(Crer ou não crer, eis a questão)
“O agnosticismo puro é impossível. O único agnosticismo verdadeiro é a ignorância. Porque para nos radicarmos no agnosticismo é-nos preciso um argumento para nos persuadir que a razão tem certos limites. Ora, quem observa pode parar; quem raciocina não pode parar.”
Fernando Pessoa
Olá!
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Dizem que os mineiros são desconfiados. Eu não sou mineiro,
mas desconfiado eu sou. Então tudo o que é apresentado a mim como novidade, eu
coloco entre parênteses. Não se trata de uma atitude fenomenológica, afinal, epoché
não é coisa para o quotidiano, mas eu sou feito desse material. Então,
paciência.
Algumas coisas, no entanto, acendem o desconfiômetro mesmo
quando comezinhas. Eu vejo como são as coisas no universo dos meus sogros,
casal típico do interior que ainda acredita em lobisomem, e percebo o acerto da
minha atitude. Eles são daqueles que dão mais ouvidos aos curiosos que aos
especialistas, aos inquilinos que aos advogados e, risco dos riscos, aos
vizinhos que aos médicos, dado o grau de proximidade e consequente confiança.
Certo: os circunstantes não fazem propriamente por mal, mas é preciso ter um
mínimo de bom senso, o que não ocorre quando a recomendação vem de mim ou da
patroa. Dizemos que alguém passa a vida inteira estudando para te receitar o
remédio certo, enquanto o vizinho só sabe daquele chazinho mágico e daquela
episódica melhora. Se o chazinho tiver propriedades curativas, deixe que o
médico o diga. Nesses quesitos, eu sou muitíssimo bem disciplinado.
Mas admito que tem vezes que eu exagero, especialmente em coisas que me são caras, mas que não giram a roda universal. Algumas novidades que me são exibidas fazem com que eu acenda todos os alertas, externalizados por um muxoxo retorcido e uma única sobrancelha soerguida. Mas há no meu interior um diabinho experimental que combate meu anjinho conservador, e acabo me convencendo de que devo ao menos fazer um teste. Refiro-me a café. No caso, aos relativamente novos drip coffees.
Trata-se de uma dose individual já acondicionada em um
elemento filtrante, mormente fabricado em TNT, o curioso tecido não-tecido, e
que só precisa de água quente e recipiente para ser preparado.
O método evidentemente já vem com os grãos moídos e
depositados em um envelope que necessita ser destacado para fazer o encaixe e
possibilitar o acréscimo de água quente.
Ele também vem com aletas de papel cartão destacáveis que,
sendo flexíveis, se encaixam em uma gama razoável de bocais.
Nome do utensílio: Drip coffee
Tipo de técnica: Percolação
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: de acordo com o envelope adquirido
Dinâmica: Envelope de TNT pronto. Destaca-se a parte superior e estende-se as aletas até a borda da xícara, percolando água fervente
Resíduos: Baixos
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: baixo
Mas por que a desconfiança? Quem está acostumado com o mundo de cafés especiais sabe que há um certo cuidado no preparo da bebida que vai além daquele dedicado a cafés de boteco. Alguns desses cuidados não são aplicáveis a esse modelo de extração, o que liga os filtros de quem demora mais do que cinco minutos para fazer um bom café: a primeira coisa é que não dá para fazer o escalde do filtro, que garante três coisas. A saturação do material impede que o filtro “roube” óleos do líquido, a água quente aquece o sistema como um todo e remove resíduos que influenciam no sabor da bebida final. Outro fator é que o café já vem moído, o que favorece a oxidação do pó e diminui sua qualidade. Por fim, a espessura já determinada diminui o espaço por onde a criatividade do barista anda; é aquela receita e punto, finito.
Isso tudo me faz pensar em balizamento de limites que, como
vocês já viram nesta série, não são do meu agrado. Mas ser ponderado implica em
observar os vários lados de uma questão, e, neste caso, é preciso primeiro
pensar nas vantagens e, a posteriori, experimentar, por evidente. No primeiro
exercício, temos a praticidade de poder carregar o café no bolso, o que é útil
em momentos em que você não tem a seu dispor mais do que uma xícara e um pouco
de água quente. Além disso, um bom café é um bom café mesmo quando não obtido
em suas melhores condições, superando a zurrapa que conseguiríamos por aí. O
negócio é passar para o segundo exercício crítico, que é pegar um envelopinho
desses e preparar. Uma vez escoado, o café prova-se digno, com sabor
preservado, embora não chegando ao ideal.
Então, sopesados prós e contras, percebemos o quanto a
alternativa é válida, e notamos que o preconceito acaba quando olhamos mais
acuradamente a realidade. Às vezes perdemos coisas boas e boas oportunidades
por bobagens
Pois então não devemos ser desconfiados? Claro que não se
trata disso. Existe um nível natural e saudável de desconfiança, que, como em
tudo na vida, é prejudicial quando excessivo. O grande ponto é quando você
firma convicções que vão se provando infidedignas, e aí é visgo de jaca mole:
nunca mais desgruda da pele. A não ser após um looooooongo processo de
reflexão.
