“Não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito?”
Ricoeur
Olá!
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Experimentar significa caminhar de um extremo para o outro.
Muitas vezes insistimos em um ponto que visivelmente não funciona, e mal
percebemos que é no outro canto que está a resposta. Plantas apodrecidas pedem
que se coloque menos água. Pressão alta demanda menos sal, e vamos caminhando
da salmoura para o insosso, com todas as escalas no meio da via. Sendo assim,
nossos passos são dialéticos, não porque todas as vezes que eu tenha um
fracasso eu precise ir para o lado de lá mais extremo possível, mas eu aponto
meu nariz para ele. Se sou gastão, preciso ser econômico; se sou guloso,
procuro pela temperança e, se sou doido, procuro pela sanidade, seja lá o que
isso for. É isso o que quero dizer.
Isso é aplicável a café? Sim, sem dúvidas. Toda
experimentação é válida na busca do café perfeito, que sabemos ser impossível,
mas, tal qual deve fazer qualquer ciência, não se deve desistir de tentar a
perfeição. Se eu uso temperaturas baixas, dou uma guinada para sua elevação e
vou modificar essa variável. Se o líquido está fraco, apertamos a moagem. Se há
pouco corpo, vamos partir para mais contato, através de uma infusão. São tantos
e tantos fatores que justificam esse pequeno universo como modelo de pesquisa
científica. Os detalhes, por vezes, fazem a diferença.
Um deles está na aderência do papel ao porta-filtro. Há
escolas que preferem o contato mínimo entre ambos, para melhorar a circulação
de ar no sistema e, consequentemente, acelerar o fluxo, enquanto há outras que
preferem o contrário: aproximar ambos para tornar mais regulares as superfícies
de contato, com o mesmo objetivo. Quem trabalha com os dois lados é a japonesa
Hario, que tem no V60 sua joia da coroa, e que trabalha com a primeira
perspectiva. Para a segunda, há o irmão menos famoso, que compartilha muitas de
suas características, mas oferece uma opção na questão do contato – o Mugen.
Enquanto o V60 tem ranhuras que isolam filtro e
porta-filtro, o Mugen procura canalizar o escoamento para as poucas ranhuras em
forma de estrela de seu interior. A promessa é que essa arquitetura permite que
a água seja passada em um ataque único, sem necessidade de blooming ou
de parcelamento de despejos.
O objetivo é exatamente diminuir o fluxo de água e combinar
características de métodos percolados e infundidos, produzindo bebida com mais
corpo, sem, no entanto, extrair mais amargor.
O suporte excêntrico e a cor cinza escuro dão uma elegância
ímpar ao método, mas sua característica mais inconfundível é o conjunto de
ranhuras interno, que coleta a água dos diferentes pontos e a centraliza para o
escoamento.
Nome do utensílio: Porta-filtro Mugen
Tipo de técnica: percolação
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Média
Dinâmica: Insere-se um filtro no porta-filtro e despeja-se água antes de se colocar o pó, para uma boa adesão do mesmo às paredes do filtro. Fazer o ataque todo de uma só vez, para que o efeito desejado seja produzido.
Resíduos: Baixos
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: Médio
Olho para aquele formato de estrela bonito e lembro de uma tatuagem muito comum, que eu gostaria de ter feito, quem sabe ainda? Eu queria tatuar uma rosa dos ventos, espécie de símbolo consensual dos viajantes, mas, embora eu tenha feito várias séries de textos versando sobre meus rolês, o fato é que eu não posso afirmar que minha vida se pauta nas idas e vindas para lugares variados, por um motivo muito simples: falta de recursos. Conheço um monte de gente que faz maluquices financeiras para ir à Europa, Caribe, Estados Unidos, Japão. Eu, por exemplo, nunca saí do país, e não tenho grandes sainhas disso, já que há muuuuuuuito o que ver em Pindorama. Mas, mesmo aqui, não sou o que se pode chamar de viajante contumaz. Por isso, não percebo muito sentido em eternizar uma imagem no corpo que, apesar de esteticamente bela, não diz muito sobre mim para mim mesmo. Meu baixo e minha bateria sim, evocam meu passado e nelas vislumbro meu futuro, então olho para elas e percebo que tem significado para mim.
Poucas coisas mais poderiam caber na minha pele no sentido
de ter sentido. Alguma coisa sobre café seria óbvio, como fez a patroa, com seu
ramo no antebraço e xícara no braço:
Mas ainda não cheguei a concluir o que eu poderia colocar.
Um dos meus métodos favoritos estilizado é uma hipótese, como uma Chemex
ou Clever.
