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segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Sobre as estruturas que justificam a estrutura religiosa do pensamento e o Pequeno guia das grandes falácias – 77º tomo: o retorsio argumenti

(Por que a maioria esmagadora da população professa uma fé, ainda que a cada dia que passa ela fique mais difícil de justificar?)

“Mais cedo ou mais tarde a criança adquire consciência de sua inaptidão para lutar. Sem a ajuda de outrem, com as dificuldades da existência. Este sentimento de inferioridade é a força geradora, o ponto de partida dos impulsos combativos das crianças. Será ele que determinará o modo por que a criança adquirirá paz e segurança na vida, será ele que determinará a própria meta de sua existência e preparará o caminho pelo qual essa meta será atingida”.

Adler

Olá!

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Como tenho dito para vocês, minha vida tem sido um eterno trafegar entre São Paulo e Taubaté, pelo miolo daquele bico que se aproxima do Rio de Janeiro conhecido como Vale do Paraíba. Por óbvio, esse nome diz respeito ao acidente geográfico formado pelo Rio Paraíba do Sul, nascido pela junção os rios Paraitinga e Paraibuna, que fazem um insólito percurso que vai rumo à Capital, para fazer uma curva na altura de Guararema e pegar a rota do Rio, onde vai desaguar no mar. Coloquei um mapinha no fim do texto para facilitar a compreensão.

Toda essa região é muito antiga, logo dos tempos da fundação deste inusual país, e, como tal, tem uma carga muito grande de história, embora respeito ao patrimônio histórico não seja exatamente nosso forte. É daqui, por exemplo, que o movimento dos tropeiros nasceu e se consolidou, especialmente após a descoberta de minérios valiosos na região do que hoje é Minas Gerais. E também aqui várias povoações foram nascendo e crescendo, com a preponderância da cultura portuguesa, o que trouxe muitas igrejas para cá, algumas delas ainda hoje de pé.

Para mencionar apenas algumas das mais importantes, temos o santuário da Rosa Mística em Jambeiro, o convento de Frei Galvão em Guaratinguetá, o convento de Santa Clara em Taubaté, a igreja da Santa Cabeça em Silveiras, o mosteiro da Sagrada Face em Roseira, além de muitas e muitas outras, assim como novos espaços da religiosidade, como a Canção Nova em Cachoeira Paulista e o Memorial do Padre Leo em Lorena, além, obviamente, da basílica de Nossa Senhora Aparecida, em um conjunto composto pela bela igreja original e pela gigantesca igreja principal, assustadora em suas dimensões. Isso se deu por conta da velha e bastante conhecida história da padroeira: um grupo de pescadores lança suas redes no Rio Paraíba do Sul e traz o corpo de uma santa, mais especificamente de Nossa Senhora da Conceição, porém sem sua cabeça. Na sequência, lança a rede novamente e, desta vez, vem a cabeça, em perfeito encaixe. Ato contínuo, a pesca escassa de até então passou a ser abundante. Reputado como milagre, o fenômeno fez com que a imagem fosse acomodada em um nicho humilde e, a partir daí, pegando fama crescente, até chegar no atual status: padroeira do Brasil.

Então é muito comum para estes lados vermos as romarias, peregrinações de muitos quilômetros que tem seu nome baseado nas visitas que as pessoas de fé faziam a Roma, sede da Igreja Católica, onde, diz-se, São Pedro teria sido levado a martírio lá pelos idos do primeiro século da era comum. Essas caminhadas, dizem os romeiros, servem para reflexão, oração e penitência, o que dá alimento para a fé. Há caminhos feitos por trilhas partindo de várias partes do país, mas é na Dutra que mais se vê romarias, especialmente por ocasião da data magna da santa, 12 de outubro. Há romarias a pé, de cavalo, de charretes, de bicicletas e, claro, nos ônibus de excursão, fretados pelas igrejas para esta festividade.

Estamos, evidentemente, falando no âmbito católico, a religião que mais participou da formação cultural do brasileiro, embora não se devam desprezar as influências indígenas e africanas, e nem se esquecer da virada evangélica que vem se processando desde a década de 80 do século passado, época em que eu era um jovem guapo e trigueiro. É, portanto, algo que já está bem sedimentado nos nossos conceitos e não causam estranheza, mesmo quando já não se vivencia a fé. Um caminhoneiro percorrendo a Dutra não tem nenhum estranhamento ao ver aquele monte de gente com cajados e terços nas mãos, vestindo camisetas de cor berrante e imagens de suas respectivas paróquias. Pode até ridicularizar a atitude, mas não se admira com ela. Entretanto, esse esquema de sacrifícios por uma divindade que não se vê, que se faz discutível no atendimento dos apelos que se fazem a ela e que por vezes tem a mão pesada contra predisposições naturais de seus fiéis torna admirável tanta fidelidade, e é preciso tentar compreender essas atitudes que, muitas vezes, parecem contraintuitivas.

Um dos pontos a ser observado é: por que acreditamos em uma transcendência? Tem a ver com a falta de clareza com a qual absorvemos o universo, o que ocorre desde que nos entendemos por gente. E isso está no nosso subconsciente ainda nos dias de hoje.

Sabe quando você fica em silêncio no quarto de dormir? À noite, estamos privados da visão, nosso mais apurado sentido, e colocamos na audição a tarefa de decifrar o mundo, o que já torna a coleta de dados mais imprecisa. Há uma série de ruídos que são fáceis de decifrar, como os murmúrios do vento, o ruído da chuva, um gato no telhado. Mas nem sempre é possível traduzir com exatidão o que se passa lá fora. Não é preciso que haja nada de especial, mas é a ciência de que há um universo girando para além da nossa cognição.

Os processos que nos fazem entender que há um “lá fora” com relação ao universo sensível são semelhantes ao quarto noturno. Aguçamos nossos sentidos para compreender de onde vem os fenômenos observáveis e a sensação de que tudo se move regido por uma forma de inteligência fica tão patente que se torna difícil aceitar mecanismos outros.

Isso se desenvolve por milênios. E serve como uma luva não somente para deduzir fenômenos naturais, mas para também para responder a perguntas cabais no psicológico humano: o que há no post mortem? Como se desenvolve a vida para além desta realidade vivida? Teremos uma vida “lá fora”? No que ela seria diferente da vida real?

Percebem como esse pensamento de fundo pauta toda e qualquer religião? A denúncia é feita pela própria origem da palavra: religar a humanidade colocada no mundo sensível às origens dadas por suas supostas divindades, como um filho que volta à casa de seu pai depois de ter passado anos distante. Sendo um destino comum a todos, o mundo fica irmanado, tanto na sua consciência de fim, quanto na sua perspectiva de realidade exterior. O que muda são as formas, mas a lógica é sempre a mesma. Ou seja, não é algo de indivíduos, mas da espécie como um todo. Ou seja de novo, a consciência humana é moldada para crer em deuses.

Tudo isso chega a ser bonito. É um resumo da busca humana por explicar a si mesma e de reconhecer sua pequenez. Isso não teria nada demais se não representasse, na imensa maioria das vezes, um argumento para dar balizas morais a priori, e, mais profundamente, a fazer o exercício do poder.

