Olá!
Um dos indicativos que as coisas iam bem ou mal em casa
acontecia nos domingos, pela manhã. Isso se meu avô já não tivesse sumido
comigo para um desses campos de várzea da vida. Era o seguinte: meu pai não era
exatamente um grande literato, mas, dada sua condição de operário, até que o
danado gostava de ler. Isso incluía o jornal dominical, que era um calhamaço
cheio de cadernos disso e daquilo, incluindo até um suplemento infantil e outro
feminino, como se apenas reportagens sobre maquiagens e panelas interessassem
às mulheres. Mas era, naturalmente, a edição mais cara da semana. Nos tempos de
aperto, meu pai limitava-se a comprar meio quilo de batatas na quitanda do seo Minoru, às vezes acompanhado de um
pé de alface. Quando as coisas estavam melhores, ia à feira, que ficava um
bocado longe, principalmente se levarmos em conta a longa e íngreme ladeira que
precisávamos vencer logo de cara, para chegar à rua do Toco. Eu ia a
tiracolo, para carregar as coisas mais leves, porém volumosas, como as verduras.
“É coisa de homem”, dizia o velho.
A coisa compensava porque o melhor estava na volta. Sacolas
devidamente cheias, parávamos na banca de jornal que ficava de frente à
precitada ladeira, onde meu pai comprava a Folha. Sempre que isso acontecia,
sobrava para mim um gibi qualquer, e, com isso, a empreitada já tinha valido a
pena. Quem não gostava muito era minha mãe, já que meu pai era dado a espalhar
jornal por todos os móveis e pelo chão da sala, que chegava ao caos quando o
vento maroto arrastava as leves e grandes folhas pelo cômodo inteiro. Menos mal
que uma edição fornecia um mês de reposição para a gaiola dos passarinhos.
Isso tudo parece uma bobagem qualquer que se passa na vida
de quase todo mundo, mas não é só uma memória afetiva. Na verdade, a leitura de
gibis foi, no meu caso, um grande meio de incentivo à leitura. Modéstia à
parte, leio muito bem, provavelmente melhor que a média no Brasil. E, embora
tenha diminuído muito o costume de comprar gibis, os quadrinhos foram
propedêuticos no meu gosto pela leitura, e continuo a preferi-los aos
semanários (nem tão) jornalísticos nos consultórios de dentista. Ou seja, a
visão que se tem dos quadrinhos como mero entretenimento é uma grande bobagem.
Isso acontece com muitas outras coisas, como se verá.
Isso posto, um tempinho atrás, algum artista anônimo
instalou bem na esquina da rua de casa uma série de quadros dispostos
sequencialmente, dissecando algumas considerações filosóficas e sociais de um
mendigo que tramita pelo centro desta desvairada pauliceia. Uma história em
quadrões! Ela já não está mais lá, evidentemente, surrada pelo clima maluco e
açoitada pelo vandalismo, e finalmente arrancada pela prefeitura, que construiu
umas casinhas no terreno ao lado.
Entre as dissertações do morador de rua que caminha sarcástico
com sua meia dúzia de pertences e as historinhas da minha infância há uma
distância abissal. Destas últimas, extraímos apenas a função de entreter, mas
há sempre algo a mais que podemos retirar de uma manifestação cultural, ainda que
destinada precipuamente a crianças, como também é o caso dos desenhos animados.
Vamos tentar ver isso.
Quais eram as revistas que meu pai me comprava? Sempre uma
por vez, flutuava entre Turma da Mônica e Disney, com raras exceções, porque
eram as mais em conta. Gostava de ambas, mas o meu personagem favorito
disparado era o Zé Carioca.
Se fizermos uma análise bem crítica, é um personagem dos
mais politicamente incorretos, porque sua construção reforça o estereótipo
maldoso que temos do carioca. Por um lado, é um vagabundo, a quem a palavra
“trabalho” causa calafrios. Por outro, é um aproveitador, o malandro romântico
que dá a volta no mundo para conseguir algum tipo de vantagem, principalmente
aproveitando da ingenuidade de seus amigos e da complacência de sua namorada
Rosinha. Sabemos que esse estigma nasce das ideias mirabolantes de um dos
presidentes mais bem conceituados do país, Juscelino Kubitschek, ídolo mineiro
(como consta deste texto) que mudou a capital federal do Rio de Janeiro
para Brasília. O grande problema (além do consumo de recursos exorbitante) é
que o Rio deixou de ser a sede administrativa do país sem um plano para
encontrar uma nova vocação econômica, mesmo com todo o seu potencial turístico.
