprios traços sendo descritos ali. Afinal de contas, em toda a região do Vale do Paraíba podemos encontrar inúmeros referenciais que remetem à época em que o costado das mulas era o principal meio de transporte de mercadorias, que incluem os mercados, os marcos, os aguadouros e tantas outras peças, e são aproveitados casarios para se constituir museus, e os logradouros e estabelecimentos relembram esta época, e acabamos por esquecer que nós mesmos, paulistanos da garoa, somos também habitantes de uma terra de tropeiros. Infelizmente, sobraram pouquíssimos testemunhos físicos desta época, e que não são suficientes para formar contextos que satisfaçam a memória. Na Ladeira da Memória resta uma figueira e um painel de azulejos que representam a atividade de coleta de água que ocorria poucos metros abaixo; havia inúmeros tanques, como no Bixiga, no atual Largo do Paissandu e no Cambuci. Aliás, a Rua dos Lavapés tem esse nome não por uma homenagem à solenidade católica, mas porque era ali o local onde os tropeiros vindos de Santos podiam se acomodar e lavar seus pés antes de entrar no trecho urbano da Capital. A construção melhor conservada que marca a presença tropeira é o antigo Matadouro Municipal, que hoje abriga a Cinemateca Brasileira. É tudo tão pouco e tão disperso que é preciso procurar com uma lupa para achar, e, pior ainda, sem nenhuma possibilidade de criar um conjunto sem muita pesquisa e esforço mental.

Marcas do progresso, é possível pensar. Progresso desordenado, certamente, e com uma boa possibilidade de cometer o bisonho erro de achar que São Luiz do Paraitinga e outras são cidades que pararam no tempo: se por um lado mantém boa dose de suas tradições, por outro estão em um estágio anterior de desenvolvimento. Essa foi a roupagem que os primeiros antropólogos deram ao fenômeno da cultura, uma espécie de Teoria da Evolução aplicada ao modus vivendi dos diferentes povos. Dessa forma, olhamos com estranheza para cidades onde a vida é menos corrida e com menos recursos, traduzidos em toda aquela galera mandando braço no amendoim como se aquele modelo cultural fosse menos avançado do que nossa paçoca industrial*. Eles estariam, por esta via de pensamento, em um estágio anterior ao nosso, e seriam uma espécie de “registro fóssil” do que viria a ser tornar uma grande cidade.

O erro neste pensamento é o uso incorreto do termo “evolução”. Mesmo na teoria biológica, ele é inapropriado, porque um organismo que não possuir pressões ambientais para passar pelo filtro da seleção natural tenderá a se manter o mesmo, ad aeternum. Por conseguinte, as culturas se modificam de acordo com as pressões que sofrem, sem possuir uma escala hierárquica que diz qual é mais primitiva e qual é mais avançada. Por isso, falar em evolução no sentido de melhora é uma impropriedade. Comparar culturas é válido apenas quando não adotamos uma delas como parâmetro de superioridade.

Nós, paulistanos, fomos tão tropeiros quanto os luizenses, mas houve um momento tal em que o mundo girou e o café bifurcou o destino de ambas as cidades. E as condições materiais de cada uma estabeleceu o que elas são hoje. Desta forma, há valores diferentes em jogo. O paulistano médio, por exemplo, não gosta do Carnaval*** que o luizense adora. Só os católicos paulistanos mais carolas dão bola para a solenidade do Pentecostes, enquanto em Paraitinga a cidade inteira se mobiliza, se bobear até mesmo os não-católicos. A régua da cultura não é uma só – é múltipla, na proporção de uma para cada nicho de povo.

