(É bom se atualizar, mas sem que isso apague nossas origens)
“O senhor afasta muitos homens da velha tripulação para embarcar outros na outra margem: tenha cuidado para que não lhe aconteça perder os velhos sem encontrar os novos”.
Giovanni Guareschi
Olá!
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Quando eu era pequeno, morei por um brevíssimo tempo na vila
do Manito, um imigrante português que veio para o Brasil em fuga da pobreza e
das peripécias de Salazar, lá pela década de 40, em uma dessas travessas
perdidas pela então semi-agrícola Vila Ema. Era um lugar curioso, porque não se
tratava de um cortiço, mas de um beco sem saída em forma de “S”, todo feito de
casinhas de cômodo e cozinha, iniciando pela venda do Manolo (outro português,
ora pois), e terminando em uma pracinha onde ficava a casa maior, do próprio
Manito. Uma passagem pela lateral garantia acesso à chácara do seo João,
lindeira ao Córrego da Mooca, onde hoje reina o asfalto precário da Anhaia
Melo. Bem ao fundo, havia um galpãozinho encimado por um tabique onde nosso
herói criava pombos, e tudo isso ficava ao lado de uma fábrica de brinquedos, a
Bandeirante. Acho que todo mundo já teve um brinquedinho de plástico dessa
fábrica. Era evidente que sua intenção era ter uma vila de casas operárias com
aluguel de baixo custo, para abastecer a tal fábrica.
Eu ainda era beeeeem criança, e, desse tempo, não lembro de
quase nada. A questão é que minha nonna morava na rua paralela, e da
laje de onde ela criava suas codornas e estendia suas roupas dava para ver todo
o complexo do Manito, e, mais tarde, lá eu praticava uma rara atividade
contemplativa: as revoadas dos pombos do nosso caro senhorio lusitano. Eles
ficavam circulando toda a área que ia da fábrica à beira do córrego, por cima
das chácaras. Faziam traçados que incluíam curvas suaves e repentinas, subidas
e descidas, trocas de lideranças, em uma coreografia que me deixava dúvidas de
seus motivos, mas que me encantava pela orquestração, que terminava com o pouso
no barracão, todos juntos, como se fosse a esquadrilha da fumaça (sem fumaça).
Ali, logo ao lado, um puxadinho permitia à dona Rosa, esposa do Manito,
estender suas roupas, e daí ambos provavam suas origens e predileções: os
coletes e bombachas do bailarico que participavam e as camisas da Portuguesa, a
sua grande paixão.
Estranhamente, entretanto, as camisas que eu via nos varais
do Manito não eram comuns de se ver por aí. Nos botecos que meu pai frequentava
não se viam, nem na escola, nem nas ruas em que eu brincava. Nos jogos que meu
avô me levava no Canindé, a torcida era sempre pequena, muitas vezes superada
pelo adversário que a visitava. No Pacaembu, onde meu pai me levava, ela sumia,
restrita a um cantinho do tobogã. E isso foi uma das perguntas que eu me fazia
nos meus primórdios futebolísticos: por que ninguém gosta da Portuguesa?
Na verdade, a pergunta pós maturidade mudou um pouco, até
mesmo porque eu gosto da Portuguesa, sempre fui bastante frequente em seus
jogos, e vi gerações diferentes de ótimos jogadores, como Enéas, Toninho, Edu
Marangon e outros, até mesmo em sua fase de derrocada, ocorrida após 2013. E,
sim, já
escrevi sobre ela. A pergunta passa a ser: por que a torcida lusa é tão
pequena?
Eu tenho minhas teorias, muitas delas já pensadas por outras
pessoas (poucos títulos, concorrência com times maiores, nicho imigratório),
mas a principal delas diz respeito a uma contradição de identidade: ao mesmo
tempo em que há um vínculo evidente com uma colônia específica, há também uma
perda de tradições que faziam sua magia. Vamos detalhar.