Desta forma, a fama de cidade inoperacional foi se fixando perniciosamente, sem
que a sua população tivesse exata noção do que fazer. O mais interessante a
notar aqui é que a figura do bonachão desinteressado pelo labor não foi
construída pelos seus criadores ianques. Sua apresentação original foi a de um
anfitrião hospitaleiro, dado sim a prazeres, mas por aquilo que de paradisíaco
seu ambiente apresentava. Eram épocas da política da boa vizinhança e nada
muito polêmico seria mesmo elaborado. A personalidade que nos é apresentada foi
esculpida por brasileiros, quando assumiram a personagem para redigir
argumentos próprios. O pior é quando nos é apresentado o Zé Paulista, seu exato
contraponto. Um executivo sempre com pressa e afazeres concomitantes, é a
antítese da vida vivida prazerosamente. Ambos se dão mal, em geral, nos
desfechos de suas aventuras, mas que há um reforço imenso nos estereótipos,
isso há mesmo.
Com relação à Turma da Mônica, gostava ma non troppo. Eu sempre tive a impressão de que o Cascão era um
menino pobre, em oposição à classe média baixa do restante da turma, e achava
legal isso, porque não havia nenhuma nota de comiseração para tornar a história
panfletária. Pelo menos no que eu percebia, o Cascão era como uma espécie de
primo pobre, e não um mero detrator dos banhos. O que não impedia seu convívio
com os demais meninos da turma. Também gostava do Penadinho, com suas estórias
do pós-vida, uma maneira didática de se lidar com a imprevisibilidade da morte.
Eram historinhas feitas com um pouco mais de delicadeza, apesar das dolorosas
coelhadas da famosa dentuça.
Ora, se os quadrinhos da Turma da Mônica têm uma qualidade
intrínseca superior aos do Zé Carioca, por qual motivo prefiro este último?
Pela simples razão de que o conterrâneo de Machado e Vinicius é mais divertido,
só isso. No que diz respeito ao humor, ele é melhor, punto e finito. Ele tem o mesmo temperamento transgressivo do
Pica-pau das antigas, que confrontava claramente a lei e as regras sociais
ianques: roubava gasolina, não pagava ingressos, desafiava as autoridades com
rachas e quedas de cascatas, com os policiais sendo apresentados como
autênticos idiotas. Beijava na boca meninos e meninas, sem se insurgir contra
figurinos femininos. Era vingativo, desonesto e péssimo inquilino, uma
autêntica medula de todo o hedonismo, contraindicado para ensinar bons modos às
nossas crianças. Em suma: as histórias das primeiras versões do Pica-pau
mostravam um personagem prenhe da vontade de ser livre, e nisso o Zé Carioca é
o representante tupiniquim, ainda que por outras vias, menos exacerbadas.
Nestes chatos tempos onde a incorreção política é prerrogativa obrigatória do
pensamento dito de direita e a defesa dos direitos sociais só fazem parte da
pauta à esquerda*, o Zé Carioca se coloca como uma contradição: ao mesmo tempo
em que é um reforçador de estereótipos, é também um signo dos caminhos que o
pobre adota para viver minimamente. Também ele é transgressivo e se defende
como pode da miséria. Seus amigos não acompanham sua modorra e quase
compulsividade pelo não-trabalho, e continuam tão pobres quanto ele, vivendo no
morro despossuído da Vila Xurupita. Eles são um belo contramodelo da atual onda
de meritocracia.
Mas esse é só o aspecto mais analítico da coisa, e não quero
me perder em divagações didáticas. Obviamente, com o passar do tempo meu gosto
quadrinístico foi se diversificando. Mafalda, Calvin, Hagar o Horrível, os
belgas Hergé e Leloup (de Timtim e Yoko Tsuno), a descoberta da Gibiteca do
Centro Cultural São Paulo e de leituras adultas de Robert Crumb e Gilbert
Sheldon, além de outros que não vou lembrar agora. Depois, as graphic novels da Marvel e a série
Watchmen da DC Comics foram me dando uma noção mais apurada dos quadrinhos como
categoria artística. Uma miscelânea da capacidade narrativa da Literatura, da
captação do instante da Fotografia e da abstração inventiva da Pintura.
Vejo os quadrinhos como uma espécie de vingança da Pintura
contra a Fotografia. Com efeito, esta última, apesar de não ocupar
obrigatoriamente o espaço da primeira, veio lhe retirar uma função pragmática
importante: a de retratar. Antigamente a pintura (e o desenho, seu consequente
facultativo) era o recurso disponível para espelhar a aparência de pessoas,
objetos e paisagens, e consistia em ofício que demandava grande técnica, o que
a reservava para poucos. O advento da fotografia mudou esse estado de coisas. A
habilidade do artista é transferida para a tecnologia embarcada em equipamentos
cada vez mais modernos, com a capacidade cada vez maior de reproduzir a
realidade circunstante de maneira fidedigna. Para o objetivo aletológico de
reproduzir, não há como comparar os dois resultados finais. Por melhor que seja
a mão de quem delineia, sempre haverá o filtro dos seus olhos. Com as máquinas,
não. A não ser que o objetivo seja artístico, e o fotógrafo interfira no modo
como se fotografa, no filme (ou nos chips de memória) estará uma reprodução
acrítica, sem interferências, e esse é o melhor resultado possível para quem
deseja obter um retrato fiel. Podem observar como a partir da evolução da fotografia
os pintores retrativos passaram a ser tratados como artistas menores, que
impressionam nas feiras, mas que não tem lugar nas galerias**.