É o que ensina a antropologia do Relativismo Cultural, que nasceu especialmente de Franz Boas, um estudioso alemão que emigrou para os Estados Unidos no final do século XIX. Após participar de uma expedição entre os esquimós do norte do Canadá, convenceu-se de que não fazia sentido estudar as culturas sentado em um escritório, a meio de cafezinhos e cigarros. Somente com contato seria possível obter definições importantes. Uma delas é central na obra de Boas: não existe o conceito de raça. Se há raça, ela é humana. E, para isso, a ideia de evolução cultural é totalmente desprovida de sentido. Isso porque o mundo se apresenta a cada uma das sociedades de maneira diferente, e cada uma delas trata de arrumar uma solução para cada problema. Vejam que as dificuldades, apesar de serem as mais variadas possíveis, costumam ser assemelhadas entre diferentes regiões. Todos precisam de alimento, de refúgio, de território, de reprodução, de organização política e assim sucessivamente. Mas o modo como cada uma das etnias vai trafegar por essas necessidades é que dá especificidade para suas culturas. Por exemplo: obtida a alimentação, é preciso encontrar meios para preservá-la pelo maior tempo possível. A salga é uma dessas maneiras, mas é muito mais fácil de obter para povos litorâneos e ilhéus; outra é o resfriamento, mas como falar disso para povos equatoriais? É mais típica em regiões árticas. Os povos tropicais podem utilizar a desidratação, mais eficiente neste pedaço do globo. Salgar, gelar ou secar não possuem uma hierarquia de importância, porque resolvem eficientemente o mesmo problema da conservação de comida, e assim é também com todos os demais componentes intrínsecos a cada etnia, por isso não se pode dizer que uma cultura é mais avançada que a outra, porque cada uma delas usou o meio material que tinha à mão e conseguiu solucionar uma questão. Por esse exemplo simples, que pode ser estendido a qualquer outro aspecto onde a cultura aja, percebemos que é incongruente especular qual das etnias está em um ponto mais avançado que as outras. Ninguém quer que o luizense continue a preparar sua paçoca nos pilões, sem utilizar de tecnologia, mas que nunca perca de vista o quanto ela simboliza de importante na sua formação como povo. O paulistano perdeu muito disso na imensidão da metrópole impessoal. Desta forma, a tradição da forma que é demonstrada na praça da matriz de SLP não é uma questão de conservadorismo, de elementos imutáveis que, por uma razão ou por outra, faz com nos achemos melhores do que os outros, mas a exibição de um componente de nossa história, que é sempre atual, que é sempre renovada, e que explica o que somos hoje. A tradição só é conservadora quando nos prende ao passado, quando nos impede de avançar como seres humanos.

Boas, da forma que pudemos observar, prefigura duas nuances que serão vitais para as correntes da Antropologia que lhe seguirão. Ao sair dos gabinetes para tomar contato direto com determinada cultura, antecedeu a etnografia que caracterizou o Funcionalismo de Malinovski; ao detectar que os diferentes povos possuem as mesmas necessidades e desenvolvem soluções com as mecânicas que tem ao seu dispor, iniciou o pensamento que iria desembocar no Estruturalismo de Levi-Strauss, que defendia a existência de uma estrutura comum a todas as sociedades. Com isso, e pensando ainda mais na abolição do conceito de raça, não podemos deixar de considerá-lo um grande precursor do pensamento antropológico contemporâneo.

Quanto a mim, dei uma forrada básica no estômago, inclusive com um lote especial sem açúcar. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Para quem curte a cultura vista do lado de dentro, Franz Boas é um autor muito respeitável, e, embora já não esteja na crista da onda, é imprescindível para entender para onde caminhou essa Ciência. Não se entende a Antropologia sem Boas, assim como não se entende o presente sem a tradição.

BOAS, Franz. A Mente do Ser Humano Primitivo. São Paulo: Vozes, 2011

E tem o Soca Paçoca. Acompanhem pelo site da Prefeitura de São Luiz do Paraitinga. Geralmente acontece durante o inverno.

* Vamos tomar cuidado com as confusões. A década atual se iniciou em 2011 e só vai terminar em 2020. Quando falamos em anos 70, por exemplo, estamos falando de um período de dez anos (decênio) que começa pelo ano que os denominam e terminam quando essa denominação acaba. Em miúdos, começa em 1970 e termina em 1979.

** Queria lembrar que estou apenas usando a força do exemplo. Eu sei que há paçocas industriais em SLP.

*** É bem verdade que o Carnaval de rua tem crescido bastante nos últimos tempos em SP. No entanto, é um fenômeno que vem meio na carga das ações da Prefeitura, e precisamos ver quanto tempo levará para que tal movimento se torne legitimamente espontâneo. Ainda há muita cagação de regra censura no imaginário quatrocentão.

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