Como é incerta a presença de algo “lá fora”, mas os sinais são muito bons nesse sentido, é de se supor que haja ali uma vontade, já que faz pouco sentido achar que o universo gire a troco de nada. Essa vontade não é expressa em palavras, a não ser para meia dúzia de iniciados, que, em tese, portam esse interesse da divindade sem que seja necessário provar nada. É suficiente que eles existam, suas palavras têm uma espécie de fé pública para a grande comunidade privada de contato direto. Os próprios ministros tendem, conscientemente ou não, a imputar seus próprios valores à divindade, que ficaria satisfeita com todos aqueles que cumprissem à risca seus supostos ditames. E nós nos entregamos às interpretações dos iniciados porque eles parecem trazer respostas para nossas questões, que são sempre muitas.

O substrato de fundo se apoia em dois quesitos: a curiosidade e o instinto de preservação. Só que, parando para pensar, percebemos que ambas se imiscuem. A curiosidade não é só uma distração de desocupados que buscam saber das novidades acerca da filha dos outros, mas uma ferramenta que permite agregar informações sobre fenômenos que podem ser perigosos. Desta forma, sobrevive mais quem é curioso, ao contrário do que preconiza o ditado do gato.

Então, sim, poderíamos pensar em uma vantagem evolutiva em se crer em uma divindade, como, de resto, é vantajosa qualquer associação entre indivíduos que, no final das contas, são muito mais fracos desunidos. Ao contrário de um tubarão, que não tem grandes benefícios de agir em consórcio, um pobre humaninho sozinho é presa fácil das feras e das circunstâncias. E a religião é, sabemos, um dos principais ferramentais dos sentimentos de pertença e de gregarismo.

Só que o fenômeno é bastante complexo, especialmente quando observado pelo campo do psíquico, e podemos tentar algumas conclusões pela observação das estruturas comuns dos pensamentos.

Sabemos que as religiões, algumas mais declaradamente, outras de modo mais tácito, funcionam com uma lógica de submissão. Embora não seja algo assumido, o fato é que deuses não são parceiros, mas superiores hierárquicos. São chamados de pai, senhor, rei e outros termos que denotam uma linha de subordinação, sempre com eles acima, como é de se supor. Essa é a regra (das exceções, não vou tratar agora).

Mas onde nasce essa ideia de estar abaixo, de ser inferior? De acordo com o psicanalista Alfred Adler, austríaco que travou uma vertente da psicanálise de Freud, muito do nosso atitudinal vem da maneira como é constituída nossa infância.

Comecemos com uma experiência pessoal. Quando eu era criança pequena, tinha uma tia-avó que era caseira em uma chácara na região de Campo Limpo Paulista. Era daquelas propriedades de lazer, e não de trabalho, exceção feita à hortinha da própria tia Nica. Era uma terrinha toda bem equipada, com todas essas coisas do estilo recanto do guerreiro: churrasqueira, campinho de futebol e, claro, uma piscina. Não era, naturalmente, para o nosso bico, e sim dos donos, então a atração era o pão caseiro da tia. Mas restava a observação, e, na minha cabeça pueril, a piscina era enorme, tipo aquelas olímpicas, que comportaria facilmente alguma competição local.

Anos depois, já com a tia Nica e o tio Antônio devidamente encaminhados ao seu destino final, fui levar meu convite de casamento ao primo Gilberto, que lá ficou remanescente. Como era comum que este último viesse nos visitar, deixamos de ir à chácara, e, nisso, estou falando de mais de vinte anos. No caminho, fui falando das recordações com a futura patroa, e de como tinha lá uma piscina enorme. O fato é que, embora fosse de fato uma boa piscina, dos tempos em que eram feitas de alvenaria, não tinha nada mais que uma dessas modernas, feitas de fibra. Cheguei ao ponto de perguntar se os donos tinham mudado o equipamento, ao que o primo garantiu que não. Era uma imagem reservada tão distorcidamente na memória que era capaz de me fazer criar realidades alternativas.

Isso não significa que eu sou louco, mas que era criança e, portanto, via tudo maior do que vejo hoje, até mesmo por uma questão de tamanho. Se hoje eu entrasse naquela piscina, ficaria com a cabeça para fora estando de pé. Com meus cinco anos, morreria afogado inapelavelmente, o que nos leva a concluir pelo óbvio - tamanho faz diferença.

Nas nossas raízes mais profundas, observamos que nascemos biologicamente prematuros. Enquanto uma girafa pare filhos que já nascem andando, ou um pintinho já sai do ovo pronto para uma alimentação muito próxima à que terá por toda a vida, nós chegamos à luz em um grau de dependência absoluta, sendo absolutamente impensável nossa sobrevivência sem os cuidados de terceiros. As coisas são assim por motivos evolutivos que não cabem discutir neste momento, mas o fato é que nós nascemos sob um signo de dependência e desabrigo, caracterizados pela fragilidade extrema: incapacidade de articulação física, fraqueza e pequenez.

Mesmo após o crescimento e ganho de autonomia, o percurso que um ser humano traça para chegar ao seu formato final é longo. Um cão já é adulto ao completar um ano de vida, enquanto nós levamos pelo menos quinze para atingir o mesmo que isso. E, vamos e venhamos, e mesmo reconhecendo que os processos mentais de um cachorro são altamente complexos, são muito diferentes do que ocorre com humanos. Grosso modo, um cachorro está suficientemente desenvolvido quando aprende o básico da sobrevivência, e mais alguns truques para obter benesses, como as habituais caras de fofura. Já nós somos praticamente escravos da nossa psiquê, enfrentando conteúdos abstratos por toda a vida. A questão é que passamos muito tempo da nossa vida reconhecendo-nos menores que nossos pais, nossos irmãos mais velhos, nossos parentes, nossos vizinhos. Ainda que já muito capazes, continuamos sendo crianças. Menores e, de certa forma, inferiores.

Isso não é um problema em si. É um processo natural de transição, que vai paulatinamente diminuindo à medida que crescemos e ganhamos novas capacidades e habilidades. Embora seja inconsciente, também a nova realidade vai moldando a psiquê, de modo a nós percebermos já mais pareados com o mundo adulto.

Mas, como eu disse, o processo é inconsciente, e, como tal, arraigado. Uma parte desse complexo de inferioridade permanecerá até nas mentes mais saudáveis, e quando eu me torno um adulto como os outros, minhas estruturas mentais buscam por quem está acima agora. Permanece um rabicho na minha personalidade traçada ainda criança, e a busca pela substituição dos pais e adultos como um todo se dá na projeção futura: na prateleira vazia do degrau de cima do complexo de inferioridade, surge um deus. Juntamos a insistência psíquica da inferioridade com a sensação da existência do “lá fora” e chancelamos que é inevitável que há um regente de nossos destinos.

Não se trata aqui do complexo de inferioridade descrito por Adler como uma neurose, e falarei sobre ele com mais cuidado bem brevemente, para não perder o fio do tema, mas de reconhecer como é difícil modificar algo que estruturalmente é pouco maleável. Notem como temos dificuldades de modificar opiniões, de superar (ou mesmo reconhecer) vieses, de sepultar superstições, mesmo utilizando as melhores ferramentas da lógica. Nossa cabeça é construída para trabalhar de forma hierárquica, e isso facilita estruturas de dominação, como nas empresas, nos governos, nas igrejas.

Alguns religiosos dirão que tudo isso é sandice, enquanto outros dirão que isso é até mesmo prova inequívoca da existência de deus. Afirmam que, se há uma estrutura voltada para a busca por uma divindade, é porque se trata de uma necessidade humana, e, sendo necessário, não poderia ser diferente do que é. Sendo assim, a estrutura religiosa do pensamento existe para que os homens tenham capacidade de reconhecer deus.

