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terça-feira, 22 de julho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a injustiçada Portuguesa e os símbolos deixados de lado

(É bom se atualizar, mas sem que isso apague nossas origens)

“O senhor afasta muitos homens da velha tripulação para embarcar outros na outra margem: tenha cuidado para que não lhe aconteça perder os velhos sem encontrar os novos”.

Giovanni Guareschi

Olá!

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Quando eu era pequeno, morei por um brevíssimo tempo na vila do Manito, um imigrante português que veio para o Brasil em fuga da pobreza e das peripécias de Salazar, lá pela década de 40, em uma dessas travessas perdidas pela então semi-agrícola Vila Ema. Era um lugar curioso, porque não se tratava de um cortiço, mas de um beco sem saída em forma de “S”, todo feito de casinhas de cômodo e cozinha, iniciando pela venda do Manolo (outro português, ora pois), e terminando em uma pracinha onde ficava a casa maior, do próprio Manito. Uma passagem pela lateral garantia acesso à chácara do seo João, lindeira ao Córrego da Mooca, onde hoje reina o asfalto precário da Anhaia Melo. Bem ao fundo, havia um galpãozinho encimado por um tabique onde nosso herói criava pombos, e tudo isso ficava ao lado de uma fábrica de brinquedos, a Bandeirante. Acho que todo mundo já teve um brinquedinho de plástico dessa fábrica. Era evidente que sua intenção era ter uma vila de casas operárias com aluguel de baixo custo, para abastecer a tal fábrica.

Eu ainda era beeeeem criança, e, desse tempo, não lembro de quase nada. A questão é que minha nonna morava na rua paralela, e da laje de onde ela criava suas codornas e estendia suas roupas dava para ver todo o complexo do Manito, e, mais tarde, lá eu praticava uma rara atividade contemplativa: as revoadas dos pombos do nosso caro senhorio lusitano. Eles ficavam circulando toda a área que ia da fábrica à beira do córrego, por cima das chácaras. Faziam traçados que incluíam curvas suaves e repentinas, subidas e descidas, trocas de lideranças, em uma coreografia que me deixava dúvidas de seus motivos, mas que me encantava pela orquestração, que terminava com o pouso no barracão, todos juntos, como se fosse a esquadrilha da fumaça (sem fumaça). Ali, logo ao lado, um puxadinho permitia à dona Rosa, esposa do Manito, estender suas roupas, e daí ambos provavam suas origens e predileções: os coletes e bombachas do bailarico que participavam e as camisas da Portuguesa, a sua grande paixão.


A Portuguesa era, então, um dos grandes times de São Paulo. Uma mistura folclórica de azares inexplicáveis e má vontade arbitral fazia com que os títulos fossem raros, mas a Lusa estava sempre no topo das tabelas, formando esquadrões respeitáveis e, principalmente, disponibilizando muitos jogadores para o futebol brasileiro. Seus jogos contra os papa-títulos eram considerados clássicos, ou seja, a Portuguesa era um deles, um dos grandes, capaz de fornecer jogadores para a Seleção Brasileira e conquistar títulos mundiais, embora fosse atribuída a ela uma espécie de síndrome de Robin Hood: roubar pontos dos maiores para entregar aos pequenos. São pequenas coisas de um grande futebol, já diria Ary Silva.

Estranhamente, entretanto, as camisas que eu via nos varais do Manito não eram comuns de se ver por aí. Nos botecos que meu pai frequentava não se viam, nem na escola, nem nas ruas em que eu brincava. Nos jogos que meu avô me levava no Canindé, a torcida era sempre pequena, muitas vezes superada pelo adversário que a visitava. No Pacaembu, onde meu pai me levava, ela sumia, restrita a um cantinho do tobogã. E isso foi uma das perguntas que eu me fazia nos meus primórdios futebolísticos: por que ninguém gosta da Portuguesa?

Na verdade, a pergunta pós maturidade mudou um pouco, até mesmo porque eu gosto da Portuguesa, sempre fui bastante frequente em seus jogos, e vi gerações diferentes de ótimos jogadores, como Enéas, Toninho, Edu Marangon e outros, até mesmo em sua fase de derrocada, ocorrida após 2013. E, sim, já escrevi sobre ela. A pergunta passa a ser: por que a torcida lusa é tão pequena?

Eu tenho minhas teorias, muitas delas já pensadas por outras pessoas (poucos títulos, concorrência com times maiores, nicho imigratório), mas a principal delas diz respeito a uma contradição de identidade: ao mesmo tempo em que há um vínculo evidente com uma colônia específica, há também uma perda de tradições que faziam sua magia. Vamos detalhar.

As coisas são únicas não apenas porque se distinguem das demais, mas porque se mantêm assim ao longo do tempo. Mais: embora possa se compreender que a identidade é uma relação que se tem consigo mesmo, ela é rigorosamente necessária para que se estabeleça relações com os outros. Aquele que é único carrega consigo a característica de ser distinguível entre os demais, e oferecer justamente isso em suas relações. Afinal de contas, a maneira com a qual eu me apresento em uma relação já diz sobre mim. Pois bem.

A Portuguesa tem símbolos pesados, como as cores da bandeira portuguesa e seu próprio nome, mas que, volta e meia, pensa-se em mexer neles. Houve algumas vezes em que se pensou em mudar seu nome, ideia cretina na opinião deste pouco humilde escriba. Acabou não acontecendo, mas algo teria que sofrer respingos da tentativa de popularizar a equipe. A Lusa tinha como um de seus principais símbolos a Severa, sua mascote humana, coisa rara neste mundo que adota bichos e mais bichos para esta função. É uma dançarina de vira* com todos os trajes típicos, como o lenço na cabeça, o xale, o avental com o distintivo e as tamancas. Representa, portanto, uma das manifestações culturais mais típicas da comunidade portuguesa e mais distinguíveis dentre tantas etnias que temos em Terra Brasilis. Sempre que você for a uma festa das nações, é dessa forma que a comunidade portuguesa se apresentará, indefectivelmente. Sendo assim, a Severa é indubitável.

Acontece que a Portuguesa resolveu mudar sua mascote, passando a utilizar um prosaico, ordinário, trivial, corriqueiro, consueto, banal, comezinho leão, mais um dentre tantos. Há incontáveis times cuja mascote é um leão: Sport, Vitória, Fortaleza, Jabaquara, Remo, Bragantino, Mirassol, Avaí, Inter de Limeira, Cianorte, Comercial de Ribeirão, Villa Nova, Nacional de Manaus, Peñarol de Manaus, Baraúnas, Jacuipense, Hercílio Luz, Potyguar, Capivariano, Bandeirante, Taquaritinga, Inter de Lages, União Barbarense, entre tantos outros que não tive paciência para pesquisar. Fora os estrangeiros, como o Chelsea, Estudiantes, Bologna, dentre muitos outros. Nada contra os simpáticos leõezinhos, que representam força, reinado e tantos outros atributos associáveis ao futebol, até mesmo porque os motivos para a doação são diferentes para cada um deles, mas é que a Portuguesa trocou um elemento forte de identificação por outro muito menos concatenado às suas origens. A dançarina compartilhava unicamente seus dotes com sua coirmã do litoral, a Cachopa da Briosa, o que fazia todo o sentido do mundo. Com o leão, é um entre outros.

A ideia parece dupla: criar uma mascote popular e puxar o saco homenagear sua principal torcida, a Leões da Fabulosa. Essa organizada tem fama de ser pequena (quando comparada a uma Gaviões da Fiel da vida), mas extremamente engajada e, às vezes, meio brusca nas cobranças. Na verdade, conversando no miúdo, a ideia é tripla. Há também um fator muito mais doloroso, que já debati no texto sobre a coirmã santista. A Severa não é reconhecida por este nome pelas demais torcida, mas como “burra”, fruto do preconceito arraigado e tão conhecido contra os portugueses. Ou seja, o terceiro sentido está em uma ocultação, o que, se for verdade, é um erro desditoso. Mas vamos partir da premissa dupla, para não gerar polêmicas.