Mas há que se fazer distinções. Há níveis de criticidade
diferentes entre modelos de ponto de vista, e isso faz toda a diferença do
mundo no momento de estabelecer certezas. Há coisas que cremos, há coisas que
sabemos. E nem sempre elas são possíveis, mesmo sendo cômodas.
O exemplo mais farto vem das religiões. Boa parte da
confiança que temos em uma divindade não está no âmbito do provável, mas de uma
crença que pode se basear nos mais diferentes motivos. Você pode não ter tido
um único contato que se materialize, mas ainda assim acreditar piamente. E, por
mais que você diga o contrário, o fato é que você crê, mas você não sabe.
Como assim? É que crer e saber são coisas distintas. Crer é
baseado em confiança, enquanto saber é sinônimo de conhecer, de ter
comprovações e absolutas certezas.
Então, só podemos dizer que quem sabe é o ateu? Não, a sua
condição é exatamente igual à do religioso. Também o ateu tem uma crença - a de
que não existem divindades. Normalmente adquire isso pela via de quem não
alcança provas, e, não as havendo, conclui pela inexistência, assim como creio
que não tem açúcar em casa quando não o acho no armário. Mas também aí não se
pode enquadrar uma certeza, já que não existe completude de conhecimento nesse
mundão de meu deus. E, ok, pode ser que uma deidade não faça manifestações
físicas, mas ainda assim ele está lá, guiando os caminhos do universo, por mais
tortuosos que pareçam. Também aqui se crê, mas não se sabe.
Então, o que resta? Talvez, reconhecer que não há como se
desvencilhar da crença. Ou, mais simplesmente, entender que há certas coisas em
que não conseguiremos colocar nosso conhecimento. E isso é muito comum.
A posição tem um nome, que é agnosticismo. Seu
surgimento tem algumas curiosidades, e nós vamos a elas.
Sabemos que a posição filosófica preponderante incluiu, por
muito tempo, a existência de divindades. No ocidente, a teologia cristã traz um
deus único, onipotente, onipresente e onisciente, todo-poderoso. Por muito
tempo, não houve ânimo em se contrapor a essa tendência, seja por seu consenso,
seja pelo risco de assumir o contrário. Ocorre que o transcurso histórico veio,
paulatinamente, trazendo novidades ao pensamento, de modo a diminuir a
importância das deidades e aumentar a confiança na ciência.
Isso tudo demarca uma divisória, onde de um lado estão
aqueles que buscam conciliar os desenvolvimentos científicos com a obra divina,
e do outro estão os que passam a entender que a natureza se explica por si só,
sem necessidades de intervenções. Excluídos os negacionistas, resta uma
terceira via, a via dos que não conseguem chegar a uma conclusão, ou seja, que
não chegam a invalidar as teses do deus presente na natureza, nem deixam de
concordar com sua autossuficiência. Entre ambos, estão os agnósticos.
Por que entre ambos? Porque é possível tanto ser religioso e
agnóstico, quanto ateu e agnóstico, ao mesmo tempo. Sendo coisas diferentes,
podem ser concomitantes.
Vamos falar um pouco do termo, primeiramente. Ele surge em
fins do século XIX, no auge das discussões que mencionei, especialmente no
âmbito da fervilhante teoria da Evolução, que batia muito dolorosamente nos
dogmas de criação até então preponderantes, por colocá-los muito claramente na
condição de mitos*. Teístas e ateus se defrontam através das apresentações de
evidências e de suas contestações, embora a questão fosse mais delicada do que
uma dicotomia cruzada entre ser favorável à tese da evolução e ser ateu versus
ser contrário à mesma e ser religioso. Entre as duas posições baseadas em
crença, surge a suspeita pela via do conhecimento. Thomas Huxley, intelectual
inglês partidário das ideias darwinianas, era conhecido como “Buldogue de
Darwin”. Por um lado, o afamado cientista era um homem relativamente recluso,
pouco dado ao debate, e mais concentrado em realizar seus estudos do que os
discutir em praça pública. Por outro, encontrou no filósofo o debatedor ideal
de seus princípios. Eloquente e em plena adesão ao ideário evolucionista, tomou
a frente do confronto público com os detratores dos novos princípios, e,
segundo se conta, com bastante êxito.
Sendo um opositor dos criacionismos, era natural que se lhe
fosse questionada a posição religiosa, mas não havia uma resposta rápida,
resumida em uma única palavra que a sintetizasse. Era sempre aquele longo
desfiar de “não acredito, nem desacredito”. Para tanto, cunhou o termo “agnóstico”.