Ora, na minha miserável opinião, o argumento é falacioso, mais especificamente um retorsio argumenti, a falácia que busca transformar um argumento contrário em um favorável. A ideia básica é reconhecer a validade de um argumento, mas modificar seu sentido, para que seja mais oneroso à tese original fazer um desmentido.

O que temos no caso? Que a substituição das instâncias superiores na relação de inferioridade está correta, porque ela deve persistir pelo reconhecimento da majestade do deus. Nossa inferioridade existe, o que, por não desmentir o argumento, também não o invalida. Mas há problemas.

A substituição precisa ser feita? A ideia de subordinação típica das relações com o divino é facilmente plasmada para outras relações, como eu já disse: nos patrões, nos militares, nos governantes, nos legisladores e mesmo em coisas mais dolorosas, como nas raças, nos sexos e nas capacidades. Nossa continuidade nos pontos de inferioridade não pode ser uma justificativa para colocar alguém no lugar dos pais quando chegamos à maturidade. Essa é a razão pela qual a assunção desta relação é problemática: nós podemos sair do complexo. Ora (direis), socialmente é necessário que existam hierarquias. Faz sentido quando pensamos que há juízes que precisam julgar, presidentes que precisam governar e così via, mas percebam a sutileza de que estamos falando de papéis institucionais, e não de pessoas. O que vai além disso, é abuso de poder.

Não fiquem bravos comigo, amigos religiosos. É meu ponto de vista, refutável, modificável e, principalmente, não proíbe nossa amizade e respeito mútuo. Bons ventos para todos!

Recomendação de leitura:

Este é um livro mais geral, sempre no espírito de que não há controvérsia na psicanálise como filosofia. Já discuti a questão neste texto.

ADLER, Alfred. A Ciência da Natureza Humana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.

Aqui, o mapa do trajeto do Rio Paraíba do Sul:





quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

O café filosófico do quotidiano – de tanto ver, ficamos cegos

(Sim, a torrente de imagens nos anestesia. Mas não podemos deixar dessa forma)

“A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfrangalha, eviscera. A guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta”.

...

“O problema não é que as pessoas lembrem por meio de fotos, mas que só se lembrem das fotos”.

Sontag

Olá!

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O café é um hábito coletivo. Chego a esta conclusão influenciado pela vida em uma família grande, cujo único consenso culinário real residia no líquido negro e espesso. Nunca vi a sorvedura como algo para se fazer sozinho, mesmo que essa companhia venha em sucessões: um faz, outros tomam, juntos ou cada um à sua vez, partilhando um mesmo produto e um mesmo ato. Mas o mundo gira, a lusitana roda e hoje, por muitas vezes, se eu não fizer um cafezinho para mim mesmo, eu e só eu, acabo não tomando uma dose daquelas de final de tarde, para ajudar a se manter de pé. É bem verdade que pelo menos a esposa costuma me acompanhar, mas há dias em que estou junto do meu silêncio, e convém uma dose única.

Com o mesmo espírito de pobreza de outrora, dá um pouco de dó gastar toda uma parafernália para extrair uma mísera xícara. Para tal mister, há os métodos que nos permitem esse efeito sem que precisemos lançar mão de tanta coisa. Comprei um baratíssimo e prático porta-filtro Kalita Tall, cujo fundamento é exatamente ser útil para um contribuinte individual.

O método é extremamente simples. Com um aspecto de uma barquinha, seu fundo possui três furos, para manter a engenharia típica da Kalita de acelerar o escoamento e não reter água. Além disso, possui um conjunto de ranhuras paralelas para favorecer o fluxo reto e rápido.

Nesse sentido, parece um Melittão clássico que teve seu fundo cerrado, o que o faz ficar mais prático de levar para lá e para cá. É possível encaixar o fundo de um filtro trapezoidal nº 01 e depositar uma quantidade pequena de pó, uma medida prática de fazer um cafezinho rápido.



Nome do utensílio: Kalita Tall

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média/fina

Dinâmica: Da mesma forma que outros métodos de percolação, inserir um filtro trapezoidal na cavidade e escaldar com água fervente. Depositar o pó e atacar com quantidades pequenas de água, haja vista o pouco espaço disponível.  

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média/alta

Nível de ritual: Médio

Enquanto estreio o pequeno método, vou ouvindo as notícias através do rádio do vizinho, bastante alto para os padrões deste prédio. Lá eu escuto os comentários de guerra, especialmente dos ataques israelenses na Faixa de Gaza, uma história cíclica e incessante, que alterna momentos de pau comendo e silêncio tenso, nunca de paz legítima. Esse lugar virou um sinônimo tão consistente de violência que até mesmo o calçadão que vai do metrô Sé até o asfalto da Silveira Martins ganhou esse apelido aqui em casa, vindo das trapalhadas do poder público que, vez por outra, faz o trecho virar uma sucursal da Cracolândia. Faixa de Gaza é, portanto, sinônimo de perigo. Mas eu não tenho vontade de ouvir sobre isso logo cedo, e vou acionar meu celular para ouvir sobre futebol ou fofocas. A ironia vem na forma de vídeos que abordam a ausência da Rússia na Copa do Mundo por conta da guerra contra a Ucrânia.

Bate em mim uma certa culpa. Às vezes eu me pergunto se não sou muito chapa branca, ou menos engajado do que deveria ser, mesmo neste humilde espaço. E às vezes eu me pergunto se eu não sou exatamente aquilo que eu temia: insensível diante do mundo. Vou explicar isso tudo melhor, com calma.

Não se trata de não me importar com os acontecimentos caóticos. Tenho posições bastante claras para mim mesmo e sou, por definição, antiguerra. Acho que, especialmente na questão de Gaza, todos os limites foram ultrapassados e não há como não encarar a ação israelense como um apartheid seguido de um genocídio, com a concupiscência geral do Primeiro Mundo, mesmo que haja justificativas históricas e razões para sua própria defesa. Mas há dois pontos. O primeiro é que há um natural cansaço em se saber que se alinha ao gabinete Netanyahu a maior potência política e bélica do planetinha azul, e isso já faz com que não tenhamos muito rumo além das lamentações habituais e os votos de desagravo, as moções de repúdio, os stories, os posts comovidos. Todos tão tocantes quanto inúteis. E o segundo é que vamos ficando cada vez mais anestesiados com o ambiente de violência que permeia o mundo, começando pela rua de casa, terminando pelo pálido ponto azul rumo ao calcinamento. Todos os dias encaro a praça repleta de mendigos e nem passa pela minha cabeça os dramas de cada um deles, o que faz eles estarem lá, qual a história de cada uma de suas feridas, que são muitas. Mesmo que sejam de boa paz, a vida nas ruas é feita de violência, e tendemos a não nos incomodar, a não ser quando roubam o celular de um dos nossos. Aí, sim, eles surgem. De tanto ver, fiquei cego.

O mesmo acontece quando pensamos na questão internacional. Nos anos oitenta, quando a globalização dava suas caras com toda sua força, uma reunião de artistas musicais deu origem ao projeto USA for Africa, que gerou o megasucesso “We are the World”, que até hoje aparece por aí. Buscava chamar atenção para a fome na África, o que é louvável, mas com a velha lógica de mandar recursos sem mandar soluções, o que é costumeiro em quem quer reduzir sua própria culpa. Dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar. Só que não adianta ensinar a pescar se não se dá acesso ao rio. Aí, é divisão de lucros, e isso já não é legal.