As ligações iônicas da cafeína são muito manjadas. Talvez sua fórmula química,
não sei. Outra hipótese estaria ligada ao trabalho, mas eu o detesto, então
deixa para lá. Filosofia? Pode ser, ainda não pensei a fundo. Corujas são muito
batidas, então precisaria pensar em alguma coisa, talvez a página de fundo
deste blog… acho que ficaria bom. Então, por enquanto, vou ficando com meus
artigos musicais, minhas pautas, meus trechinhos de canções.
Nossa, esse papo já está parecendo de maluco. Vou centrar as
ideias em uma única pergunta: por que as pessoas se tatuam?
Não é um único fator. Quando você olha as poucas
estatísticas disponíveis, e levando em conta que se trata de pouco confiáveis
levantamentos de internet, percebe-se que os brasileiros são um dos povos mais
tatuados do mundo. Algo em torno de 35% das pessoas possui ao menos uma
tatuagem gravada no corpo, e isso é um negócio realmente empírico, bastando
sair na rua para constatar. A coisa muda radicalmente de acordo com a idade.
Excetuando-se os menores de idade, quanto mais baixa a faixa etária, maior é essa
proporção, invertendo-se a lógica quando os cabelos rareiam e a barba
embranquece. Na minha faixa, provavelmente algo em torno de 10% é o número mais
imaginável. Ou menos.
Mas as regras não são tão estritas. Minhas irmãs, por
exemplo, têm apenas um ano de diferença entre elas, mas a mais nova tem umas
vinte espalhadas pelo corpo, enquanto a mais velha tem uma só. Por isso, tentar
delinear regras não é simples, então pensar nos supostos 77 milhões de
brasileiros rabiscados é um exercício mais fácil do que ficar delineando séries
e classes. De qualquer forma, é um mar de gente, há de se convir. E não há como
deixar de se discorrer sobre o óbvio: é moda. Resta saber se é modinha.
Uma maneira de entender isso é olhando as próprias
tatuagens. Certos desenhos se repetem em determinadas épocas, como os atuais
leões realistas e as mandalas. Houve o momento das estilizações, dos motivos
tribais, das explosões de cores, dos motivos afro. Essa variedade demonstra que
talvez as tatuagens tenham vindo para ficar, como um adorno de pele semelhante
aos brincos, usados há séculos por mulheres e há décadas por homens modernos.
Como temos ao menos trinta anos de crescimento das tatuagens, parece que vieram
para ficar, com as devidas flutuações. Por isso, é moda, no seu sentido mais
permanente de ter sido absorvida pelos costumes. Modinha são os desenhos do
momento, já sendo modificados, para o desespero de quem entrou na onda.
Como é impossível prever o futuro, desloco o foco para uma
questão mais filosófica. O que queremos dizer com uma tatuagem? A quem queremos
dizer? A nós ou aos outros?
Talvez seja uma questão de identidade. Sem cair no âmbito da
insatisfação consigo mesmo, há uma casca exterior que nos é característica e há
uma quota de formatações internas que podem ser facilmente detectáveis, e
outras são mais difíceis de externar, são autenticamente interiores. Por
exemplo, sabemos de imediato que uma pessoa é negra, alta, peso em dia, olhos
grandes só de ter um contato visual. Para saber seu jeitão de ser, precisamos
de algumas horas de conversa, e aí teremos seus graus de eloquência, timidez,
vaidade e così via. Já para puxar algo que lhe seja verdadeiramente
íntimo, talvez jamais saibamos. Ocorre que, por vezes, há uma necessidade
interior de se por isso para fora, mas que não se encontra bom meio para tanto.
Há maneiras de fazer isso: escrever um poema, cantar uma música, fazer uma
tatuagem - eternizações e exteriorizações de interioridades.
O ato da tatuagem inclui uma dose de sofrimento. É caro, é
doloroso e é permanente, a não ser que se queira enfrentar reversões igualmente
caras e dolorosas. Então temos certa porção sacrificial, o que dá uma ideia de
rito de passagem. Isso acaba me lembrando aquele momento da juventude em que
começamos a fumar, uma mostra (tola) de que estamos nos descolando de nossos
pais e tomando decisões próprias, o que caracteriza a formação de uma nova
identidade. Ter uma tatuagem externa isso, demonstra algo de nosso caráter,
primeiro pela coragem de fazê-la, depois por expor um símbolo. Modinhas saem um
pouco desse contexto, mas uma imagem bem pensada conta um pouco de nós aos
outros e, quem sabe, a nós mesmos.
Só que o que nos identifica não é único. Existe uma camada
mais externa e evidente, que está ligada a nossas aparências e características
permanentes, aquilo que sempre temos, independentemente do tempo. Alguns fatos
meus nunca vão mudar, como eu ser brasileiro, ser da espécie humana, e,
portanto, ser bípede implume das unhas chatas, dentre outras coisas que nunca
mudam com o decorrer do tempo. É o que chamamos de mesmidade, ou a identidade
que resiste ao tempo.