Pois bem. Observem que os quadrinhos se valem da estrutura
fotográfica para cumprir sua função. Inclusive, se observarmos um filme físico à
moda antiga, veremos que ele se vale do mesmo sequencialismo que é aplicado à
HQ. Ainda que de forma ficcional, os quadrinhos têm a mesma função da
fotografia – retratar. E aqui com uma impossibilidade para a fotografia, a de
resgatar a abstração pessoal do artista. Cada quadro é uma pequena obra de arte
que não depende de uma existência concreta para acontecer. A banda desenhada
rouba a retratividade da Fotografia e a devolve, de certa forma, à Pintura, por
ter com ela mais elementos em comum: a técnica do traço, os jogos de cores, a
liberdade abstrata.
Os aficionados pela Fotografia hão de pensar: “Quanta merda
junta”. Os dos Quadrinhos: “Onde esse cara enxergou isso aí?”. Os da Pintura:
“Que pobreza comparar pintura com uns desenhinhos”. Paciência, é impossível
agradar todo mundo, e, às vezes, até mesmo a poucos. Mas tive essas impressões
e queria manifestá-las, e não hierarquizar nenhuma das três. A Fotografia não
nasce de um objetivo estético e, no final das contas, dá à Pintura o benefício
de deixar de ser um ofício para virar arte pura, e mesmo ela pode e deve ser
desvinculada do pragmatismo.
Mas ainda há mais um ponto que eu gostaria de desenvolver, e
por isso peço a paciência de todos. Quando consideramos o gênero quadrinhos como
um todo, não estamos falando apenas da banda desenhada, as histórias em tiras.
Há também as charges, que levam esse nome por conta da carga satírica que lhe
caracterizam, e os cartuns, onde há reforço nas caricaturas e muita paródia.
Bem, bem... Nesse sentido, não podemos incluir o grafite nessa festa? Comparado
a estes dois últimos, seus maiores diferenciais estão no grande formato e no
critério subjetivo, mais descolado do real palpável. A mídia é outra, enorme e
exposta, mas traslada inúmeros elementos expressivos das charges e dos cartuns,
como a aproximação ao Expressionismo, o sarcasmo intenso, o universo urbano, a
rapidez na interação com o apreciador, a síntese da mensagem, a menor
importância da palavra escrita comparada com a imagem.
O grafite vai no comboio da arte de rua, que tem como
principal representante a cultura hip-hop,
sendo um dos seus pilares (ao lado do rap,
do break e dos MC’s). Quando observado friamente, percebemos o quanto o grafite é
embebido politicamente e o quanto causa de espanto para uns, de admiração para
outros e de indignação para muitos. Isso acontece porque é uma modalidade que
escancara, em espaço público, verdades que não gostamos de ver. Os muros são o
lugar de fala possível para toda uma geração que tem talento e não tem espaço
expressivo possível.
E é um lugar imenso, impossível de esconder. Lembro quando,
já há muito tempo, eu acompanhava da janela do ônibus 314V (Almeida Jr-Vila
Ema) os estranhos personagens amarelos que começavam a surgir a partir da
entrada do Cambuci. Em um deles, um nordestino mirrado de chapéu típico
desfalece no colo de uma mulher em prantos. Em outro, uma gorda disforme se
adorna para disfarçar sua feiúra. Era o embrião da arte dos irmãos Pandolfo,
conhecidos como OsGemeos, os principais nomes do país. Se levarmos em conta que
a escola paulistana de grafite é uma das mais respeitadas do mundo, teremos uma
dimensão mais exata do que ambos representam, ao lado de outros ícones como
Nina, Nunca, Mari, Vitché, Rodrigo Branco, Kobra, Finok, Zezão e tantos outros.