Daí, que tanto a fome na África persiste, quanto não se dá horizontes. A questão ali é a guerra permanente, causada, em especial, pelas divisões arbitrárias da época da colonização. É possível mediar os conflitos e inserir esses países no mercado mundial. Isso seria resolver o problema. Como fazer isso? Não sei, mas há meios, se houver vontade. Só que, fundamentalmente, mostrar criancinhas negras esquecidas passa a dar um ar apelativo, meio brega até. Você já sentiu isso? Então está comprovada a sua dessensibilização.

É uma sensação estranha, porque eu constato que não sou imune à sensibilidade. Na rua em que habito, o trânsito amalucado traz consequências. Um leve esbarrão de um carro em outro gerou um entrevero entre dois motoristas que terminou com um extintor rachando a cabeça de um, enquanto o outro foi se ver com a polícia, detido pelos transeuntes. Era exatamente o momento em que o pobre golpeado ia sendo recolhido à ambulância que eu cheguei para almoçar, e a cena sanguinolenta me causou choque, ainda mais quando o bissexto zelador do prédio me descreveu a futilidade do ocorrido. O fato ficou passeando alguns dias pela minha cabeça, prova do tanto que fiquei impressionado.

Se eu me incomodo com dois brutalhões resolvendo seus entreveros na porrada, por que fico com cara de horizonte perdido quando se fala da guerra? Pego refletindo sobre o caso, pergunto por que não somos mais incisivos com relação à guerra, à fome, à miséria. E vou buscar minhas referências quanto sinto que estou perdido no caos. Sabe quando você está com aquela roda de amigos e o debate esquenta? Sabe quando se busca a opinião daquele mais quieto, que não se mistura no debate para não se tornar, também ele, improdutivo? É assim que vou parar em Susan Sontag, uma das vozes da lucidez.

Ela tem uma paixão, a fotografia, e tem senso crítico aguçado. Faz meditações sobre a importância das fotografias na maneira como as pessoas reagem diante do horror da guerra, e conclui que não basta que se apresentem os artefatos, mas que há todo um ambiente que lhe apresenta, de modo a lhe mudar completamente seu sentido.

Pense em uma pedra. Jogada na rua, é o resíduo de uma construção, um estorvo de tropeço. Colocada em um pedestal, é o fundamento da mesma construção, algo sacralizado até. Uma imagem não é nada sem a narrativa que se faz em torno dela. Uma foto de guerra pode tanto mortificar quem a observa, quanto exaltar um herói que derrota o suposto inimigo. Pode tanto causar a revolta, quando colocar a culpa na vítima que está lá, estendida no chão com os miolos espalhados. A fotografia depende da folha onde está colada.

Talvez ela tenha razão. O grande problema está no apelo que se dá às imagens, e não nas imagens em si. Elas falam por si mesmas, mas sua língua pode ser desvirtuada por sua moldura. Na maioria das vezes, fiamo-nos mais naquilo que se descreve sobre a imagem do que nela mesma, e acabamos, com isso, desviando o olhar dela. Há toda uma carga ideológica que conduz a isso, como a destruição apresentada como uma necessidade da vitória, os lados positivos da guerra. A dor e a morte são exibidos de acordo com a conveniência de quem tem os meios, e isso balanceia onde se age e onde se omite. Sontag exemplifica com aquela que é tida como a maior catástrofe da contemporaneidade: os atentados do famoso 11 de setembro. São 3000 admitidos corpos que ficaram completamente ocultos aos olhos das câmeras. Nem unzinho corpo do atentado foi exibido por um curioso de plantão. Sabendo ser isso impossível em um momento em que já existiam celulares com câmeras em profusão, só um tácito acordo possibilita esse completo sumiço. Como não somos burros, percebemos o truque e passamos a olhar para as imagens apresentadas com os filtros de quem o faz. E isso mata os nossos nervos, porque passamos a colocar o horror entre parênteses.

Há maneiras de compreender esses mecanismos. Em um pequenino trecho do seu livro, lê-se sobre a introdução de imagens de cânceres e enfisemas nas embalagens de cigarros no Canadá. Lembro que isso também foi feito no Brasil e fico confuso. Ao lado da inequívoca redução no consumo, veio aquilo que fazíamos ao tempo dos lançamentos. Dizíamos: “você já encheu o seu álbum? Porque vieram figurinhas novas”. O tom jocoso já entrevia a colocação de lado do efeito choque. Mas o fato é que tivemos expressiva diminuição no consumo, o que pode ser mais bem explicado pela proibição do uso em locais fechados. Mas o uso das imagens pode explicar o desencorajamento de novos fumantes, ao que me parece, que não tem permanentemente as imagens chocantes dentro dos seus bolsos, e talvez não se anestesiem como ocorre com os inveterados, gozadores de seus próprios riscos.

Talvez a imagética trazida pelas redes sociais deem a dupla noção de que eventos como a Guerra da Ucrânia ou os ataques a Gaza são causas justas e que acontecem longe de nós. Ambas são ilusórias, porque a cada imigrante que vemos em nosso país, e não são poucos, podemos colher o entendimento de que um sofrimento pela saída da terra é igual pela injustiça com os seres humanos, e, não importando se vemos nigerianos, haitianos ou sírios, eles estão aqui pelos mesmos motivos das guerras nos Bálcãs ou no Oriente Médio. Então TEMOS proximidade com as imagens que vemos e achamos longínquas, na forma de drama humanitário.

Mas aí temos o efeito. As ideias que nos vendem tem a cara e o selo da hegemonia. Intervenções em Gaza sempre carregam o fundo de combate ao terrorismo, o que é justo e reconhecemos isso como tal. Mas as motivações para a violência não vêm a claro, e dá impressão de que a dor é necessária, a violência é inevitável, justamente pela culpa de quem a sofre. Como as imagens que voam pelos canais de comunicação tem uma espécie de chancela do lado vencedor, tendemos a interiorizar que aquela imagem que nos mostram é a imagem autorizada, a imagem que permitem que vejamos. Quando isso acontece, é muito difícil manter um interesse autêntico, e os consequentes sentimentos de pena ou repulsa que deveríamos ter. A dor dos outros fica por detrás dessa capa midiática, e isso nos torna apáticos. Mas elas continuam a existir, a dor e a morte.

Quando eu volto a mim, já tomei todo o café e mal percebi o produto do método, o que me obriga a repetir a operação. Talvez se fosse extraída uma zurrapa inabsorvível eu tivesse reparado, mas eu já estou tão acostumado com café que é possível nem perceber o que passa pela garganta, mesmo que estiver me envenenando. É mais uma mostra de que nossos sentidos conseguem ser desviados de tal forma a registrar outro tipo de realidade. Bons ventos a todos! 

Recomendação de leitura:

Obra de tiro curto, com um modelo de ensaio, e desafiador como só a autora consegue ser.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2025.



terça-feira, 9 de dezembro de 2025

O café filosófico do quotidiano – a lembrança dos velhos professores e a escala do conhecimento rumo ao amor

(Como podemos chegar ao significado do amor em si mesmo?)