Mas não somos sempre os mesmos. Crescemos, envelhecemos,
caminhamos para a morte, e, nisto, muito muda. Aquele velhinho que está subindo
duramente a ladeira com sua bengala já foi um gurizinho que perturbava seus
pais mesmo de madrugada. O que faz com que ambos sejam o mesmo ser?
Mais ainda: mesmo que todas as histórias dos seres humanos
sejam, na média, mais ou menos semelhantes, cada um de nós é único. Cada um de
nós deixa um legado de sua própria história. O que é isso que nos deixa iguais
a nós mesmos dentre o mundo todo e no decorrer do tempo?
Vejam bem. Quando queremos falar a palavra “mesmo” em latim,
podemos usar duas formas. A mais comum é “idem”, de onde retiramos uma palavra
muito significativa do que estamos expondo aqui: identidade, a qualidade
de ser igual a si mesmo, a se tornar único. Mas, como acontece em tantas outras
línguas, também no latim temos um sinônimo: ipse. Ela está em termos como ipsis
litteris ou ipsis verbis, respectivamente para representar
literalidade escrita ou falada. Mas a sinonímia entre idem e ipse não é
absoluta, como acontece com mandioca e aipim. Enquanto o idem é aquilo que é
igual ao longo do tempo, o ipse representa aquilo que é igual em nós APESAR do
tempo. Sabemos que não seremos sempre iguais no físico, nem no psicológico, mas
teremos sempre algo que nos diferenciará no mundo, algo só nosso. A ipseidade
nos particulariza e nos mantém iguais a nós mesmos.
Segundo um dos seus maiores defensores, Paul Ricoeur, a
ipseidade se sintetiza nas narrativas. Um exemplo que eu posso dar está em um
jornal. A mesmidade estaria na notícia – imaginando ser possível que a mesma
seja desenviezada. O relato seria um fato contado como ele foi: onde, quando,
como, porque e para que. Já a ipseidade seria a análise do fato, que já vem
banhada pelo conhecimento e opinião de quem a profere. Notem que uma vem como
uma marca indelével clara, um fato descrito, quase um axioma sobre um
determinado fenômeno. Já o segundo vem carregado de cultura e subjetividade,
mas que também é uma marca pessoal, uma visão de mundo que fica estampada na
história daquele indivíduo. A ipseidade é, em boa parte, isso: as narrativas
surgem da história de cada contribuinte, dos aspectos que lhe construíram e que
não se apagam mais, ainda que mudem com o decorrer do tempo. Ambas, identidade
e ipseidade perduram no tempo, uma no aspecto tangível, outra no aspecto
narrativo. De fato, não somos somente nossos corpos, mas também nossas
histórias. E, com isso, temos que admitir que somos tripartites, sendo formados
por mesmidade, ipseidade e alteridade, sendo que a do meio está aí por ser meio
que “ensanduichada” entre nossa realidade própria e pelo que os outros nos
formatam. Em miúdos: já temos coisas que somos (idem) e somos moldados pelo que
queremos colocar aos outros (alter), e isso constrói o que somos em si mesmos
(ipse). Colocamos isso para fora na forma de narrativas, que não são somente falas,
mas em tudo aquilo que nos expressa. Somos para os outros e para nós mesmos.
Percebam, em vista de tudo isso, como podemos imaginar que,
ainda que inconscientemente, uma tatuagem pode ser interpretada como uma fusão
de identidades. O que é permanente no caráter passa a ser também permanente no
tempo, através da impressão de um simbolismo abstrato representativo de um
conteúdo da consciência. Trazemos para a pele algo que faz parte de nossa
identidade intangível, e a tornamos permanente. Por isso, eu sempre digo que
uma tatuagem não precisa ser evitada, mas bem pensada. Aquele leãozinho da moda
pode perder o sentido se você mudar sua perspectiva religiosa, e a não ser que
você não tenha dificuldades em assumir sua própria história, pode acabar se
tornando um estorvo. Nomes são um eterno perigo, rostos também, a não ser que
haja muita resiliência com o tempo passado.
Pode ser que eu acabe colocando a rosa dos ventos na pele
não somente para expressar uma realidade tangível, mas uma realidade do desejo,
o que vai dar mais substância a ela do que um aspecto meramente estético. O
mundo gira e vamos ver onde vai dar. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Não é leitura fácil, mas é interessante, especialmente pela
abordagem a inúmeros aspetos psicológicos.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas:
Papirus, 1991.