As coisas são únicas não apenas porque se distinguem das
demais, mas porque se mantêm assim ao longo do tempo. Mais: embora possa se
compreender que a identidade é uma relação que se tem consigo mesmo, ela é
rigorosamente necessária para que se estabeleça relações com os outros. Aquele
que é único carrega consigo a característica de ser distinguível entre os
demais, e oferecer justamente isso em suas relações. Afinal de contas, a
maneira com a qual eu me apresento em uma relação já diz sobre mim. Pois bem.
A Portuguesa tem símbolos pesados, como as cores da bandeira
portuguesa e seu próprio nome, mas que, volta e meia, pensa-se em mexer neles.
Houve algumas vezes em que se pensou em mudar seu nome, ideia cretina na
opinião deste pouco humilde escriba. Acabou não acontecendo, mas algo teria que
sofrer respingos da tentativa de popularizar a equipe. A Lusa tinha como um de
seus principais símbolos a Severa, sua mascote humana, coisa rara neste mundo
que adota bichos e mais bichos para esta função. É uma dançarina de vira* com
todos os trajes típicos, como o lenço na cabeça, o xale, o avental com o
distintivo e as tamancas. Representa, portanto, uma das manifestações culturais
mais típicas da comunidade portuguesa e mais distinguíveis dentre tantas etnias
que temos em Terra Brasilis. Sempre que você for a uma festa das nações, é
dessa forma que a comunidade portuguesa se apresentará, indefectivelmente.
Sendo assim, a Severa é indubitável.
Acontece que a Portuguesa resolveu mudar sua mascote,
passando a utilizar um prosaico, ordinário, trivial, corriqueiro, consueto,
banal, comezinho leão, mais um dentre tantos. Há incontáveis times cuja mascote
é um leão: Sport, Vitória, Fortaleza, Jabaquara,
Remo, Bragantino, Mirassol, Avaí, Inter de Limeira, Cianorte, Comercial de
Ribeirão, Villa Nova, Nacional de Manaus, Peñarol de Manaus, Baraúnas,
Jacuipense, Hercílio Luz, Potyguar, Capivariano, Bandeirante, Taquaritinga,
Inter de Lages, União Barbarense, entre tantos outros que não tive paciência
para pesquisar. Fora os estrangeiros, como o Chelsea, Estudiantes, Bologna,
dentre muitos outros. Nada contra os simpáticos leõezinhos, que representam
força, reinado e tantos outros atributos associáveis ao futebol, até mesmo
porque os motivos para a doação são diferentes para cada um deles, mas é que a
Portuguesa trocou um elemento forte de identificação por outro muito menos
concatenado às suas origens. A dançarina compartilhava unicamente seus dotes
com sua coirmã do litoral, a Cachopa da Briosa,
o que fazia todo o sentido do mundo. Com o leão, é um entre outros.
A ideia parece dupla: criar uma mascote popular e puxar o
saco homenagear sua principal torcida, a Leões da Fabulosa. Essa organizada
tem fama de ser pequena (quando comparada a uma Gaviões da Fiel da vida), mas
extremamente engajada e, às vezes, meio brusca nas cobranças. Na verdade,
conversando no miúdo, a ideia é tripla. Há também um fator muito mais doloroso,
que já debati no texto sobre a coirmã santista. A Severa não é reconhecida por
este nome pelas demais torcida, mas como “burra”, fruto do preconceito
arraigado e tão conhecido contra os portugueses. Ou seja, o terceiro sentido
está em uma ocultação, o que, se for verdade, é um erro desditoso. Mas vamos
partir da premissa dupla, para não gerar polêmicas.
Ora (direis), símbolo é símbolo. O que resta de efetivo é o
concreto, então é lícito que os símbolos sejam mudados e adequados a uma
realidade distinta. Certo, interlocutor imaginário, símbolos mudam como a
própria vida, mas a questão é que se mira a cabeça e não se acerta nem o pé se
a escolha não for ponderada. Vemos milhares de leõezinhos tatuados em braços e
pernas hoje em dia, demonstrando o quanto o símbolo de realeza e força é
potente e popular**. Perguntado sobre o assunto, o tatuador que me traça rabiscos
disse ser, de longe, a mais pedida de todas as figuras contemporâneas, a
quilômetros de distância da segunda colocada. Portanto, leões são símbolos bem
acolhidos sob vários aspectos. Mas o mascote não é um mero símbolo, e sim uma
representação de uma marca com valor intrínseco, o que traz uma espécie de
“promessa” fundamental, de que há algo nela que a distingue das demais. A marca
marca, e é um elemento tão forte que, por vezes, é o ativo mais valioso que uma
empresa possui. Pergunte à fábrica dos Sucrilhos© se você pode usar o tigre
dela para fazer sua publicidade – você terá um sonoro “não” sucedendo uma
gostosa gargalhada, ou, no mínimo, um orçamento impagável. Mascotes não são
objetos que se trocam, como os bibelôs das estantes, porque carregam
significados inapagáveis para quem os adota. A não ser em casos especialíssimos.
E este não me parece um deles.
A mascote é um símbolo, e, como tal, traslada um sentido
abstrato através de sua materialidade. Em outras palavras, seu valor concreto
deixa provisoriamente de ser o que é para adquirir um novo significado. E nós
não somos só nosso corpo material, mas também tudo o que nós queremos
transmitir aos outros e a nós mesmos. Sentimos orgulho em vestir a camisa de
nosso time e incorporar em nós toda a chuva de significados que ela nos traz, e
dizer ao mundo que aqueles valores são nossos. Dizemos muito através dos
símbolos, como a cruz pendurada no pescoço, o círculo pacifista dos hippies, as
camisas pretas dos rockeiros. Tudo isso transmite uma mensagem ao mundo que nos
rodeia, dizendo como gostaríamos de ser reconhecidos, e sua escolha, mesmo que
feita de modo espontâneo, precisa de uma carga de intencionalidade. Até
mesmo uma cruz gamada diz muito sobre o que alguém pensa.
É bem verdade que a Portuguesa vem tentando resgatar a
Severa, mas não sei até que ponto pode ser tarde. Já há bastante problemas a
resolver, embora a recente adoção do modelo SAF possa ser o sopro esperado para
resolver o que parecia insanável. Eu faria fortes campanhas de reparação nesse
aspecto simbólico também. Deixem o leão para a torcida, onde ele está em bom
lugar.
Sendo assim, embora eu não me considere um conservador,
tenho reservas a guinadas que, por um lado não conduzem a nada, por outro
abandonam o que tínhamos de mais importante. A um mascote, é atribuído um poder
semelhante ao de um talismã, ou seja, a atribuição de se trazer boas energias,
de atrair sorte, e isso vai além da mera crendice. É o resumo de um sistema de
valores e, sendo assim, não se troca assim como se muda de camisa. Não se muda
de camisa de um time.
Mas, pensando aqui, um talismã, se atrai boa sorte, não
atrairá seu oposto se abandonado? A se pensar***.
Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Esse eu tenho autografado. É um livro de rememoração da
maior campanha dos tempos recentes da Portuguesa, que chegou à final do
campeonato brasileiro de 1996, que levou consigo toda a torcida da cidade.
Comprei em uma feira de camisas na estação São Bento, antes da pandemia,
diretamente com o autor, colunista do site www.netlusa.com.br.
Nem sei se fazem esses eventos ainda.
ZORZI, André Carlos. Para Nós és Sempre o Time Campeão.
A Portuguesa de Desportos no Ano de 1996. São Paulo: Edição do Autor, 2017.
* Ao lado do fado, o vira é uma das expressões musicais mais
típicas de Portugal. São como duas faces da mesma moeda: enquanto o fado é mais
introspectivo, o vira é mais comemorativo, evocando as chegadas das épocas de
colheita e abundância.
** E o quanto temos de evangélicos hoje em dia,
especialmente com uma certa flexibilização do lastro moral que norteia a
vaidade. A figura do Leão de Judá, uma das designações mais populares para
Jesus nos meios cristãos, cresceu na mesma medida em que as referências
explícitas à religiosidade do contribuinte se tornaram mais importantes. Quem
sabe eu não escreva mais sobre isso?
*** Mera brincadeirinha. Não acredito em poderes
metafísicos, mas não quis perder a oportunidade.
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