“Ou não consideras que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando?”

Diotima de Mantineia

Olá!

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Sempre que se rememora o passado, costumamos fazer romantizações. Isso acontece por causa daquele velho filtro que nos faz trazer de volta preferencialmente as memórias boas, deixando de lado aquilo que nos incomoda. Eu, por exemplo, lembro com carinho dos dias de ver o sol nascendo por trás do morro da Rua Solidônio, que fazia as casinhas resplandecer seus telhados romanos e suas antenas de tevê, mas esqueço completamente do frio e do ódio que dava acordar às 06:00 para ir à escola, ou da correria de sair atrasado, ou do estresse de chegar à escola com uma tarefa atrasada. Tudo isso é meio sublimado, por mecanismos psíquicos que não cabem discutir aqui (mas que poderemos fazer em outro momento).

O mesmo se aplica, fartamente, ao café. Se você perguntar por aí, 99% das pessoas dirão, com voz embargada e lágrimas penduradas nos olhos, que a vozinha fazia o café em coadores de pano do tamanho de ceroulas, escoando o produto para dentro de bules de ágata já desgastados, e que ficavam fumegando e espalhando o aroma pela casa inteira. Isso pode ser verdade, mas fica escondido na gaveta da memória o fato do quão pouco prático era o método, e o quanto as boas velhinhas apreciariam se pudessem automatizar um mínimo esse processo todo.

Não deu tempo de aplicar à vecchia nonna mia, mas tanto minha mãe, quanto minha madrinha achavam essa história uma inútil caceteação, que incluía lavar sacos de pano cada vez mais fedidos, ocupar a boca do fogão com um bule pesado e quente, e ficar escoando aos poucos a água pelo pó enquanto os folgados homens da casa enchiam a cozinha com a fumaça de seus cigarros, muito menos poética que os vapores do café. E não ficaram nada tristes quando puderam ter uma bela cafeteira elétrica, equipada com filtros descartáveis e quantidade automática de água, caindo em um bule refratário de fácil asseio.

Apreciadores de café especial costumam olhar para esses aparelhos com desdém, dada a retirada de cuidados que só são possíveis com supervisão manual. Já expliquei um monte de vezes não se tratar de chatice ou pernosticismo puro e simples, mas de busca por um resultado final melhor. Eu não tenho cafeteira elétrica, por uma questão estética, mas o senhor meu sogro tem, e, nos dias em que vou na casa dele, é o método que tenho à disposição. Melhor com ele do que sem, vamos passar um cafezinho através da modernidade.

A cafeteira elétrica virou um daqueles eletrodomésticos obrigatórios, que constam na lista de qualquer casamento, em razão da facilidade no preparo. Não costuma combinar bem com cafés especiais, tendo em vista que seu funcionamento é todo automatizado: colocou o pó, colocou a água, colocou o bule e colocou o dedo no botão, o processo se inicia e presto. Aí as sutilezas dos bons grãos acabam indo para o vinagre.

Entretanto, há as suas vantagens, como já mencionei lá em cima. A facilidade de operação, a compactação do conjunto, a obtenção rápida do produto e o permanente aquecimento sempre podem ser alegados pelos consumidores que só querem ter um cafezinho à mão, ou, como meus falecidos parentes, precisam de litros prontos muitas vezes por dia.


Nome do utensílio: Cafeteira elétrica

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média/fina

Dinâmica: Alimenta-se o depósito de água com a quantidade total indicada para o volume desejado. Insere-se o pó em um filtro de papel do modelo da máquina utilizada (há modelos com filtro de nylon). Deita-se o bule sob o escoadouro e liga-se o aparelho. Como em geral há um prato de aquecimento, mantem-se o utensílio ligado até o consumo total do líquido. 

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média/alta

Nível de ritual: Baixo

Cheguei a pegar a cafeteira da falecida dona Magdalena, mas ela ficou encostada e ocupando espaço. Então mandei o aparelho para uma igreja perto de casa, onde terá melhor proveito. E ela foi para o fundo do quintal do esquecimento.

Em alguma dessas vezes que esperava escoar o café do sogrão, ouvi a mãe da patroa lhe falando sobre a morte de uma das professoras que davam aula na escola de sua infância. O tom de lamentação me tirou do fluxo de atenção para me colocar no meu habitual “plethoverso”, e me pus a recordar de muitos dos meus professores, como quem recordava dos cafés escoados no pano: Amélia, a primeira, e que depois veio a ser minha vizinha. As do primário: Néli, Yolanda, Marina, Neusa. Alguns do ginasial: Rosalina, Luiza, Osvaldo, Vera Lúcia, Catarina favorita da galera por suas calças justas, a hippie Marina, Messias que jogava um truquinho com a gente. No colegial - Nadeo, Irineu, Lalau, Nelson, Teka… Na faculdade, o vecchio Grecco, o ex-padre Jairo, o gigante Ricardo, o sofisticado Fábio… E forcei a cabeça, lembrando de mais ninguém. Que coisa.

Se você fizer o mesmo exercício, provavelmente o mesmo te acontecerá, ocasional leitor, bissexta leitora. A não ser que você que me lê esteja em pleno exercício acadêmico, a memória vai se esvaindo e somente os mais significativos vão ficando, pelos melhores ou piores motivos. O velho Messias, por exemplo, ao invés de nos mandar para a diretoria pelo truco em hora de aula, sentava-se para soltar seus discretíssimos gritos de ladrão. Já a Heidi de Cobol me botou suspensão porque escrevi um palavrão no código fonte do teste de login, um exagero que me custou três provas (e o óbvio custo da segunda chamada). E quanto aos demais, necas.

Normalmente fazemos grandes dedicatórias aos professores quando nos formamos, dentre lágrimas e músicas do Milton Nascimento, porque sabemos do esforço que os mestres nos tributaram, mas, como disse, isso passa rápido. Porém, mesmo com o esquecimento, o conhecimento fica lá, ainda que na forma de discreto tijolinho na construção total.

O fenômeno do conhecimento não fica adstrito aos reles mortais, como nós. Também os grandes mestres tiveram os seus professores, porque o completo autodidatismo é muito raro. Claro que uma educação formal ampla é algo relativamente recente, e esse modelo de educação era bem distinto no passado, atingindo pouca gente e mais reservado a pequenos grupos, quando não a uma única pessoa, o tal do preceptor. Alguns chegaram a ficar famosos, como Aristóteles em relação a Alexandre Magno, ou Lêucipo com o fedelho Demócrito, mas a verdade é que a grande maioria teve seu nome perdido no tempo.

Isso pode provocar algumas injustiças, porque várias das intervenções desses professores têm influência significativa na formação do pensamento de grandes mestres, e hoje quero exemplificar com um caso célebre, mas que não resultou em relevo para seu emissor. Será que é porque se trata de uma mulher na antiguidade clássica? Talvez. Vamos falar de Diotima de Mantineia, professora de ninguém menos que Sócrates.

Essa sacerdotisa e pensadora aparece no Banquete (Simposium) de Platão, pela boca do próprio Sócrates, que se coloca no papel passivo de investigado que ele mesmo costuma aplicar no seu método maiêutico. Não se sabe ao certo se é uma figura real ou uma personagem metafórica, mas dado o caráter pouco favorável às mulheres da cultura grega de então, é de se supor que, ainda que o fato não tenha ocorrido ipsis litteris, tenha seu fundamento real.

O contexto em que Sócrates recorda dos ensinamentos recebidos de Diotima é o questionamento sobre o amor ocorrido durante o célebre banquete. Mas, antes de ir a ele, vou dar uma passeada rápida pela teoria das formas de Platão, porque uma está intimamente ligada a outra.

Observe o mundo ao seu redor. Eu, por exemplo, estou na minha cozinha agora, e olho para a mesa, e vejo que seu tampo é retangular. Olho para um copo e percebo que ele é cilíndrico, assim como a caixa de bombons que não posso comer é cúbica. Ora, essas características tornam alguns objetos semelhantes a outros, mas sempre é possível verificar que, entre eles, essa coisa em comum é redutível à perfeição. Por exemplo: a barra de manteiga, a caixa de chá e o sabão em pó têm o mesmo formato de paralelepípedo de uma peça de macadame. Só que, olhados na lupa, é só uma semelhança, já que nenhum passa por um mero teste de régua. Eles têm essa forma, mas o paralelepípedo perfeito só há geometria, ramo da matemática destinada às medidas. E a matemática não é algo que desfila nas ruas em suas fórmulas, mas na concreção dos objetos, todos eles imperfeitos, mesmo a melhor de suas representações, como um traçado técnico em uma prancheta – trouxe para o mundo sensível, trouxe defeito. Sendo assim, concluímos que a perfeição não existe no plano perceptível pela sensibilidade, mas neste espaço racional administrado pelo intelecto.

A questão é que é mais simples de se entender a teoria das formas pela via de objetos palpáveis, mas ela é bem mais profunda, tendo como premissa que abstrações também partem de um modelo de perfeição para aplicações da vida prática. Por exemplo, temos uma forma de justiça perfeita, que, uma vez colocada nas situações mundanas, não se aplica por inteiro. Coragem, altivez, rapidez de raciocínio, misericórdia e tantos outros significados abstratos são como cilindros e esferas: também possuem formas perfeitas que se plasmam imperfeitamente no mundo concreto. Assim é com toda gama de sentimentos e emoções, incluindo o amor.

Nossa limitação em perceber as coisas em si mesmas tem relação com a famosa alegoria da caverna, onde Platão compara nossa capacidade de perceber as ideias imutáveis como sombras projetadas na parede: imperfeitas, indefinidas, obnubiladas, sujeitas à mutabilidade própria de uma visão distorcida. Entretanto, essas sombras são o início do contato que temos com a perfeição das ideias, porque, mesmo assim sendo, elas contêm em si algo do seria o objeto perfeito, e participam das formas reconhecíveis pela razão.

Esse processo de associação dos objetos com suas formas se dá na forma de reminiscência. No entendimento de Platão, sabemos reconhecer um objeto como sendo o que é porque temos suas formas essenciais registradas em nosso intelecto, e isso acontece porque resgatamos essa forma original e a moldamos no objeto coletado pelos sentidos. Ainda que de forma imperfeita, os sentidos captam a essência gravada no mundo das ideias, ou seja, a forma perfeita.

O ensinamento de Diotima está relacionado a isso. A premissa fundamental é que temos a sensibilidade para adquirir o mundo, e a intelecção, embora possa atingir maiores níveis de conhecimento, precisa do arcabouço sensível para iniciar a escalada racional, e isso se faz através dos impulsos mais basilares, mais próximos da animalidade. Fundamentalmente, Diotima entende que a busca do amor se identifica com a busca pelo belo, e que isso não se faz com uma conexão direta, mas em um caminho que se sobe por degraus, a cada passo se conectando um pouco mais com a forma perfeita. Por isso, essa tese ficou conhecida como scala amoris, ou seja, escada do amor.

É um nome bonitinho, e parece aqueles filmes da Sessão da Tarde, onde uma turma do barulho causa as maiores confusões para ajudar o jovenzinho apaixonado a conquistar a namorada que não liga para ele, mas a realidade nada tem a ver com isso, pertencendo ao peculiar olhar epistemológico platônico. O mundo da sensibilidade é a porta de entrada para o universo intelectivo, então é através dele que pegamos o degrau mais baixo da escala do conhecimento.

No caso do amor, esse primeiro patamar se dá quando observamos um corpo e dele percebemos a sua beleza. O exemplo mais raso que eu posso dar é do rapazinho que acompanha o molejo sensual da garota que passa pela rua. Esse é um olhar erótico mesmo, mais basilar, cheio de segundas, terceiras e quartas intenções, porque, embora todo distante da perfeição do amor, está prenhe de sua semeadura, e, como se atribui a Confúcio, a maior de todas as caminhadas começou pelo primeiro passo. Ao estender seu olhar para um segundo corpo, também ali será encontrada a beleza e assim por diante, de forma a se compreender que ela não é exclusividade de um só corpo, mas que aquela que está em um é irmã da que está em outro, tem sua mesma natureza. Já aqui é possível abandonar as paixões implacáveis e possessivas por um único corpo belo. O próximo degrau está no reconhecimento de que, para além dos corpos, a beleza se encontra de forma ainda mais aperfeiçoada nas almas.  E por quê? Porque, ao contrário dos corpos, as almas são eternas e, desta forma, estão mais próximas à perfeição do que estes últimos. Sendo assim, reconhecer a beleza contida nas almas significa ter contato com a beleza perene, e não com a transitória existente nos corpos.

Sobe-se um pouco mais para contemplar o principal produto das almas: as suas ideias. O laboratório humano e seus ofícios, as suas leis e, finalmente, sua capacidade de obter ciência derivam diretamente da beleza que há na intrincada realidade que rodeiam corpos e almas. Isso conduz a outra instância da beleza: as reflexões e os discursos consequentes. O que produz a beleza da sabedoria é o amor que se tem por ela. Esse é o ponto em que se verá que a beleza que se vê no intelectual é muito superior que a beleza que se vê no físico, e, aparentada do amor, estar em seus fundamentos.

Por fim, passadas todas essas etapas, o sábio poderia se defrontar com aquela beleza divina, do belo pelo belo, do belo em si mesmo, o Belo com letra maiúscula, despido de todas as circunstâncias da sensibilidade, partilhado com o próprio divino. Esse é o belo de quem subiu a ladeira da caverna e não vê mais sombras, mas que conhece de fato uma perfeita da beleza contida no mundo das ideias, assim como alcança o círculo perfeito da matemática. Está no topo da scala amoris, e conhece o amor em si mesmo.

Como eu já disse, a existência de Diotima de Mantineia é incerta. Se o próprio Sócrates já é objeto de discussão, uma sacerdotisa cuja única fonte histórica é o Simposium fica ainda mais com os parênteses em aberto. Torna-se importante na medida em que se procura, hoje em dia, trazer a claro a importância nunca dada às mulheres na Filosofia, mas obviamente se ela é uma pessoa de carne e osso, se é uma personagem criada para servir de escada a uma tese, se ela existiu, mas não o diálogo em si, pouco importa. Já aqui temos um exemplo do que Platão dizia quando a busca pelas essências deve prescindir do corpóreo: o que importa é, neste caso, a ideia em si mesma.

Sendo assim, bom é que apuremos nossas recordações, porque isso faz dar importância real aos nossos professores, ao lugar das mulheres no conhecimento e que românticos sacos de coar são agradáveis para quem bebe o café, e não para quem o faz. Uma maquininha, às vezes, não é um mal negócio quando gostamos de nossas avós. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Já citei o Simposium outras vezes, mas vale fazer de novo:

PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Martin Claret, 2015.



quinta-feira, 27 de novembro de 2025

O café filosófico do quotidiano – versões não são inocentes (ou: os 50 anos de Wish You Were Here, um capolavoro atemporal)

(Surfar no sucesso de uma música pode esconder tanta coisa que não vale a pena fazê-lo)

“Bem-vindo, meu filho, bem-vindo à máquina. Com o que você sonhou? Tudo bem, nós te dissemos com o que sonhar”

Roger Waters

Olá!

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Vivemos em um mundo onde o primado do indivíduo tem resultado em pessoas que vivem cada vez mais sozinhas. Isso é um problema em si mesmo? Para mim, é, principalmente levando em conta que eu tinha uma família grande, que eu estudei em escola pública, que eu trabalhei em firmas grandes, que eu tenho costumes de grandes espaços, especialmente nos campos de futebol da vida. Mas hoje em dia, nossas redes de dependências têm se tornado mais optativas do que obrigatórias, e como há momentos em que o melhor é estar só de fato, as pessoas lançam mão de subterfúgios para compensar as ausências físicas, redes sociais à frente.

Isso leva a uma redução nas coisas da vida, nas dimensões e nas quantidades. Apartamentos de 20 metros quadrados são suficientes, modas minimalistas tornam desnecessárias grandes coleções de pratos, copos e talheres; carrinhos 1.0 que carregam uma mochila são mais do que suficientes, isso quando não se lança mão de motos. E há o café.

Esta minúscula cafeteira de uma dose só tem uma historinha por trás dela. Eu estava em um daqueles chatíssimos eventos de lançamento de uma determinada plataforma de antivírus, que apresentam maravilhas que te salvaguardarão de qualquer ameaça virtual através de um appliance assim-assado e etc. Sabemos que essas coisas nunca batem com a realidade, mas tenho que admitir que uma coisa foi inesquecível: um café da tarde de cinema, com quantidade e qualidade a toda prova, daqueles de fazer um monge arregar. Como souvenir, um artefato relacionado - um minicafeteira individual.

O utensílio é simples, bonito e funcional. A mesma tampa que lhe protege é o porta-copos que recebe a xícara. Esta, por sua vez, é um recipiente de vidro, que é muito mais agradável do que o esperado copinho de plástico. Óbvio que há uma logomarca impressa, mas, como não ganharei centavo, vou mantê-la oculta.

O coador é uma tela de metal que recobre o fundo do filtro, e, uma vez montado, não passa de dez centímetros de altura, resolvendo muito bem os supostos problemas de armazenamento em um canto de trabalho ou estudo, por exemplo.




Nome do utensílio: Conjunto de dose única

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média/grossa

Dinâmica: O conjunto é multifuncional, e deve ser montado na ordem certa. A tampa superior deve ser virada para despejo do pó, e o liquido deve ser vertido aos poucos até o limite do filtro, para não extrapolar a capacidade da xícara abaixo.

Resíduos: Médios

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Baixo

Ideal para hoje, quando estou sozinho em casa. Isso é raro, mas a patroa precisou sair cedinho e eu estou com pouco ânimo, demandando a energia que a cafeína me propicia. Só que enquanto escoo meu cafezinho, dou-me conta de que chegou gente nova no segundo andar. Nem faz tão pouco tempo assim, mas é hoje que eles se dão a perceber, da pior maneira possível: um rádio com uma música alta o suficiente para perfurar a parede do horizonte de fundo sonoro. Se você viesse com um decibelímetro, acharia que os limites do conforto estariam longe de ser vazados, mas a questão é de conteúdo, e não de volume. Pelo vitrô da cozinha, começam a subir os acordes de uma música conhecida - Wish You Were Here. Mas em versão sertaneja.

Não vou perder nem dois minutos tentando saber quem canta, porque eu já o odeio, sem que nem ao menos eu lhe deduza o rosto. Recaio no mesmíssimo fenômeno que já descrevi neste texto, com os mesmos efeitos físicos e psicológicos. O incômodo, já natural em mim, é multiplicado por mil por conta do vilipêndio. Quem faz essas versões não sabe (e está cagando para saber) o que está modificando. Embora não haja a menor perspectiva de que eu esteja mudando o mundo, sinto uma espécie de obrigação em me manifestar, e vou tentar explicar que tipo de pérola estão atirando aos porcos.

Começamos desagravando. Meus vizinhos não estão cometendo crimes, nem praticando pecados, nem perpetuando comportamento sem ética. Eles estão curtindo o que gostam e isso basta para eles. A questão se limita a mim mesmo, e, se quero deixar claro o desconforto, devo explicá-lo. Balizados estamos, andiamo avanti.

Já pronunciei uma pincelada daquilo que me aprofundarei neste texto. Nominar o que consideramos como arte é problemático, o que não impede de existirem fronteiras mensuráveis pelo esforço e pela técnica, sendo esses critérios um pouco mais objetivos. Mas arte não é só isso, e tem muito a ver com a relação pessoal que temos com o mundo. Artistas inovadores costumam quebrar a cara várias vezes, porque fugir de padrões nunca é confortável para grandes públicos. Revisitar arte já existente, portanto, dá a vantagem de apostar na certeza, mas também forja um aspecto de preguiça, embora haja sempre o argumento da homenagem. Certos bustos de jogadores consagrados demonstram que homenagens nem sempre pode ser uma boa ideia*, mas não há problemas em fazer covers e versões de músicas consagradas. Só que é preciso, salvo melhor juízo, saber onde se está tocando. Daí para frente, a decisão é sua.

Mas de onde vem tanta deferência por uma música e a revolta pela sua execução fora do círculo original? Aí, vai ter que ter história, porque é justamente todo o seu pano de fundo que dá sentido a isso tudo. Vou tentar alongar e cortar um monte de detalhes.

O Pink Floyd é uma banda que nasceu no contexto da psicodelia dos fins dos anos 60. Como tal, inseriu-se na mesma mecânica que seus parceiros de movimento, o que inclui muita pesquisa sonora, temas pouco convencionais e experimentação de todo tipo, em especial a abertura química das portas de percepção. Em outras palavras, no consumo de drogas psicoativas, principalmente alucinógenas. E, aqui, imperava o ácido lisérgico. Com efeitos psicotrópicos descobertos em 1943, chegou ao seu auge duas décadas depois, quando, sob impulso de efeitos psicoterápicos, espalhou-se pela classe artística, sob argumento de percepção sensorial mais aguçada e consequente incremento criativo.

Como em tudo na vida, há os famosos dois lados. Se por um lado a derrubada dos bloqueios mentais fazia com que a criatividade ficasse a mil, por outro, fígados e cérebros eram detonados pela substância pouco compatíveis com eles. E ao lado da explosão criativa, vinha o fim de feira orgânico. É aqui que vamos falar de Syd Barrett.

Este guitarrista e compositor era o líder do Pink Floyd, e suas composições falavam de um tempo e de um espaço criados a partir da confusão mental, como em See Emily Play, ou dimensões siderais exóticas, como em Astronomy Domine, dentre outras maluquices. Estas músicas estão em The Piper at the Gates of Down, primeiro álbum da banda e o único gravado sob sua liderança. O sucesso deste disco levou a banda a uma infinidade de shows, mas o excesso de consumo de substâncias rapidamente demonstrou seu efeito devastador na mente de Syd. O seu comportamento esquizofrênico lhe causava longos períodos de catatonia, o que, no palco, resultava em momentos de paralisia enquanto o show se desenrolava. Esse, inclusive, foi o motivo pelo qual foi chamado um segundo guitarrista, David Gilmour. Sem horário, sem comunicação e errático, se tornou um empecilho ao bom funcionamento da banda. Com isso, Syd passou a ser figura decorativa nos palcos, até chegarem à conclusão de que ele era um peso morto, e o excluíram em definitivo, mesmo tendo pensado inicialmente em deixá-lo a cargo das composições.

Como sabemos, o sucesso veio retumbante, em especial após o álbum The Dark Side of the Moon, até hoje uma obra-prima da música contemporânea, daquelas que até os mais empedernidos metaleiros respeitam. Isso trouxe um problema para a banda, daqueles bons: criar uma obra que o sucedesse com dignidade. No começo, pensaram em partir para a ignorância, com uma experimentação ainda mais intensa, cheia de efeitos sonoros e sons extraídos do ambiente, como tão bem fazia Hermeto Paschoal, mas acabaram trabalhando em pesquisas de palco, sentindo o que assentava bem com o público e sem um destino muito certo. Durante essa fase de construção, com sérios bloqueios criativos e sem uma linha clara a seguir, receberam a visita inesperada de Syd Barrett no estúdio, quase sete anos depois de seu último contato, muito gordo, inteiramente sem pelos e com as falas e comportamentos completamente desconexos. A fase de início do Pink Floyd o destruiu física e mentalmente, e o abandono só reforçou sua condição.

O peso da culpa se abateu sobre os membros, e o novo álbum deu uma virada completa no seu direcionamento. Do experimentalismo sonoro, o trabalho guinou para um tom menor, melancólico de ponta a ponta. O álbum virou conceitual, percorrendo todo ele a ideologia massacrante da busca pelo sucesso e sua manutenção comercial, destruindo corpos e consciências no mesmo ritmo da busca dos cifrões. A visita era a gota que faltava para transbordar o balde da revolta.

O álbum é temático, coisa inexistente no universo que o imita, e gira em torno da pressão ocasionada pelo mercado sobre a área criativa. Essa pressão era sentida pelos membros do grupo, que precisavam suceder o megasucesso anterior com um mínimo de resultado financeiro. A gravadora não estava lá muito preocupada com o teor artístico, como sói acontecer até hoje.

Só que o difícil é tirar o leite criativo da pedra financeira. Não se trata de ligar o gerador de lero-lero e falar sobre qualquer coisa. O processo criativo não funciona com um botão de liga e desliga, e demanda tempo, atmosfera, reflexão, escrita e reescrita, tanto de músicas, quanto de letras, de arranjos, de ideia de todo, harmonia entre as partes, conciliação temática. Fora disso, é lero-lero sim.

O álbum fala exatamente sobre o desfazimento de laços humanos. É toda uma cadeia de causas e consequências que fala sobre a desnaturação e desestruturação mental (Shine on You Crazy Diamond), ocasionado por um ambiente de pressão e objetificação (Welcome to Machine), em um processo de avareza e cinismo que não se importa com a história das pessoas (Have a Cigar?). A pungência chega ao máximo na música título. Uma ode lírica que retrata a lamentação por ter deixado o antigo amigo sozinho, deixado à própria sorte e todo o arrependimento causado pelo ato impensado. A poética é aplicável universalmente a quem se remói de ter deixado uma amizade de lado em nome de um objetivo mais mesquinho. Ela fala sobre o dogmatismo de nossas ideologias, de como nos alienamos e desconectamos de realidades e de como abandonamos pessoas e projetos, para depois acharmos falta de tudo isso.

É um dos usos mais nobres da linguagem: a expressão de realidades interiores, a tradução de estados de espírito, ainda que sejam dolorosos (muitas vezes, é tudo o que nos resta de nossas escolhas). “Como eu queria que você estivesse aqui” pode significar um monte de coisas, mas a música não é sobre a perda de uma paixão, e sim sobre como renegamos nossas origens, como permitimos que se ergam muros entre nossas subjetividades, como deixamos que nossas personas dominem nossas pessoas, como esquecemos de estender a mão a quem amávamos. Wish you were here não é uma linguagem que rima amor com dor, mas sobre correr sobre a mesma estrada e sempre encontrar a mesma dor. É tentador aproveitar a melodia comovente e reaproveitá-la, mas isso se torna impossível quando ela observada na lupa.

Percebem como há inúmeras coisas por trás de uma canção? Não se trata de ser chato com o uso de uma melodia bonita, mas do que se destrói ao colocar uma historinha de amor mal resolvido no lugar de tudo o que uma obra de arte carrega, e isso equivale a jogar uma lata de tinta na Mona Lisa. E ninguém fica feliz com isso. Pegue a canção que você acha mais bonita na sua igreja e a transforme em um metal satânico. Você não se sentiria mal?

Há certas reservas de sacralidade que fazemos por conta de nossas próprias idiossincrasias. Pode ser qualquer coisa: um objeto antigo, uma camisa de time, uma foto de um antepassado, um brinquedo de infância, até um chaveirinho de estimação. O que importa é que por trás disso há valores que nos são caros, como é o caso das músicas que apreciamos, que nos tocam. E por mais que sejamos liberais e tolerantes, o fato é que a adulteração da sacralidade tem em nós o efeito de um ultraje. E não dá para dizer que está tudo bem.

Há um efeito maléfico nas versões que não respeitam minimamente o original, aproveitando deles unicamente a melodia adaptada. Ao invés de estimular o ouvinte a procurar saber mais sobre a origem, incitam-no a entender que a música é só isso, um choramingo sentimental sobre a perda da mulher amada ou coisa parecida. Não significa que toda e qualquer versão seja ruim, sendo até possível uma superação do original. É célebre a versão de With Little Help from my Friends, dos Beatles, na voz de Joe Cocker. Uma cançãozinha com ar infantil pegou um peso apoteótico. Outra versão que ficou soberba é a música Special Care, originalmente do grupo folk Buffalo Springfield, que ganhou uma consistência absurda na voz das meninas do Fanny, virando um hardão daqueles de arrebentar a tampa da cabeça. Mas nota-se o respeito justamente pelo que se acrescenta à versão, e não do que se tira. Afe!

Eu acho que sou um Dom Quixote atacando moinhos de vento. Bons ventos a todos!

Recomendação de álbum:

Ele acabou de fazer 50 anos e ainda está no panteão dos grandes discos de rock progressivo, psicodélico, espacial ou seja lá o nome que se der ao estilo. Grandioso como seu antecessor, sendo que bons nomes o colocam até como melhor. Como obra da coesão, é melhor mesmo, na minha humilde. Vale a pena prestar a atenção, deitar no sofá com os fones de ouvido e fazer seguidas incursões. Percebam o fenômeno de se aperceber de detalhes em cada uma delas. Obra de gênio, que não deveria ser tratada sem reverência.

WISH YOU WERE HERE. Pink Floyd. Londres: EMI, 1975.

 

* Olhem “belos” exemplos neste endereço:

https://www.uol.com.br/esporte/amp-stories/homenagem-estatuas-de-jogadores-de-futebol-que-nao-deram-certo/