Ora (direis), símbolo é símbolo. O que resta de efetivo é o concreto, então é lícito que os símbolos sejam mudados e adequados a uma realidade distinta. Certo, interlocutor imaginário, símbolos mudam como a própria vida, mas a questão é que se mira a cabeça e não se acerta nem o pé se a escolha não for ponderada. Vemos milhares de leõezinhos tatuados em braços e pernas hoje em dia, demonstrando o quanto o símbolo de realeza e força é potente e popular**. Perguntado sobre o assunto, o tatuador que me traça rabiscos disse ser, de longe, a mais pedida de todas as figuras contemporâneas, a quilômetros de distância da segunda colocada. Portanto, leões são símbolos bem acolhidos sob vários aspectos. Mas o mascote não é um mero símbolo, e sim uma representação de uma marca com valor intrínseco, o que traz uma espécie de “promessa” fundamental, de que há algo nela que a distingue das demais. A marca marca, e é um elemento tão forte que, por vezes, é o ativo mais valioso que uma empresa possui. Pergunte à fábrica dos Sucrilhos© se você pode usar o tigre dela para fazer sua publicidade – você terá um sonoro “não” sucedendo uma gostosa gargalhada, ou, no mínimo, um orçamento impagável. Mascotes não são objetos que se trocam, como os bibelôs das estantes, porque carregam significados inapagáveis para quem os adota. A não ser em casos especialíssimos. E este não me parece um deles.

A mascote é um símbolo, e, como tal, traslada um sentido abstrato através de sua materialidade. Em outras palavras, seu valor concreto deixa provisoriamente de ser o que é para adquirir um novo significado. E nós não somos só nosso corpo material, mas também tudo o que nós queremos transmitir aos outros e a nós mesmos. Sentimos orgulho em vestir a camisa de nosso time e incorporar em nós toda a chuva de significados que ela nos traz, e dizer ao mundo que aqueles valores são nossos. Dizemos muito através dos símbolos, como a cruz pendurada no pescoço, o círculo pacifista dos hippies, as camisas pretas dos rockeiros. Tudo isso transmite uma mensagem ao mundo que nos rodeia, dizendo como gostaríamos de ser reconhecidos, e sua escolha, mesmo que feita de modo espontâneo, precisa de uma carga de intencionalidade. Até mesmo uma cruz gamada diz muito sobre o que alguém pensa.

É bem verdade que a Portuguesa vem tentando resgatar a Severa, mas não sei até que ponto pode ser tarde. Já há bastante problemas a resolver, embora a recente adoção do modelo SAF possa ser o sopro esperado para resolver o que parecia insanável. Eu faria fortes campanhas de reparação nesse aspecto simbólico também. Deixem o leão para a torcida, onde ele está em bom lugar.

Sendo assim, embora eu não me considere um conservador, tenho reservas a guinadas que, por um lado não conduzem a nada, por outro abandonam o que tínhamos de mais importante. A um mascote, é atribuído um poder semelhante ao de um talismã, ou seja, a atribuição de se trazer boas energias, de atrair sorte, e isso vai além da mera crendice. É o resumo de um sistema de valores e, sendo assim, não se troca assim como se muda de camisa. Não se muda de camisa de um time.

Mas, pensando aqui, um talismã, se atrai boa sorte, não atrairá seu oposto se abandonado? A se pensar***.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Esse eu tenho autografado. É um livro de rememoração da maior campanha dos tempos recentes da Portuguesa, que chegou à final do campeonato brasileiro de 1996, que levou consigo toda a torcida da cidade. Comprei em uma feira de camisas na estação São Bento, antes da pandemia, diretamente com o autor, colunista do site www.netlusa.com.br. Nem sei se fazem esses eventos ainda.

ZORZI, André Carlos. Para Nós és Sempre o Time Campeão. A Portuguesa de Desportos no Ano de 1996. São Paulo: Edição do Autor, 2017.

* Ao lado do fado, o vira é uma das expressões musicais mais típicas de Portugal. São como duas faces da mesma moeda: enquanto o fado é mais introspectivo, o vira é mais comemorativo, evocando as chegadas das épocas de colheita e abundância.

** E o quanto temos de evangélicos hoje em dia, especialmente com uma certa flexibilização do lastro moral que norteia a vaidade. A figura do Leão de Judá, uma das designações mais populares para Jesus nos meios cristãos, cresceu na mesma medida em que as referências explícitas à religiosidade do contribuinte se tornaram mais importantes. Quem sabe eu não escreva mais sobre isso?

*** Mera brincadeirinha. Não acredito em poderes metafísicos, mas não quis perder a oportunidade.

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