Esse “enfiar de dedo na cara” da sociedade faz com que seja
frequente vermos grafite e pichação serem jogados na mesma vala comum da
marginalidade. Há dois pontos a serem observados:
1. Vemos governantes que afirmam privilegiar o trabalho dos
grafiteiros. O que deve ser eliminado é o vandalismo das pichações. Porém,
sempre que se lança um programa de eliminação destas últimas (Cidade Limpa,
Cidade Linda), acaba sobrando para os grafites também. A justificativa é sempre
a mesma: os agentes não têm tirocínio necessário para diferenciar ambos. É uma
desculpa tão cambaia que se torna inaceitável. Se os agentes não têm preparo,
que sejam preparados ANTES de mandá-los às ruas, ora pois. E é impossível que um
agente, por mais energúmeno que seja, não tenha nenhuma dúvida em apagar um
painel de quase 700 m2, como na medíocre foto que tirei do carro e
como é mostrado no ótimo documentário Cidade Cinza, indicado abaixo;
2. Até que ponto a pichação não é, também ela, uma
manifestação de quem não tem lugar de fala no espaço público, ainda mais por
não ter o mesmo talento dos grafiteiros? Não será sua coragem irresponsável um
grito para ser ouvido, ao menos? Não sou um cara que gostaria de abrir minha
porta e ver as paredes do meu prédio todas rabiscadas (já são), acho
efetivamente atos de vandalismo a sujeira aprontada especialmente em monumentos
e patrimônio histórico, porque aqui se confunde protesto e significação do
equipamento, e por isso mesmo não estou aqui defendendo os pichadores. Mas
entendo que, embora a maioria deles só esteja atrás de “ibope”, é preciso nos
perguntar porque essa utilização destrutiva do espaço público. Pensem no
seguinte: a primeira pessoa que instalou uma grade na janela ao invés de tentar
entender o porquê de ter sido vítima de roubo ajudou a decretar nosso modus vivendi atual. Trancou-se em si e
não olhou para o seu redor, não buscou as causas da violência, e apenas se
esconder dela. Se o tivesse feito, não teria restringido a própria liberdade de
deitar os cotovelos na janela. Deveria ter lutado pelo direito de manter suas
janelas sem grades, isso sim, denunciando a falta de eficiência das políticas
públicas de segurança e de inclusão da época. É bom não repetir o mesmo erro.
Recomendações:
O livro abaixo é a coleção completa de uma história lançada
originalmente em capítulos, que dá uma boa dimensão do poder dos quadrinhos em
pinçar fragmentos da História e de aplicar emblemas para gravarmos em nossas
cabeças. Trata-se de um ótimo exemplo dos quadrinhos a serviço do público
adulto, contando em uma narrativa recheada de simbolismo como o holocausto
judeu influenciou até mesmo na vida íntima das pessoas que o vivenciaram.
SPIEGELMAN, Art. Maus.
A História de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
O documentário Cidade Cinza está (ainda) disponível no
Netflix, e ganha o jogo ao mostrar, mais do que a indignação dos grafiteiros
que veem seu trabalho perdido e sua reconstrução, o total despreparo de quem é
encarregado da tarefa de distinguir arte e garatuja.
MESQUITA, Marcelo; VALIENGO, Guilherme. Cidade Cinza. Filme.
Brasil, 2013. Cor. 80 min.
* Leiam aqui minha posição sobre essa guerra imbecil.
** Podem me chamar de ignorante ou quadrado o quanto
quiserem, mas discordo veementemente desta posição. Gosto da abstração, mas não
aquela em que a principal característica é ser incompreensível. Sinceramente,
penso que são casos em que o crítico é mais criativo que o próprio artista. Há
muitos anos atrás, fui a uma exposição no Centro Cultural São Paulo chamada
“14/30”, onde uma artista cujo nome esqueci pintou dezessete telas de grande
porte, contendo bolas, bolas pretas de nanquim. Não eram bolas perfeitas,
pareciam aqueles círculos que tentamos desenhar sem compasso. O primeiro quadro
tinha 14 bolas, o segundo tinha 15, o terceiro, 16; e assim sucessivamente, até chegar
ao último, com 30 bolas. A coisa era bem pouco diferente do seguinte:
Não entendi nada, mas tive uma salvaguarda: um folder na
saída da exposição, onde um entendedor esmiuçava o trabalho de cima a baixo,
falando sobre minimalismo, vacuidade, descontinuidade e reelaboração, causando
tensão no apreciador, a artista se posicionando como partícipe da estupefação
de sua audiência e esta sentindo a progressiva ausência que tem o efeito de
catalisá-la à própria obra. Ou seja, o crítico ligou o gerador de lero-lero com
tal magistralidade que, se não conseguiu dar sentido à obra, ao menos executou
ele mesmo a obra-prima da tentativa de tirar um produto impenetrável de seu
hermetismo. A peça estava tão bem feita que resolvi guardá-la, e o fiz tão bem
que não consigo mais encontrá-la. Quando eu trombar com ela por uma destas
pastas da vida, prometo escaneá-la e anexá-la aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário