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sexta-feira, 20 de junho de 2025

O café filosófico do quotidiano – o agnosticismo que se combina com qualquer modo de crença

(Crer ou não crer, eis a questão) 

“O agnosticismo puro é impossível. O único agnosticismo verdadeiro é a ignorância. Porque para nos radicarmos no agnosticismo é-nos preciso um argumento para nos persuadir que a razão tem certos limites. Ora, quem observa pode parar; quem raciocina não pode parar.”

Fernando Pessoa

Olá!

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Dizem que os mineiros são desconfiados. Eu não sou mineiro, mas desconfiado eu sou. Então tudo o que é apresentado a mim como novidade, eu coloco entre parênteses. Não se trata de uma atitude fenomenológica, afinal, epoché não é coisa para o quotidiano, mas eu sou feito desse material. Então, paciência.

Algumas coisas, no entanto, acendem o desconfiômetro mesmo quando comezinhas. Eu vejo como são as coisas no universo dos meus sogros, casal típico do interior que ainda acredita em lobisomem, e percebo o acerto da minha atitude. Eles são daqueles que dão mais ouvidos aos curiosos que aos especialistas, aos inquilinos que aos advogados e, risco dos riscos, aos vizinhos que aos médicos, dado o grau de proximidade e consequente confiança. Certo: os circunstantes não fazem propriamente por mal, mas é preciso ter um mínimo de bom senso, o que não ocorre quando a recomendação vem de mim ou da patroa. Dizemos que alguém passa a vida inteira estudando para te receitar o remédio certo, enquanto o vizinho só sabe daquele chazinho mágico e daquela episódica melhora. Se o chazinho tiver propriedades curativas, deixe que o médico o diga. Nesses quesitos, eu sou muitíssimo bem disciplinado.

Mas admito que tem vezes que eu exagero, especialmente em coisas que me são caras, mas que não giram a roda universal. Algumas novidades que me são exibidas fazem com que eu acenda todos os alertas, externalizados por um muxoxo retorcido e uma única sobrancelha soerguida. Mas há no meu interior um diabinho experimental que combate meu anjinho conservador, e acabo me convencendo de que devo ao menos fazer um teste. Refiro-me a café. No caso, aos relativamente novos drip coffees.

Trata-se de uma dose individual já acondicionada em um elemento filtrante, mormente fabricado em TNT, o curioso tecido não-tecido, e que só precisa de água quente e recipiente para ser preparado.


O método evidentemente já vem com os grãos moídos e depositados em um envelope que necessita ser destacado para fazer o encaixe e possibilitar o acréscimo de água quente.

Ele também vem com aletas de papel cartão destacáveis que, sendo flexíveis, se encaixam em uma gama razoável de bocais.

 

Nome do utensílio: Drip coffee

Tipo de técnica: Percolação 

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: de acordo com o envelope adquirido

Dinâmica: Envelope de TNT pronto. Destaca-se a parte superior e estende-se as aletas até a borda da xícara, percolando água fervente

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: baixo

Mas por que a desconfiança? Quem está acostumado com o mundo de cafés especiais sabe que há um certo cuidado no preparo da bebida que vai além daquele dedicado a cafés de boteco. Alguns desses cuidados não são aplicáveis a esse modelo de extração, o que liga os filtros de quem demora mais do que cinco minutos para fazer um bom café: a primeira coisa é que não dá para fazer o escalde do filtro, que garante três coisas. A saturação do material impede que o filtro “roube” óleos do líquido, a água quente aquece o sistema como um todo e remove resíduos que influenciam no sabor da bebida final. Outro fator é que o café já vem moído, o que favorece a oxidação do pó e diminui sua qualidade. Por fim, a espessura já determinada diminui o espaço por onde a criatividade do barista anda; é aquela receita e punto, finito.

Isso tudo me faz pensar em balizamento de limites que, como vocês já viram nesta série, não são do meu agrado. Mas ser ponderado implica em observar os vários lados de uma questão, e, neste caso, é preciso primeiro pensar nas vantagens e, a posteriori, experimentar, por evidente. No primeiro exercício, temos a praticidade de poder carregar o café no bolso, o que é útil em momentos em que você não tem a seu dispor mais do que uma xícara e um pouco de água quente. Além disso, um bom café é um bom café mesmo quando não obtido em suas melhores condições, superando a zurrapa que conseguiríamos por aí. O negócio é passar para o segundo exercício crítico, que é pegar um envelopinho desses e preparar. Uma vez escoado, o café prova-se digno, com sabor preservado, embora não chegando ao ideal. 

Então, sopesados prós e contras, percebemos o quanto a alternativa é válida, e notamos que o preconceito acaba quando olhamos mais acuradamente a realidade. Às vezes perdemos coisas boas e boas oportunidades por bobagens

Pois então não devemos ser desconfiados? Claro que não se trata disso. Existe um nível natural e saudável de desconfiança, que, como em tudo na vida, é prejudicial quando excessivo. O grande ponto é quando você firma convicções que vão se provando infidedignas, e aí é visgo de jaca mole: nunca mais desgruda da pele. A não ser após um looooooongo processo de reflexão.

Mas há que se fazer distinções. Há níveis de criticidade diferentes entre modelos de ponto de vista, e isso faz toda a diferença do mundo no momento de estabelecer certezas. Há coisas que cremos, há coisas que sabemos. E nem sempre elas são possíveis, mesmo sendo cômodas.

O exemplo mais farto vem das religiões. Boa parte da confiança que temos em uma divindade não está no âmbito do provável, mas de uma crença que pode se basear nos mais diferentes motivos. Você pode não ter tido um único contato que se materialize, mas ainda assim acreditar piamente. E, por mais que você diga o contrário, o fato é que você crê, mas você não sabe.

Como assim? É que crer e saber são coisas distintas. Crer é baseado em confiança, enquanto saber é sinônimo de conhecer, de ter comprovações e absolutas certezas.

Então, só podemos dizer que quem sabe é o ateu? Não, a sua condição é exatamente igual à do religioso. Também o ateu tem uma crença - a de que não existem divindades. Normalmente adquire isso pela via de quem não alcança provas, e, não as havendo, conclui pela inexistência, assim como creio que não tem açúcar em casa quando não o acho no armário. Mas também aí não se pode enquadrar uma certeza, já que não existe completude de conhecimento nesse mundão de meu deus. E, ok, pode ser que uma deidade não faça manifestações físicas, mas ainda assim ele está lá, guiando os caminhos do universo, por mais tortuosos que pareçam. Também aqui se crê, mas não se sabe.

Então, o que resta? Talvez, reconhecer que não há como se desvencilhar da crença. Ou, mais simplesmente, entender que há certas coisas em que não conseguiremos colocar nosso conhecimento. E isso é muito comum.

A posição tem um nome, que é agnosticismo. Seu surgimento tem algumas curiosidades, e nós vamos a elas.

Sabemos que a posição filosófica preponderante incluiu, por muito tempo, a existência de divindades. No ocidente, a teologia cristã traz um deus único, onipotente, onipresente e onisciente, todo-poderoso. Por muito tempo, não houve ânimo em se contrapor a essa tendência, seja por seu consenso, seja pelo risco de assumir o contrário. Ocorre que o transcurso histórico veio, paulatinamente, trazendo novidades ao pensamento, de modo a diminuir a importância das deidades e aumentar a confiança na ciência.

Isso tudo demarca uma divisória, onde de um lado estão aqueles que buscam conciliar os desenvolvimentos científicos com a obra divina, e do outro estão os que passam a entender que a natureza se explica por si só, sem necessidades de intervenções. Excluídos os negacionistas, resta uma terceira via, a via dos que não conseguem chegar a uma conclusão, ou seja, que não chegam a invalidar as teses do deus presente na natureza, nem deixam de concordar com sua autossuficiência. Entre ambos, estão os agnósticos.

Por que entre ambos? Porque é possível tanto ser religioso e agnóstico, quanto ateu e agnóstico, ao mesmo tempo. Sendo coisas diferentes, podem ser concomitantes.

Vamos falar um pouco do termo, primeiramente. Ele surge em fins do século XIX, no auge das discussões que mencionei, especialmente no âmbito da fervilhante teoria da Evolução, que batia muito dolorosamente nos dogmas de criação até então preponderantes, por colocá-los muito claramente na condição de mitos*. Teístas e ateus se defrontam através das apresentações de evidências e de suas contestações, embora a questão fosse mais delicada do que uma dicotomia cruzada entre ser favorável à tese da evolução e ser ateu versus ser contrário à mesma e ser religioso. Entre as duas posições baseadas em crença, surge a suspeita pela via do conhecimento. Thomas Huxley, intelectual inglês partidário das ideias darwinianas, era conhecido como “Buldogue de Darwin”. Por um lado, o afamado cientista era um homem relativamente recluso, pouco dado ao debate, e mais concentrado em realizar seus estudos do que os discutir em praça pública. Por outro, encontrou no filósofo o debatedor ideal de seus princípios. Eloquente e em plena adesão ao ideário evolucionista, tomou a frente do confronto público com os detratores dos novos princípios, e, segundo se conta, com bastante êxito.

Sendo um opositor dos criacionismos, era natural que se lhe fosse questionada a posição religiosa, mas não havia uma resposta rápida, resumida em uma única palavra que a sintetizasse. Era sempre aquele longo desfiar de “não acredito, nem desacredito”. Para tanto, cunhou o termo “agnóstico”. Sua origem se dava no gnosticismo, uma seita que funde filosofia platônica e religiosidade cristã que afirmava ser o mundo material uma emanação imperfeita de um demiurgo, uma espécie de divindade menor coligada ao mal, o que explicaria tantos defeitos no universo criado. Entretanto, existe uma participação na divindade superior em cada ser vivo, na forma de espírito, e é pelo conhecimento da existência desse deus superior que se consegue a libertação do mundo material, o que explica o nome da corrente. Gnóstico, portanto, é aquele que crê porque conhece.

Se o gnosticismo diz que é pelo conhecimento que se chega a deus, é pela assunção de sua impossibilidade que Huxley trouxe o seu termo, o agnosticismo. Gnose, em grego, significa “conhecer”, o termo a é sua inversão de sinal, sua negação. Portanto, agnóstico é aquele que afirma ser impossível saber se existem divindades ou não.

Isso tudo se deve à impossibilidade de colocar deidades em tubos de ensaio. Sempre é possível imaginar que há um deus por trás de qualquer movimento do universo, e é impossível negar. E aí você crê ou não nisso, mas saber… não se sabe. Por isso, a resposta pode ser cética, de suspender o juízo; pode ser de confiança, de fé, de crença na existência, ou de descrença, sendo tudo processos naturais independentes de vontades, mas saber… é isso que Huxley chamou de agnosticismo, sua posição epistemológica diante da presença ou não de uma divindade nos processos evolutivos.

A questão é que temos um confronto entre lógica e epistemologia nesse tema. Isso se deve ao fato de que podemos ter doxa e episteme, ou seja, opinião e conhecimento. Há inúmeras coisas que podemos não saber, mas que podemos formar uma opinião e acreditar nela. Quando pensamos em termos científicos, a opinião é um problema, porque dela parte inúmeros desvios e vieses, mas o fato concreto e inevitável é que ela existe e muito, mas muito mais presente em nossos quotidianos do que um conhecimento sintetizado e consagrado. Mais ainda, por vezes confundimos ambos, e assumimos opiniões com verdades. Aí, a porca torce o rabo.

Por essa razão, é possível ser ateu e agnóstico ao mesmo tempo, assim como é possível ser religioso e agnóstico também. Porque ainda que não saibamos se uma divindade existe ou não, podemos acreditar que sim ou que não, diante do que é possível ter de evidências. E, neste sentido, pouco importa se são tratados científicos ou evidências anedóticas. O que importa aqui é a sensação pessoal, um convencimento que se faz aos poucos ou uma experiência repentina.

E isso nos possibilita pensar em graduações de crença. Eu, assim como Huxley, posso ter um padrão de desconhecimento assumido, mas analisar a credibilidade de cada divindade que me é apresentada, bem como da lógica interna de seus aspectos, como as exigências que faz, a moralidade que sustenta e assim por diante. Religiões abraâmicas, por exemplo, são montanhas de contradições, e, para que eu volte a crer nelas, precisarei de evidências muito fortes. Já crenças budistas ou religiões com deuses mais difusos tem uma coerência interna mais sofisticada e com menos argumentos autoritários, o que é um convite para uma aceitação maior. Aplicados a um percentual de crença, dá para dizer que os primeiros se aproximam de zero, enquanto os segundos são mais dignos de consideração, até porque eles são desnecessários na construção da realidade. E é isso: quanto mais necessário um deus, menos crível ele é.

Repetindo algo que já falei por esses textos, a partir do momento que eu coloquei o ceticismo ao serviço do meu conhecimento, percebi que tudo se acomodava melhor sem divindades. Mortes ocorrem porque doenças existem, e não porque Deus quer. Terremotos devastam porque são desequilíbrios naturais, e não castigos impostos para populações inteiras. As espécies se transformam porque sofrem pressões seletivas, e não pelo capricho da deidade de plantão. Tudo fica mais coerente, mais factível, mais compreensível sem a explicação divina. Mesmo que não se consiga obter esclarecimentos pela via da ciência, colocar a divindade na lacuna não ajuda nada, só cria uma narrativa que continua sem comprovação.

No final das contas, tendo a acreditar (vejam vocês) que somos todos agnósticos. Costumam dizer que não existe ateu em um avião caindo, assim como um religioso enfartando procura um hospital, e não um templo. A contradição está em apelar para uma entidade em que não se acredita, ou em desprezá-la no momento em que mais se precisa. Desculpem-me ambos, mas em momentos de desespero não há espaço nem para a racionalidade, nem para a fé. Há aquilo que temos de melhor ao nosso alcance.

É a maneira como penso, e não quero ofender ninguém com isso. Assim como diante da novidade de um café já moído e pronto para a água, também tenho muita dificuldade em absorver coisas que não posso experimentar. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Textinho rápido sobre o tema, interessante por se tratar da primeira utilização do termo.

HUXLEY, Thomas. Agnosticismo. Blumenau: Kindle, 2023. E-book.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o diferenciado Juventus e a inexplicável força da identidade

(Bairrismo é legal? Depende)

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”

Fernando Pessoa, sob o heterônimo Alberto Caeiro

 

Olá!

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Meus filhos nasceram na Aclimação. A patroa não é de São Paulo, nasceu na mesma São Caetano que meu filho mais velho, falecido ainda criança. Do pessoal do serviço, um é do Tatuapé e outra de Itaquera, os outros são de outras cidades. Nenhum deles tece loas ao lugar onde nasceu, nem mesmo onde mora. Não é costume nesta cidade arrotar com gosto ser do Cambuci, ou da Vila Penteado, ou ainda do Rio Pequeno. Essas coisas passam praticamente batidas, e você convive anos com uma pessoa sem saber bem de onde ela é. Mas eu sou da Mooca. Eu nasci na Mooca, na Rua Sebastião Preto, e tenho minha certidão no cartório que fica bem na frente da igreja do Bom Conselho. A parentegem estava lá em peso: a Tia Maria morava na Rua do Acre; o Tio Chico, na Rua Javari, e o Tio Rafa na Capitães-Mores. Já meu avô percorreu o bairro todo com sua casa e com sua oficina: Tamarataca, Madre de Deus, Caetano Pinto, Campineiros e terminando seus dias na Rua do Oratório, onde alugava o salão da Kathy, uma senhora alemã que mandava pacotes de doces divinos, melados a ponto de dar diabetes mentais. Sou da Mooca, e todo mundo que lá nasceu ou mora proclama o fato a alta voz.

Alguns moradores de Santa Cecília, Vila Madalena e Ipiranga se ufanam dos bairros em que nasceram. Um pouco pela tradição, muito pelo que representam, são lugares que carregam uma espécie de distintivo dos que lá habitam, como os apartamentos com chão de tacos, os becos grafitados e a vista para o Museu, respectivamente. Mas quando pensamos em São Paulo, e disso falamos de mais de doze milhões de habitantes, nenhum bairro é mais bairrista do que a Mooca.

Esse é o tipo de fenômeno que é difícil de explicar. De fato, a Mooca é um bairro ainda aprazível, com bons remanescentes dos seus tempos operários, como as casinhas da Rua do Hipódromo, as insistentes fábricas ao longo da ferrovia, os casarões da Paes de Barros e até mesmo dos cortiços da parte baixa, para onde a maior parte dos imigrantes acorreu em sua chegada ao Brasil. Mas que não é assim tão diferente de outros bairros para virar um distintivo tão peculiar.

A Mooca tem suas personalidades, seus edifícios, seus abundantes restaurantes, cantinas, pizzarias, trattorias, botecos, suas mazelas e suas venturas. Tudo isso há em outros lugares, mas a Mooca tem um time. A Mooca tem o Juventus.

A história do Juventus se mistura à própria história do bairro, e é um pequeno compêndio do que é a Mooca. A origem italiana dos proprietários do Cotonifício Crespi é o único ponto em comum com os operários que por lá fundaram um time com o beneplácito de seus patrões. Ainda hoje quem passa pelas bandas do pequeno estádio da Rua Javari vê os testemunhos das pequenas casinhas que ladeavam a imensa fábrica têxtil. A indústria, as casas e o campo eram o resumo da vida de uma população muito pobre, que ainda trabalhava praticamente sem legislação trabalhista e pouca proteção prática em serviços extenuantes e perigosos. Lembro de muitos dos meus velhos parentes que exibiam cicatrizes com um certo orgulho, porque eram, na verdade, sinais de sobrevivência, um certo heroísmo frente àqueles que sucumbiram, de quem contam fartas histórias. Isso ocorria em todos os bairros operários, mas a Mooca tinha essa espécie de comunhão de comunidades que a tornou singular.

O campo do cotonifício virou um tipo de refúgio único de lazer para onde desembocavam todos esses trabalhadores, e lá criaram um movimento forte de identidade. Havia outros campos, é verdade, mas o clube resultante, uma fusão dos times de Turim, com as cores de um e o nome do outro, virou um amálgama para as classes sociais que giravam em torno da fábrica. Afinal de contas, a Mooca é lembrada como bairro de italianos, mas lá havia os espanhóis, os armênios, os portugueses, os gregos, os alemães, os russos, os libaneses. Tudo isso porque lá estava a Hospedaria dos Imigrantes, hoje transformada em espaço cultural, primeiro abrigo daqueles que vinham do mundo todo para tentar sua sorte nos trópicos. Não encontraram o bairro vazio, entretanto, já que lá havia várias comunidades afrodescendentes que cercavam o centro e os nordestinos que habitavam cortiços “especializados” na beira do Tamanduateí.

Isso tem a ver com criação de identidades. Uma boa parte vem da nossa busca por distintivos pessoais, e outra por símbolos que nos moldam como somos. Um mooquense dificilmente é torcedor do Juventus como time principal, mas também dificilmente deixa de adotá-lo como uma referência à sua procedência. E por quê?

É que não somos unívocos. Temos uma identidade genética, mas também temos uma identidade adquirida. Da primeira, em geral não temos muito o que mudar, porque está em nossa constituição física, com hereditariedades imperativas. É aquela história de que não adianta comer fermento; o baixinho é baixinho e pronto. Já com relação ao ambiente que nos cerca, ele nos torna boa parte do que somos porque é desejável, ou mesmo necessário, ter conformidade. E isso faz com que tenhamos orgulho ou vergonha de acordo com que o consenso estabelece.

Quando você vem no domingo de manhã para a região da Javari, vê uma multidão de grená se encaminhando para o antiquíssimo estádio, com sua área coberta sui generis e arquibancada em concreto armado. É uma estrutura simples, que os apaixonados não querem modificar de jeito algum, embora fosse desejável que se tornasse mais hodierno, caso se queira evolução. Mas as faixas da torcida dizem “ódio eterno ao futebol moderno”, não porque não se queira que o time cresça, mas porque é o grande catalisador dessa identidade. É muito diferente estar lá, porque os adversários não são chamados para a briga. Pelo contrário até, nos botequins próximos juventinos se misturam a nacionalinos, lusos, interioranos dos mais diferentes locais e bebem seus gorós antes e depois das contendas, sem que isso vire um campo de batalha como acontece com torcidas maiores, e sem que isso represente ser menos aguerrido. É um diferencial que demonstra hospitalidade do clube e do bairro, e isso agrega. Os frequentadores observam isso e tomam como valor, de modo a arraigar mais e mais tal comportamento.

A torcida é como uma tropa de um exército de Brancaleone, aquele de quem pouco se espera, mas que muito entrega. O apelido do Juventus é Moleque Travesso não à toa. Não foi uma mascote forçada, como os leões espalhados Brasil afora, mas ganho pela torcida e pela imprensa, por aprontar suas artes contra os grandes e perturbar sua paz, principalmente no seu grund da Rua Paulo, a Rua Javari, o pequenino campo do cotonifício.

Minha identificação com a Mooca não poderia ser mais vinculada ao Juventus do que já é. Da rua em que nasci, são dez minutos a pé até o clube social, construído no antigo varjão conhecido como Tchipum. Já do campo, duas casas à direita e se chega ao lar do Zio Chico e da prima Nélide, onde volta e meia caem bolas chutadas pelos beques fazendeiros. Nos últimos tempos, enquanto o pessoal procurava lugares cada vez mais longe para estacionar, eu colocava o possante espertamente na porta da garagem da prima, quase zombeteiro, para depois pegar um macarrão com polpetta com a veneranda parenta. É certamente o estádio onde eu mais assisti futebol na vida, favorecido por todos esses fatores.

Dizem que a Mooca tem um time, mas também o Juventus tem um bairro, fenômeno raro nas terras de Pindorama. Um tem orgulho do outro, mesmo nos momentos de baixa, porque não é preciso sair da Mooca para encontrar o símbolo de guerra daquela gente. O Corinthians não é do Tatuapé, o Palmeiras não é da Água Branca, o São Paulo não é do Morumbi. Eles são da cidade, do país, quiçá do mundo, mas só o Juventus é da Mooca, e ela, coincidência ou não, é o bairro mais bairrista de São Paulo.

Há um porém oculto, que precisa ser tratado com cuidado. O bairrismo é uma aldeia que fica no meio do caminho que leva à xenofobia, e a estrada se alarga após passar pelo seu acesso. Isso porque o sentimento de identidade, por si só, não é ruim. O problema é quando adquirimos a sensação de que ninguém que vem de fora é digno de compartilhar o nosso espaço. A Mooca, assim como todo o Brasil, foi construída não só pelos imigrantes italianos, mas pelos índios que lá já estavam e pelos negros que foram trazidos na marra, assim como por outros europeus e pelos asiáticos, especialmente do Oriente Médio. Quem vem de fora, não percebe tanta diferença com relação a outros bairros tradicionais, então é na história e nas tradições que a Mooca se torna quem é. E ela se escreve nos ciclos de gente que vem e que vai, comprovando o dinamismo da existência humana, seja no plano individual, seja no âmbito das coletividades. Se o bairrismo do mooquense se mantiver nos limites identitários, teremos um povo que se orgulha, que é farrista, que fala alto e gosta de onde vive, que cuida de suas ruas e de sua vizinhança; se passar disso, será perdida toda aura de empatia que desemboca até mesmo no Juventus.

Tomados esses cuidados, e tirando o discurso passional tão típico dos italianos, algumas coisas nos fazem desconfiar dos elementos motivadores para o bairrismo deste local. A Mooca é muito antiga, com seus primeiros registros históricos surgindo apenas dois anos após a fundação de São Paulo. É povoada de fábricas e suas consequentes vilas operárias, o que dá um certo fechamento nas comunidades que se formam. Esse é um fato que se deu em outros bairros também, como o Brás e o Bom Retiro, mas, por diferentes motivos, as coletividades desses locais foram se esgarçando, modificando e dispersando, com remanescentes diferentes daqueles que lá estavam no processo de industrialização. Na Mooca, que se manteve fabril por mais tempo, e que não teve nenhum evento causador de diásporas (como a construção do metrô ou de alguma rodoviária inútil), as mesmas comunidades se mantiveram mais intocadas, e, com isso, aquele clima mais familiar, de todo mundo se conhecer há gerações. Além disso, e mais uma vez pela origem industrial do bairro, foi aqui que movimentos anarquistas e sindicalistas chegaram com mais força, o que reforça o sentimento de pertencimento que nasceu das células e se espraiou para os botequins e praças; para os pontos de convívio, em suma – indo parar no futebolzinho sagrado do fim de semana. E isso causa a sensação de um mundo à parte, de cidade dentro da cidade. Quem é da Mooca se considera mooquense antes de ser paulistano. Para os mais exaltados, antes de ser brasileiro. O Moleque subsiste porque agrega todos esses valores, é a bandeira grená que esse povo carrega para gritar “orra, meu” pela cidade toda.

Inclusive eu. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Publicação oficial patrocinada pelo clube:

AGARELLI, Ângelo; GALLUPPO, Fernando; ROMANO NETTO, Vicente. Glórias de um Moleque Travesso. São Paulo: BB Editora, 2012.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Sobre ídolos cunhados pela história e pelas estórias (ou: a tragédia grega está na base do nosso pensamento até hoje)

(O que explica uma reverência que cresce mesmo quando se distancia?)

Eu não tenho ídolos. Tenho admiração por trabalho, dedicação e competência.

Ayrton Senna

Olá!

Começo a escrever este texto no dia 01 de maio, feriado do dia do trabalho, e vou prosseguindo sem pressa. Bem nesse dia, estranhamente, digito nos intervalos do serviço da casa, que precisa de um tapa, em petição de miséria que se encontra. A patroa vai flanando com o aspirador, impossibilitando música e podcasts, então vou pelos cômodos com a minha cabeça e meu pano de chão mesmo. Isso é um rastilho de pólvora para meus pensamentos, e o que me vem à mente são as notícias dos esportes que vi enquanto preparava o santo cafezinho diário: neste dia, faz 31 anos da morte de Ayrton Senna. Não é uma data redonda, e vai cada vez mais longe, mas continua a se repetir o fenômeno da rememoração, muitas vezes assoberbada. Quem comenta as notícias são pessoas que não viram o piloto correr, mas o estatuto de herói nacional se mantém e retroalimenta. Eu já falei três vezes neste espaço sobre o Senna (uma, duas, três), todas as três impopulares, mas ainda preciso fazer uma análise mais definitiva, não sobre minhas opiniões desta vez, mas de uma análise do fenômeno. E depois chega*.

A questão da idolatria está diretamente ligada ao imaginário. Ela é abominada pelas religiões abraâmicas porque estabelece uma concorrência com suas respectivas divindades e, segundo seus livros sagrados, deve ser condenada pesadamente, algumas vezes com a morte. Apesar disso, o impulso é humano e ela acaba sendo dirigida a outros objetos que não tenham necessariamente valor de substituição em relação a um deus, mas que tragam reserva sacralizada na mente das pessoas.

Precisamos de ídolos? Como espécie, não. A questão é que não somos seres somente naturais. O sistema de símbolos dos humanos é tão complexo que não há como isolar o que é da natureza do que é da cultura, de forma a fazer parte de nossa cadeia evolutiva. É da nossa natureza sermos culturais. E isso inclui todo um conjunto de significações que são extremamente intrincadas.

Uma dessas é a solidão. Não faz muito sentido que um ser humano viva sozinho. Fomos feitos como se fôssemos aquelas pinguelas que passam sobre os riachos. Cada tábua, vista sozinha, não faz o serviço. Mas colocadas lado a lado, com um elemento que as agregue (a corda), suportam um peso impensável para cada uma. Só que não somos feitos no mesmo molde, e é da natureza que sejamos diferentes entre si. Uma tábua é mais curta, outra mais larga, umas mais claras, outras mais escuras, mais espessas, mais leves. Quando vistos em grupo, sempre é possível ver uma dimensão coletiva e outra individual, com aquela velha observação de que o todo não é igual à soma das partes. Sendo assim, embora o todo possa parecer orgânico, ele tem aspectos que dependem das partes. Há os mais fortes, os mais espertos, os mais inteligentes; em suma, há os que se destacam em necessidades chaves. E esses acabam por se tornar guias que resolvem problemas não só de si, mas da comunidade como um todo. Catalisam propósitos e expectativas, ajudando a criar a liga que mantém uma sociedade unida.

Não é de se estranhar que, dados os papeis de liderança que ocorrem nas sociedades, esses destacados acabem por se tornar mais do que efetivamente são. A inteligência é a sua força, a esperteza é a sua inteligência, a força é a sua esperteza, tudo se misturando e uma coisa alimentando a outra, até o ponto em que se tornam únicos. Às virtudes que já tem, passam a ser juntadas outras que não lhe compõem, mas, dada sua posição já especial, a eles é agregado ainda mais. Projetam-se-lhes qualidades inerentes ao grupo, de modo a criar um símbolo ainda mais enriquecido.

Acontece que, mesmo revestidos de uma aura de invencibilidade, também eles se vão, mas deixam como seu legado um escudo virtual ao qual as pessoas ainda recorrem, como se pudessem se proteger das mazelas para quem eram dadas soluções. Qualquer objeto que simbolize esses eleitos ganha um lugar sagrado, como se fossem eles mesmos. São sacralizados e passam a significar o mesmo que o próprio eleito. São os ídolos.

Mas os ídolos não se aplicam unicamente a divindades? Não são objetos que são tratados como se eles mesmos fossem deuses? Essa seria sua origem, mas não seu uso estendido. Não é difícil de você ter um quadro na parede com o escrete do último título do seu time, ou uma foto de corpo inteiro do seu cultuado teen. Eles não são o time, nem o cantor, mas você os trata com a mesmíssima reverência. Experimente rasgar a bandeira de uma equipe no meio de sua torcida. Tente queimar o poster do rapazola bonitão que canta à beça após o autotune.

E onde tudo isso se processa? Óbvio, nas nossas mentes. Por isso, não é preciso nem mesmo que o ídolo-objeto esteja presente, bastando que esteja na lembrança. Sendo esta uma coisa sorrateira, seletiva, essa imagem mental pode e costuma ser muito diferente do que o original realmente é. Isso acontece porque precisamos desesperadamente de algo que nos proteja e alguém em que devemos nos espelhar, o que não são coisas distintas. Ter como paradigma a personificação da perfeição humana faz com que tenhamos uma espécie de escudo que nos protege não somente de pedras, mas da mediocridade. Que coisa péssima essa, ser medíocre, igual aos outros. Ter ídolos não deixa de falar sobre nós mesmos. Inclusive como povo.

É razoável supor que esse fenômeno se repita pelo mundo, já que o acontecimento comunitário é semelhante nos quatro cantos, mesmo que alguns povos sejam mais individualistas que os outros. Ocorre que no terceiro mundo temos um leque bem mais fechado de opções para escolhermos nossos ídolos, pelo óbvio motivo de estarmos na condição de povos dominados por séculos. Enquanto Descartes e Bacon disputavam a primazia do eixo epistemológico, os índios das Américas tentavam dar um jeito de sobreviver ao invasor europeu, com pouca chance de sucesso, e desde então a história se repete, algumas vezes de maneira mais incruenta, mas ainda assim em uma linha vertical de subordinação. Com isso, é raro obter glórias no campo da filosofia, da ciência, da tecnologia. Restam poucas opções, mais abstratas, que podem ter um valor simbólico maior que o concreto, como a arte e o esporte, mas a primeira ainda tem um viés de exotismo. Pensem, por exemplo, na filarmônica de Berlim executando um samba. É impossível de acontecer? Não, mas não deixará de ser uma incursão pelos campos do extravagante. A música clássica por excelência não é essa, porque quem diz o que é clássico não somos nós, dos pobres trópicos.

Com o esporte, é diferente. Quando entramos em campo, o jogo é disputado em uma regra única, seja na mais culta Paris, na mais rica Nova Iorque, na mais antiga Roma, no mais miserável morro do Rio de Janeiro. Ali, sob igualdade de condições**, o melhor (ao menos no imaginário) não tem nação; é bom quem é bom.

Claramente pensamos em futebol quando falamos de esporte em Ilha de Vera Cruz, o nosso preferido e mais repleto de glórias. Mas houve um tempo em que gostávamos de outras coisas, como automobilismo. 

Mas como, se é um esporte tão inacessível? Há alguns elementos para desconfiar. O primeiro é que carro, no Brasil, é sinônimo de status. Alguns fatos demonstram isso. Aqueles cara da sua rua que gasta um Iguaçu de água lavando seu possante não consegue nem secar o banheiro depois do banho. E fica horas com sabão para isso, espuma para aquilo, cera para o outro, faltando só o Cepacol para enxaguar os cantinhos. Vai dizer que você nunca viu isso?

Algumas colocações simplistas fazem deduzir que há quem gaste mais com o carro do que com a casa. Óbvio, moradia no Brasil é caríssima, apesar da imensidão de terras. Então a cidadela fica erguida na possibilidade: a Goleta quadrada com o som ocupando todo o porta-malas. Brasileiro gosta de carro porque é nele que dá para se sentir representado e ganhar algum status. Cada vez menos, mas ainda dá.

Mas, para além disso, o Brasil produziu pilotos talentosos de fato, com o “agravante” de que claramente aqui nós entramos em um campo que não é nosso. A tal Goleta não faz frente ao mais popular dos carros japoneses, ou à mais humilde jabiraca ianque, então sentamos nos bancos externos e provamos que nisso não há melhores do que nós, os bravos tupiniquins.

E aqui vamos chegar em Senna. Houve grandes pilotos brasileiros antes e depois. Evidentemente, Fittipaldi e Piquet representam cinco títulos mundiais, o que pavimentou o asfalto onde Senna se construiu no imaginário popular. Mas o primeiro tentou arregimentar um time nacional que não atingiu os maiores objetivos, e o segundo não se dava com a bajulação da imprensa, a ponte existente com o grande público. E também os “fracassos” pósteros ajudaram a catalisar a imagem de ser único. Coloco a palavra entre aspas porque é muito difícil delimitar o que é um fracasso, quando o simples fato de se chegar à Fórmula 1 já é um distintivo raríssimo, uma prova de capacidade absolutamente diferenciada. Mas, sejamos concretos, não há como retirar o motivador objetivo de que o último título conquistado por um piloto do país veio pelas mãos do ora analisado piloto.

Já ouvi muita gente falar que toda a reverência em torno do seu nome tem como motor a ausência de outros ídolos no momento de sua atuação. A má fase do futebol, a decadência do basquete e a ainda vindoura glorificação do vôlei teriam moldado o único eleito possível em uma fase histórica de muita incerteza política: a frustração com a redemocratização, o fracasso dos planos econômicos, o presidente eleito impedido, a inflação difícil de controlar***, o começo da desindustrialização, e até incertezas globais com a queda do muro de Berlim traziam uma completa ausência de perspectiva que, no plano prático, eram favoráveis ao desvio no olhar para alguém que era sinônimo de sucesso. Isso explica o impacto do instante, mas a permanência da idolatria precisa ser explicada de outra forma.

A mídia ajuda. Não há nenhuma transmissão do automobilismo na TV aberta em que não haja ao menos uma citação ao nome do piloto. Em datas como o primeiro de maio, ou nos GP’s de Mônaco e Japão, a quantidade se multiplica, e há séries, livros, reportagens especiais, e isso ajuda a retroalimentar o fenômeno. Como a maioria são panegíricos que miram exatamente o mito, e não o piloto, extraordinário, porém humano, o efeito é o de dar permanência na narrativa sem o salutar benefício do afastamento histórico. 

A melhor explicação não deixa de ser óbvia a quem tem um mínimo de conhecimento histórico. A história real, somada às hipérboles das narrativas pessoais, constituem o melhor desenho da tragédia grega. Isso não é uma mero papo de filósofo que quer resgatar a qualidade Apolo-Dioniso decantada por Nietzsche, mas uma constatação advinda do substrato da cultura ocidental. O herói trágico grego é aquele que está lá no fundo da consciência coletiva do nosso modelo de vida, onde a dor depura e justifica a existência de toda uma comunidade. O sofrimento do ídolo é o sofrimento de todos, ele carrega as dores de todos. Não preciso falar do paradigma sempre pronto das novelas da noite, mas é possível ver como a mesma estrutura está presente em todas as narrativas fundantes da nossa história e cultura, com poucas exceções. O próprio Cristianismo ganhou muita força por conta da dimensão trágica de seu maior personagem, que enfrenta o sistema político e religioso com uma proposta pacifista incomum****, e que recebe um fim trágico, uma entrega impossível para seres humanos que não estão no panteão divinizado dos ídolos, que traz um sentimento maior do que as glórias de uma vitória, uma comoção comum que coloca todos em pé de igualdade no enfrentamento não de um inimigo, mas da própria morte. Isso está na base da civilização ocidental.

Por isso que a morte de Senna tem tanto de mítico, de legendário e de catártico. Sua morte é quase sacrificial: o herói do terceiro mundo que enfrenta a tudo e a todos, mas que vence pela mobilização que traz e pela memória que perpetua. E nisso vem aquilo que ele não entregou, mas que potencializa o roteiro ao ponto de se chegar ao limite catártico. Vamos fazer uma mesclagem do que é a história real e indubitável com o que é ao menos controverso.

Um dos melhores pilotos de todos os tempos morre após sofrer um acidente grave em um circuito italiano. O regulamento foi modificado com relação ao ano anterior para conter a alta taxa de automatização dos bólidos, e especialmente para impedir que esse piloto tivesse absoluto domínio do campeonato, uma vez que se somariam o melhor piloto com o melhor carro, tornando a direção muito perigosa. Conhecido por inúmeras perseguições em sua carreira, Senna foi provavelmente vítima de uma barra de direção displicentemente soldada que perfurou sua viseira e penetrou em sua cabeça, além da quebra da base do crânio ocasionada pela súbita desaceleração e pelo choque. Embora seja provável que sua morte tenha ocorrido ainda no autódromo, o socorro prestado após incontáveis minutos não tinha o que fazer, dada a dinâmica dos eventos. Apesar da tragédia, a corrida continuou até seu final porque os promotores locais resolveram desrespeitar a lei italiana que estabelece que a ocorrência de morte deveria interromper imediatamente a corrida, mesmo sendo impossível detectar a morte in loco, pela falta de equipamentos de verificação da atividade cerebral. Sua carreira sempre foi marcada por muita competitividade e títulos seguidos, embora haja inúmeros prejuízos por conta de articulações políticas, dado seu impulso em lutar contra tudo e contra todos, o que explica a conspiração que foi levantada contra seu domínio, o que o torna admirado por todos os apreciadores do esporte.

Todas as informações coloridas estão fora do âmbito comprobatório, podendo ser meras suspeitas ou enganos deslavados, mas são muito mais aderentes ao imaginário e transmitidas através de recursos visuais, de registros inspirados nas histórias e, especialmente, pelas narrativas apaixonadas daqueles que não aceitavam que o automobilismo é um esporte perigoso, no qual o fator morte está mais intimamente inserido do que na prática de um jogo de bilhar, provavelmente. Um esporte perigoso para todos, inclusive para os melhores. E isso traz até mesmo mais elementos para elevar a veneração.

O roteiro, como pode se ver na mescla anterior, é composto por todos os elementos que estão na tragédia grega: a exacerbação dos sentimentos, a desmesura na missão do herói, o confronto com a ordem preestabelecida, o acontecimento imprevisível, a conclusão dramática, a injustiça do desfecho, a impossibilidade de controle dos eventos, a maldade inerente ao homem, a piedade dos circunstantes, o ato de coragem, o confronto com a realidade, a existência dos elevados e sua condição de ser humano trazendo o balanço entre a divindade e humanidade. Nossa cultura e tradições são baseadas nesse script, repito, e, por isso mesmo, o destino (ou seja lá o que) traçou uma história perfeita para a permanência da memória. Mas só o que não está colorido é conjunto fático, e talvez perca força como símbolo. Por isso a difícil aceitação de que sua morte foi mais comum do que gostaríamos, mais provável, mais próxima a nós. E é isso que baseia a MINHA admiração por ele. É um homem como eu, como você e nossos circunstantes, mas que era melhor que nós em um determinado aspecto. É nesse aspecto que eu o tenho em alta conta, e tudo o mais é só estória.

Por fim, o incômodo que isso me causa é constatar como essas histórias são tão cegantes quanto os faróis altos que cruzamos nas estradinhas vicinais. As pessoas não desconfiam de feitos extraordinários e isso comprova a falta de uso de seu espírito crítico, e isso vai desembocar em outros aspectos de suas vidas pessoais, que acabam por influenciar em nossa vida social. Sem querer fazer uma bola de neve, é dessa mesma falta de criticidade que surgem fenômenos antivax, criacionismos, terras planas, e aí o caldo entorna, porque esbarram na vida coletiva.

Eu não quero definitivamente ser incluído nas fileiras de “haters do Senna”, porque eu não sou. Comprei um livro que é um calhamaço sobre sua vida porque tenho admiração pelo piloto, que é efetivamente um dos melhores de todos os tempos. É chato e repetitivo falar isso todas as vezes que abordo o assunto, e é a mesma coisa com qualquer um que o faça, porque Senna é um símbolo nacional mais respeitado do que a própria bandeira. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Flávio Gomes é um dos maiores críticos à visão sobre-humana que se atribui a Ayrton Senna. É uma autoridade no assunto, testemunha ocular daqueles tempos e daquele fato, e pode nos dar um pouco de terra nesses tempos de cabeças avoadas. Leiam seus relatos, especialmente os que abordam o piloto. 

GOMES, Flávio. Ímola, 1994: a Trajetória de um Repórter até o Acidente que Chocou o Mundo. São Paulo: Gulliver, 2021.


* Acho.

** Claro que as condições materiais influenciam inclusive a preparação de atletas, mas é um fato que o futebol iguala níveis sociais.  

*** O plano real é de 01 de julho de 1994, dois meses após a morte de Senna.

**** Há controvérsias? Há, mas é inegável que o que Jesus dizia divergia muito da visão messiânica que se tinha à época, de partir para o pau contra o inimigo romano.


PS: Tenho colocado algumas imagens geradas por IA, mas não tô curtindo muito, não. Há um descompasso bem grande entre o que eu imagino e o que é gerado. Mas vamos tentando.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Sem sustos com o princípio da identidade, ou Pequeno guia das grandes falácias – 75º tomo: o homem mascarado (substituição ilícita de idênticos)

(Não é só na Filosofia que somos impactados por raciocínios esquisitos, mas tem alguns deles que realmente nos colocam na encruzilhada)

“A pior forma de desigualdade é tentar igualar coisas desiguais”

Aristóteles

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Neste ano, faz vinte anos que eu comecei a estudar Filosofia formalmente. Eu vinha me digladiando com a contradição gosto vs. utilidade por muito tempo, mais precisamente desde que cheguei àquele famoso dilema da juventude em que tentamos optar por uma carreira. É um momento em que somos colocados diante do futuro com uma seriedade muito pesada, e é fácil à beça de se enganar. Por um lado, é momento de ser idealista, para que não nos tornemos autômatos pragmáticos, que não usarão seus conhecimentos para melhorar o patrimônio cultural da humanidade, mas só para fazer dinheiro. Por outro, é preciso mentalizar que há um mundo prático com poucas perspectivas de mudanças nas nossas próprias gerações, e, com isso, é preciso ter consciência da realidade. Filosofia fica num canto bem guardado no porão nesse quesito, já que quase ninguém ganha a vida com ela, a não ser como professor, o que não empolga no Brasil de hoje. Para chegar a ser um conferencista, como os famosos, há que se ralar muito antes. Falo de filósofos e mestres de verdade.

Quando fui à faculdade de Filosofia, já estava com a vida resolvida dentro do possível, então não tinha essa encruzilhada diante de mim, retirando completamente o componente angústia. Queria essencialmente melhorar meu desempenho como professor e, óbvio, aprender mais sobre a área, uma de minhas predileções. E lá fui eu para ser vovô da sala.

Quem acha que fazer Filosofia passa por vestir uma túnica grega e consumir algumas ervas apropriadas para abrir a mente está redondamente enganado. São quilos e mais quilos de teoria muito coligada à própria história da humanidade, passando de maneira muito próxima às transformações de usos e costumes, muitas vezes acompanhando o pensamento geral da galera, algumas o influenciando. Na esteira disso, vamos assistindo sistematizações cada vez mais intrincadas, até chegar à conclusão que não basta revisitar fatos e pensamentos, mas procurar regras que procurem delimitar a maneira com a qual a cabeça opera, além de produzir padronizações que permitam um mínimo de intersecções entre os diferentes modos de raciocínio. Viram como a barra é bem mais pesada?

A questão, então, recairá para o ramo da Lógica, inevitavelmente. Não deveria me causar susto, vez que sou oriundo academicamente da área de Informática, e é comum destrincharmos alguns quilômetros de tabelas-verdade, tudo isso explorando um sem-fim de articulações entre operadores lógicos. Quem sabe, sabe; são aquelas frases do tipo “isso E aquilo”, “isso OU aquilo”, “NÃO isso, NÃO aquilo” e assim por diante, com cada uma dessas proposições ganhando um valor de verdade – verdadeiro ou falso.

Entretanto, quando estudamos lógica no âmbito da Informática, as coisas são muito mais objetivas. Ninguém está preocupado porque a resolução de uma proposição é verdadeira ou falsa, mas simplesmente com a resposta final, o que não é nem cogitado pela Filosofia. Ali, cada passinho tem que ser decifrado como o enigma da esfinge, e isso faz com que desçamos às leis mais fundamentais do pensamento, o que nem sempre é intuitivo ou palatável à primeira vista. 

A mais remota tentativa de sistematização do conhecimento através da Lógica vem de Aristóteles, com seus famosos princípios racionais. E o primeiro dos seus axiomas é desafiador. Em uma das aulas, logo no começo, estava lá no quadro negro a expressão, traçada pelas linhas ameaçadoras do mestre da disciplina:

A=A

Quando você afirma para um estudante que esse é um dos fundamentos mais básicos de toda a lógica, infunde nele a impressão de que entrou numa roubada. A coisa parece tão óbvia que dá a entender que há algo por trás, como uma pegadinha, ou um mistério, que nunca chegaremos a compreender, e é quase isso mesmo. Se nos deixarmos levar para aparência óbvia, acharemos essa premissa fundamental uma sonora bobagem, o que ela não é.


O princípio em si é muito simples: qualquer objeto é igual a si mesmo. Para que isso faça algum sentido para além do óbvio*, é preciso saber que a identidade é a garantia de que esse objeto é único dentre tantos outros. “Identidade”, aliás, tem a origem etimológica exatamente nessa característica, já que o latim identitas significa a qualidade de ser o mesmo, como usamos no termo “idem”. Tem um pouco a ver com a eterna luta entre essência e existência, porque, enquanto a essência diz respeito a tudo o que há de comum entre os objetos de uma mesma espécie, e os faz ser o que são, a existência individualiza e concretiza uma determinada essência. Imagine, por exemplo, que eu olhe da sacada uma menina na rua andando com seu cachorro. Pelo fato de eu simplesmente dizer esse retrato, já é possível que você, persistente leitor, desenhe um quadro semelhante em sua mente, por ter conhecimento do que é essencial dos componentes que mencionei. Mas, se eu não der detalhes muito profundos, ou não apresentar uma fotografia da situação, você vai criar mentalmente uma imagem daquilo que você tem como experiência, e não da cena que eu citei com exatidão. Você pensará em uma menina, um cachorro, uma rua e, talvez, um ponto de visada vindo do alto, mas não A menina, O cachorro e A rua que eu vi. Eles são únicos, possuem características únicas e formam um quadro único. Se são assim, é porque são únicos e possuidores de uma identidade, que os diferencia de todos os demais que estão em suas respectivas categorias.

A identidade, portanto, não é só um documento ao qual damos o nome genérico de RG. Como estamos no universo dos humanos, existe toda uma série de simbolismos que representam as coisas e que as carregam de significados. A menina do exemplo tem um nome, que, isoladamente, não significa nada, mas, uma vez atribuído a ela, passa a representá-la como se fosse ela própria. Ela não está fisicamente na sua certidão de nascimento, mas simbolicamente, seja no plano da linguagem – ao lhe atribuir um substantivo próprio que tem alguma etimologia, seja no plano de representação. Quando o cartorário baixou seu assento no livro de registros, ela passou a contar para as estatísticas governamentais, para o direito constituído, para a sociedade. Como é impossível que ela esteja presente concretamente a cada vez que um censo for contar a população do país, seu nome passa a representar ela mesma, a fazer parte da sua identidade.

O mesmo acontece quando queremos descrever os objetos e trazer características que lhe são próprias. Vamos deixar a moçoila sossegada e analisar seu cão. Além do nome, ele tem atributos que, somados, o tornam único. Ele tem uma raça específica, o que já ajuda, mas ainda é muito genérico. Ele tem um tipo de pelo, tem um peso, tem uma altura, talvez tenha alguma doencinha, tem preferências de ração, bebe uma quantidade X de água, passeia porque curte ou porque precisa fazer necessidades. Tem um nome também e, quem sabe, um RGA, e tem uma cuidadora, que também ela tem em série de atributos semelhantes. A soma de todas essas características vai tornando sua descrição mais e mais específica, individualizante, identificante.

Ainda assim, estamos nos atendo a aspectos que são objetivos e concretos, mas o ser humano tem seu grande diferenciador entre as demais espécies por operar no plano simbólico, e isso eleva a questão da identidade ao infinito. A rua por onde a cena transcorre tem um nome e suas características, mas pode levar consigo uma pilha de significados que fogem ao concreto. A rua pode se aquela em que o avô tomou um tombo, a rua em que começamos a namorar, a rua em que eu nasci, a rua em que a menina leva o cachorro para passear. Em todos esses casos, a rua muda de seu sentido estrito, de ser uma passagem entre as casas, e vai ganhando um elemento de exclusividade para cada um que nela trafega. Assim, os próprios afetos dão sentido e significado para a rua, e lá nos recônditos de nossas mentes e intimidades sua identidade fica diferente, porém ainda voltada para aquele mesmíssimo cenário: a rua A. Se A=A, então...

A=Rua Amparo

A=rua do CEP 03151-060

A=rua que liga a Anhaia Melo à Tomaz Izzo

A=rua em que o vovô caiu um tombo

A=rua onde a menina leva o cachorro para passear

A=rua da minha infância

A=rua que me traz lembranças boas.

Da mais específica à mais pessoal, todas as descrições dizem respeito à rua A, à concreção em existência da essência de uma rua. 

Há ainda mais um aspecto a ser elaborado. O fundamento mais primitivo do princípio da identidade é dado por Parmênides, de quem já falei em vários pontos deste espaço, mas especialmente aqui. Ele traz, em sua fórmula metafísica, uma redução igualmente confusa para um olhar desapercebido: tudo o que é, é, e não pode ser que não seja; tudo o que não é, não é, e não pode ser que seja. Embora seja possível enxergar aqui também a fórmula da identidade, essa mera frase nos carrega mais informações sobre a realidade própria. Ainda que possamos discorrer sobre totalidades semelhantes à que nos ensinaram Anaximandro, Espinoza e outros filósofos, o fato é que o universo se apresenta a nós por uma dialética de presença e ausência. Em um sentido bastante estrito, tudo aquilo que não sou eu, é não-eu. Tudo aquilo que não é ser, é não-ser. Isso parece se reproduzir até mesmo no plano atômico, onde aquilo que não é matéria, é vácuo,  é nada.

Notam como o A=A ganhou muito mais significado? Não à toa, esse princípio foi pegando mais e mais sofisticação à medida que o tempo passou. Leibniz, filósofo alemão do século XVII, é um dos grandes pioneiros da ideia de trazer as regras do pensamento a formulações lógico-matemáticas. Como se sabe, a Matemática procura reduzir a realidade a fórmulas, e isso é muito útil em inúmeras aplicações científicas.  Entretanto, é preciso ter um contexto exato sobre a aplicabilidade que se quer atingir. Em um exemplo bem simples, ao término de uma corrida de Fórmula 1, diz-se que o vencedor fez uma média de 200 km/h. Isso não significa que ele tenha desempenhado essa velocidade de forma constante, mas que, em termos práticos, sua média foi menor do que a de seus competidores, e isso o tornou vencedor. Não é preciso medir a velocidade metro a metro para se chegar à conclusão de que ele foi mais rápido que os demais. 

Leibniz criou dois corolários para o princípio da identidade que são chamados de princípio da indiscernibilidade dos idênticos e identidade dos indiscerníveis, mais conhecidos como Lei de Leibniz, que são praticamente iguais, mas que podem contar alguma contestação em sua segunda declaração por conta da mecânica quântica, mas não vamos descer a esse ponto, tratando-os como sinônimos. Em resumo, estes princípios declaram que, se dois objetos possuem exatamente as mesmas propriedades, então eles são o mesmo objeto. Ou seja, não existe na natureza nenhum objeto que não possua alguma distinção do outro, por menor que seja. Assim, se batem todas as suas características, ele não é outro objeto; ele é exatamente ele mesmo.

Novamente aqui, o horizonte do óbvio parece tornar o princípio uma coisa inútil ou mistagógica, mas ele é simples de explicar, quando se tem em mente o princípio da identidade. Como sabemos, Leibniz foi, além de filósofo, um matemático de renome até mesmo superior. Ele foi um mestre do cálculo, e as suas aplicações em derivadas são utilizadas até hoje. Não precisamos entrar nos detalhes de seu funcionamento, mas o cálculo usa profusamente as substituições para possibilitar que se saia lá na frente. Esse princípio permite que atribuamos um valor mais simples em uma expressão mais complexa. O exemplo vem da sexta série e da fórmula de Baskhara, utilizada para resolver equações do segundo grau. Puxem pela memória e lembrem que essa fórmula é a seguinte:

x = -b ± √(b² – 4ac)/ 2a

Esses parênteses, como manda a boa técnica matemática, devem ser calculados antes dos demais termos. Na escola, costumamos chamar essa sequência de delta, a letra grega em forma de triângulo, e a equação fica assim:

O termo delta e a expressão b² – 4ac são idênticas. Compartilham de todas as propriedades e, portanto, são indiscerníveis, tanto fazendo calculá-la à parte ou em uma expressão completa. Não há nenhuma diferença, a não ser que a segunda forma traz maior clareza no cálculo, identificando o discriminante da equação, ou seja, se a equação tem raízes reais e quantas elas são.

Mas como com qualquer lei, é possível praticar a contravenção, e ela vem na forma de falácia. Ela ocorre quando fazemos a substituição de objetos que tentamos fazer ser idênticos, mas não são.

A Lei de Leibniz fala que os objetos são indiscerníveis quando eles compartilham exatamente as mesmas propriedades. Se um pelinho for diferente, então a lei não se aplica. Somente quando estamos na situação indiscernível que uma substituição faz pleno sentido.

Ocorre que podemos fazer essa substituição com ares de legítima sem que ela seja de fato. O exemplo mais canônico vem do paradoxo do homem mascarado, que consiste mais ou menos no seguinte interrogatório:

– Você conhece seu pai?

– Sim.

– Você conhece o homem mascarado?

– Não.

– O seu pai é o homem mascarado. Portanto, você não conhece seu pai.

Percebam, meus amigos, que aqui o pai é substituído pelo homem mascarado, o que é um fato e parece ser adequado que os tratemos como sinônimos. A situação aqui é que a substituição é indevida, porque o conhecimento que se tem sobre as duas afirmações é diferente, ou seja, não se tem consciência de que o pai e o homem mascarado são a mesma pessoa. O fato de que haja uma identidade não torna lícita sua substituição em qualquer contexto, porque temos a situação de que se determina a identidade entre um objeto de fato (o pai) com o conhecimento efetivo que se tem ou não dele (o homem mascarado). Dessa maneira, o paradoxo é um exemplo da falácia formal conhecida, por esse seu exemplo mais famoso, como falácia do homem mascarado, ou, em termos mais técnico, na substituição ilícita de idênticos.

Então temos dois pontos. O primeiro é que o susto que temos quando somos apresentados a um conhecimento é só inicial, e as coisas pegam sentido na medida em que andamos. E o segundo é que mesmo o conhecimento pode nos enganar, e é bom desconfiamos de nossos limites. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O livro é curtinho e relativamente fácil de ler, embora exija algum conhecimento prévio em epistemologia, mas não chega a ser um monstro.

LEIBNIZ, Gottfried. Discurso de metafísica. São Paulo: Ícone, 2007.

*Sempre lembrando que também o óbvio deve ser dito. É costume entre os especificadores de requisitos descrever coisas como “a data da nascimento deve ser anterior ou, no mínimo, igual à data de falecimento”, porque um sistema computacional faz aquilo que é mandado ele fazer. Se isso não está especificado, o desenvolvedor pode simplesmente esquecer de construir uma validação para esses fenômenos que parecem óbvios. Quando um simples erro de digitação acontece, lá vai o sistema travar e sua operadora de cartão ficar fora do ar, inviabilizando sua comprinha num market place da vida.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O café filosófico do quotidiano – tudo o que sabemos vem do universo ao nosso redor

(Como aprendemos o que sabemos? Nascemos com algo ou pegamos tudo do mundo?)

“Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma ideia; como ela será suprida? (...) A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento”

John Locke

Olá!

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Eu não posso dizer que sou dos mais renomados utilizadores das benesses digitais disponibilizadas contemporaneamente. Mesmo sendo um cara de TI, faz muito tempo que não desenvolvo, e trabalho mais com a parte de requisitos, como já andei falando por aqui. Ah, eu não trabalho mais com ensino? Não, eu preciso comer.

Voltando ao assunto, se comparado a qualquer pessoa de menos de 40 anos, meu celular fica muito mais quieto do que os da rapaziada. Eles fazem tudo pelo celular, e eu até hoje não confio de ter a conta do banco, que está em um outro aparelho, quietinho em casa, por pura obrigação. Mas não sou tão dinossauro assim, e uso algumas coisas que a pandemia me ensinou/obrigou. São os aplicativos de compras, aqueles mais clássicos, vocês sabem quais.

É preciso resiliência para não sucumbir às ofertas. O que tem de badulaques interessantes é uma grandeza. Pesquisei por pratos de bateria e parecia que eu estava em uma forjaria de bronze. E aí você compra uma coisa, lembra que precisa trocar os feltros, aparece umas baquetas black fiber, e mais outra, e mais outra… quando você vê acontecem dois fenômenos: você compra um gongo que vai usar em uma única pancada de uma única música, e seu cartão vai para a caixa-prego. São maldições do capitalismo, contra os quais precisamos levantar todos os nossos sortilégios.

Mas há quinquilharias que não comprometem de forma tão radical o nosso orçamento. São porcarias que a gente compra meio que na base do “serviu, serviu; não serviu, lixo”. E às vezes se revelam verdadeira e surpreendentemente úteis, mesmo que não cumpram o que prometem.

Foi mais ou menos isso que aconteceu quando eu estava pesquisando por métodos de café, na esperança de achar alguma oportunidade boa e barata. Entre inúmeros repetecos, vi um objeto que em nada lembrava uma cafeteira, parecendo mais um infusor de chá, com a promessa de ser prática e eficiente para extrair doses individuais de café. Olhei com o bico retorcido típico das minhas desconfianças, mas estava tão barato e com frete grátis que resolvi encarar. É essa peça aqui:

A pecinha, autodenominada prensa manual para café, se chama Mimo Style e vaticina combinar três mundos: a praticidade de um infusor pequeno, o aproveitamento maximizado de uma prensa e a suavidade de um coador. A combinação vem do fato de possuir uma mola que espreme o café quando pronto, para arrancar o máximo do pó.

O esquema consiste em colocar pó no pequeno recipiente composto de telas filtrantes e depositá-lo na água fervente. A quantidade de pó que cabe nele só é suficiente para uma xícara pequena.


No final das contas, realmente funciona, mas há um problema: para cafés coados, eu prefiro quantidades maiores. Pequeninos assim, só os espressi, mas aí o pequeno utensílio não chega. Muito melhor quando usado para infundir cáscara, o saboroso subproduto do processo de descascamento do café, com suave sabor de amendoim.


 

Nome do utensílio: Prensa manual

Tipo de técnica: Infusão 

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média

Dinâmica: É inserido pó na cápsula do recipiente filtrante, para ser fechado o sistema e inserido em uma xícara contendo água fervente. Mantém-se até que a extração esteja satisfatória, quando então o método é retirado e prensado com o êmbolo

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: baixo/médio

Bom… não havia outra opção possível para saber se a bugiganga poderia surpreender. Eu poderia pressupor, mas saber, de fato, só tendo uma a meu alcance. Como não vejo esse método em cafeterias, dei meu jeito, apelando para a modernidade. É experimentando que conhecemos.

Essa é uma frase que os antigos empiristas fariam coro, fácil. No final das contas, é a perfeita síntese do que eles pensavam. Mas o que são eles? Já falei muitas vezes sobre o embate racionalistas vs empiristas neste espaço, mas não custa relembrar rapidinho. Os empiristas são pensadores que se opunham à ideia de que o conhecimento já estava internalizado no ser humano, esperando a ocasião de ser despertado, como queriam os racionalistas. Por entender que o conhecimento era algo inerente ao ser humano, forçosamente as ideias teriam de ser inatas, ou seja, nascidas junto com cada indivíduo.

Os empiristas se opunham radicalmente ao conhecimento preexistente. No fundo, entendiam que o princípio geral do inatismo tinha uma base religiosa, onde o conhecimento era uma doação de uma via externa, como o hiperurânio platônico ou o mundo das ideias divinas agostiniano. Para eles, a única fonte do conhecimento era oriunda dos sentidos, que, uma vez colocados à disposição do cérebro, podiam ser por ele processados. Muito se disse antes sobre o universo como a fonte do conhecimento e dos sentidos como sua via de entrada, mas o debate aberto sobre sua fonte vem mais tarde, e é aqui que vamos falar sobre um dos mais célebres membros do movimento empirista, John Locke.

É quase indissociável seu pensamento dos demais contratualistas*, tanto que é plenamente possível fazer comparações diretas com Hobbes e Rousseau, como fiz aqui. Dentre estes, é o que tem ideias mais sólidas sobre o processo de conhecimento oriundo da experiência.

Antes de estabelecer como é sua tese sobre o conhecimento, Locke tece pesadas críticas sobre a base racionalista. Seu questionamento já vem de sua própria linha empirista: pensavam os racionalistas que havia uma espécie de acordo universal a quem toda a humanidade assentia, como se fosse uma base epistêmica comum a todos os homens, e como se estivessem para o conhecimento como os axiomas estão para a ciência. Entretanto, se o conhecimento é inato, por qual motivo este acordo universal não está aparente nas crianças, nem em pessoas com algum tipo de transtorno mental? Ideias genéricas, como fome e frio, não estão impressas na alma, porque elas só surgem enquanto sensação, ou seja, um impulso advindo de um fator vindo de fora: a falta de comida ou de agasalho. É um aprendizado que pode ter um início ainda muito remoto, mesmo no ventre, mas não que esteja gravado na alma. Em qualquer circunstância, o feto conhece através dos seus sentidos; ele recebe alguma forma de estímulo e registra essa sensação, agradável ou não. Em resumo, crianças e tolos possuem alma, e, por conseguinte, possuem mente**. Se as impressões preexistentes pensadas pelos racionalistas fossem reais, não faz sentido que não existam neles, segundo Locke.

Outra questão que leva Locke a desconfiar do inatismo é a diversidade de respostas que os diferentes povos dão a um mesmo problema. Peguemos o exemplo deus. Em todos os lugares do mundo, existe uma forma de religiosidade. Ponto para o inatismo. Só que, entretanto, cada um desses povos traz uma resposta diferente para a mesma colocação. Há povos que adoram muitos deuses, outros possuem uma hierarquia divina, onde um deus está no alto de um séquito também divinizado, mas subalternos ao deus maior. Outra maneira de ver a religião inclui um deus único, e há ainda aqueles que não centralizam a transcendência em uma divindade, embora exista algo de metafísico***. Se o conhecimento de deus viesse inatamente, não haveria motivo para tantas concepções diferentes. Basicamente, cada povo tem ao menos uma forma de ver a divindade, totalmente própria, e isso depõe contra as ideias inatas****.

Locke vai além, utilizando os próprios princípios inatos para fazer contraposições. Se as ideias estão já presentes na mente de um ser humano, é preciso que ela preexista de alguma forma, senão não haveria como plasmá-las nas demais mentes. Será que temos algum lugar platônico onde as ideias estão todas armazenadas? É preciso lembrar que essa noção platônica não fazia parte nem dos postulados racionalistas, mas parece incoerente que haja verdades gravadas na mente que não são percebidas imediatamente como tal.

Óbvio que os racionalistas rebatem as declarações de Locke, justificando que as ideias inatas não representam soluções unívocas, já que cada comunidade as adaptaria às suas necessidades em particular, ao que nosso intrépido inglês retruca dizendo não ser prova do inatismo, vez que as diferentes soluções dadas são somente as provas de que as necessidades existem e são resolvidas de formas diversas, principalmente porque cada comunidade tem justamente uma experiência distinta do problema enfrentado. Comprovação disso vem da variedade de princípios morais que são absolutamente distintos em diferentes partes do mundo. De fato, os sacrifícios são repelidos em lugares vizinhos de onde eles são de rigor. Se houvesse princípios inatos universais, não haveria motivo para tanto.

Locke concorda, entretanto, que há, sim, algo que é efetivamente inato: a capacidade de articular conteúdos em raciocínios. Essa característica é inerentemente humana, e nos constitui como tais. Mas essa capacidade de articulação não é, ela mesma, os conteúdos com os quais ela lida. Sem eles, o raciocínio não tem ingredientes para assar seu bolo.

Se não há nenhum conteúdo pré-impresso, então como se forma o conhecimento na mente humana? É aqui que Locke vai chegar à sua mais célebre doutrina: a tabula rasa. Sempre tratamos desse conceito quando falamos de empirismo, e ele se resume no seguinte: a mente é um papel em branco, que é preenchido pelas mãos dos sentidos através da observação do universo, como se burilasse uma placa de argila. Eles ficam lá, prontos para serem utilizados quando requeridos. Apesar disso, as fontes do conhecimento não se limitam aos sentidos, mas também às operações mentais. Isso é mais facilmente perceptível quando o processo abstrato se instaura. Vemos à nossa frente objetos que não tem existência real, mas que, na opinião dos empiristas, não tem como ser desenvolvido sem que haja uma sensação anterior. Isso acontece, para dar um exemplo, na ideia de aceleração. Não conseguiríamos abstrair uma fórmula que a descrevesse se não observarmos objetos em estado acelerado, porque nem mesmo formaríamos essa noção.

As primeiras coisas que são apreendidas são as ideias mais difusas, como as cores, as luminosidades, as dicotomias cheio-vazio, quente-frio, alto-baixo, que vão dar parâmetros básicos para a construção de ideias mais rebuscadas, mais sofisticadas. Afinal de contas, não há como dizer que fulano é mais alto que sicrano se não houver antes uma ideia mais fundamental do que seriam essas qualidades.

A complexidade das ideias aumenta, portanto, na medida em que ideias simples se conjugam de forma a darem novas funções a si mesmas. Ou seja, a ideia é como um átomo do pensamento. Os processos cognitivos se dão pela contemplação, que é quando o objeto está presente e há interação direta, ou pela memória, quando os conteúdos são resgatados do acervo mental. Esse trânsito de inúmeras sensações simples permite que ideias complexas se formem. Por exemplo, para se ter uma ideia de infinitude, é preciso primeiro passar por experiências de duração, que, por sua vez, são percebidas através das ideias mais simples de tempo, colhidas da experiência pela observação da velocidade das transformações.

O grande fundamento do empirismo como um todo, e de Locke em particular, está, portanto, no fato de que o conhecimento não é uma estrutura universal, aplicável igualmente a qualquer lugar e momento, mas dependente da percepção individual. Sendo assim, todas as vezes que observamos um objeto, extraímos dele informações que são parciais de sua essência. Essas são essências nominais, porque dizem respeito a ESSE cachorro, a ESSA planta, a ESSE texto, e não à universalidade desses mesmos objetos, embora contenham em si as características que sejam comuns a todos eles. A essência nominal é construída a partir das ideias formadas a partir das sensações que temos dos vários componentes do universo, enquanto a essência real seria a sua natureza intrínseca. Daí que, entre ambas, podem ser encontradas diferenças em função da experiência de quem os observa.

Desta forma, para universalizar os juízos, e reconhecendo que as essências reais das coisas não são perceptíveis ao intelecto, mas apenas as essências nominais extraídas de cada objeto individual, é necessário que haja o compartilhamento de ideias e conceitos, através da comunicação e da educação. O ser humano é caracterizado pelo compartilhamento de vários elementos, como os produtos do trabalho, dos espaços públicos, da terra, dentre outros. Deve compartilhar também os conhecimentos individuais para enriquecer o patrimônio intelectivo humano, porque é da depuração das experiências através dos pontos em comum que é possível obter algo que se aproxime o máximo possível do que seria essa tal de essência real. 

O que podemos concluir é que eu precisava de experiência individual para determinar se faz sentido usar este pequeno utensílio para extrair um café minimamente competente, bem mais do que se fiar unicamente na minha intuição. E, neste sentido, valeu a experiência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tenho como deixar de novamente indicar a obra em que Locke discorre sobre tudo o que foi discutido aqui.

LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

 

*São os filósofos modernos que exploraram o conceito de contrato social, ou seja, o acordo de convívio entre os seres humanos.

**Locke era cristão e, portanto, fazia identificação entre mente e alma.

***Budistas, de certa forma, são enquadrados nesta categoria. Vide este texto.

****Obviamente Locke não conhecia os ateus pirahãs, dado ao fato de ser um povo praticamente oculto até pouco tempo atrás. Para saber mais, leiam este post.