Sua origem se dava no gnosticismo, uma seita que funde filosofia platônica e
religiosidade cristã que afirmava ser o mundo material uma emanação imperfeita
de um demiurgo, uma espécie de divindade menor coligada ao mal, o que
explicaria tantos defeitos no universo criado. Entretanto, existe uma
participação na divindade superior em cada ser vivo, na forma de espírito, e é
pelo conhecimento da existência desse deus superior que se consegue a
libertação do mundo material, o que explica o nome da corrente. Gnóstico,
portanto, é aquele que crê porque conhece.
Se o gnosticismo diz que é pelo conhecimento que se chega a
deus, é pela assunção de sua impossibilidade que Huxley trouxe o seu termo, o
agnosticismo. Gnose, em grego, significa “conhecer”, o termo a é
sua inversão de sinal, sua negação. Portanto, agnóstico é aquele que afirma ser
impossível saber se existem divindades ou não.
Isso tudo se deve à impossibilidade de colocar deidades em
tubos de ensaio. Sempre é possível imaginar que há um deus por trás de qualquer
movimento do universo, e é impossível negar. E aí você crê ou não nisso, mas
saber… não se sabe. Por isso, a resposta pode ser cética, de suspender o juízo;
pode ser de confiança, de fé, de crença na existência, ou de descrença, sendo
tudo processos naturais independentes de vontades, mas saber… é isso que Huxley
chamou de agnosticismo, sua posição epistemológica diante da presença ou não de
uma divindade nos processos evolutivos.
A questão é que temos um confronto entre lógica e
epistemologia nesse tema. Isso se deve ao fato de que podemos ter doxa e
episteme, ou seja, opinião e conhecimento. Há inúmeras coisas que podemos não
saber, mas que podemos formar uma opinião e acreditar nela. Quando pensamos em
termos científicos, a opinião é um problema, porque dela parte inúmeros desvios
e vieses, mas o fato concreto e inevitável é que ela existe e muito, mas muito
mais presente em nossos quotidianos do que um conhecimento sintetizado e
consagrado. Mais ainda, por vezes confundimos ambos, e assumimos opiniões com
verdades. Aí, a porca torce o rabo.
Por essa razão, é possível ser ateu e agnóstico ao mesmo
tempo, assim como é possível ser religioso e agnóstico também. Porque ainda que
não saibamos se uma divindade existe ou não, podemos acreditar que sim ou que
não, diante do que é possível ter de evidências. E, neste sentido, pouco
importa se são tratados científicos ou evidências anedóticas. O que importa
aqui é a sensação pessoal, um convencimento que se faz aos poucos ou uma
experiência repentina.
E isso nos possibilita pensar em graduações de crença. Eu,
assim como Huxley, posso ter um padrão de desconhecimento assumido, mas
analisar a credibilidade de cada divindade que me é apresentada, bem como da
lógica interna de seus aspectos, como as exigências que faz, a moralidade que
sustenta e assim por diante. Religiões abraâmicas, por exemplo, são
montanhas de contradições, e, para que eu volte a crer nelas, precisarei de
evidências muito fortes. Já crenças budistas ou religiões com deuses mais
difusos tem uma coerência interna mais sofisticada e com menos argumentos
autoritários, o que é um convite para uma aceitação maior. Aplicados a um
percentual de crença, dá para dizer que os primeiros se aproximam de zero,
enquanto os segundos são mais dignos de consideração, até porque eles são
desnecessários na construção da realidade. E é isso: quanto mais necessário um
deus, menos crível ele é.
Repetindo algo que já falei por esses textos, a partir do
momento que eu coloquei o ceticismo ao serviço do meu conhecimento, percebi que
tudo se acomodava melhor sem divindades. Mortes ocorrem porque doenças existem,
e não porque Deus quer. Terremotos devastam porque são desequilíbrios naturais,
e não castigos impostos para populações inteiras. As espécies se transformam
porque sofrem pressões seletivas, e não pelo capricho da deidade de plantão.
Tudo fica mais coerente, mais factível, mais compreensível sem a explicação
divina. Mesmo que não se consiga obter esclarecimentos pela via da ciência,
colocar a divindade na lacuna não ajuda nada, só cria uma narrativa que
continua sem comprovação.
No final das contas, tendo a acreditar (vejam vocês) que
somos todos agnósticos. Costumam dizer que não existe ateu em um avião caindo,
assim como um religioso enfartando procura um hospital, e não um templo. A
contradição está em apelar para uma entidade em que não se acredita, ou em
desprezá-la no momento em que mais se precisa. Desculpem-me ambos, mas em
momentos de desespero não há espaço nem para a racionalidade, nem para a fé. Há
aquilo que temos de melhor ao nosso alcance.
É a maneira como penso, e não quero ofender ninguém com
isso. Assim como diante da novidade de um café já moído e pronto para a água,
também tenho muita dificuldade em absorver coisas que não posso experimentar. Bons
ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Textinho rápido sobre o tema, interessante por se tratar da
primeira utilização do termo.
HUXLEY, Thomas. Agnosticismo. Blumenau: Kindle, 2023.
E-book.