(Sim, a torrente de imagens nos anestesia. Mas não podemos deixar dessa forma)
“A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfrangalha, eviscera. A guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta”.
...
“O problema não é que as pessoas lembrem por meio de fotos, mas que só se lembrem das fotos”.
Sontag
Olá!
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O café é um hábito coletivo. Chego a esta conclusão
influenciado pela vida em uma família grande, cujo único consenso culinário
real residia no líquido negro e espesso. Nunca vi a sorvedura como algo para se
fazer sozinho, mesmo que essa companhia venha em sucessões: um faz, outros
tomam, juntos ou cada um à sua vez, partilhando um mesmo produto e um mesmo
ato. Mas o mundo gira, a lusitana roda e hoje, por muitas vezes, se eu não
fizer um cafezinho para mim mesmo, eu e só eu, acabo não tomando uma dose daquelas
de final de tarde, para ajudar a se manter de pé. É bem verdade que pelo menos
a esposa costuma me acompanhar, mas há dias em que estou junto do meu silêncio,
e convém uma dose única.
Com o mesmo espírito de pobreza de outrora, dá um pouco de
dó gastar toda uma parafernália para extrair uma mísera xícara. Para tal
mister, há os métodos que nos permitem esse efeito sem que precisemos lançar
mão de tanta coisa. Comprei um baratíssimo e prático porta-filtro Kalita Tall,
cujo fundamento é exatamente ser útil para um contribuinte individual.
O método é extremamente simples. Com um aspecto de uma
barquinha, seu fundo possui três furos, para manter a engenharia típica da
Kalita de acelerar o escoamento e não reter água. Além disso, possui um
conjunto de ranhuras paralelas para favorecer o fluxo reto e rápido.
Nesse sentido, parece um Melittão clássico que teve seu
fundo cerrado, o que o faz ficar mais prático de levar para lá e para cá. É
possível encaixar o fundo de um filtro trapezoidal nº 01 e depositar uma
quantidade pequena de pó, uma medida prática de fazer um cafezinho rápido.
Nome do utensílio: Kalita Tall
Tipo de técnica: percolação
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Média/fina
Dinâmica: Da mesma forma que outros métodos de percolação, inserir um filtro trapezoidal na cavidade e escaldar com água fervente. Depositar o pó e atacar com quantidades pequenas de água, haja vista o pouco espaço disponível.
Resíduos: Baixos
Temperatura de saída: Média/alta
Nível de ritual: Médio
Enquanto estreio o pequeno método, vou ouvindo as notícias através do rádio do vizinho, bastante alto para os padrões deste prédio. Lá eu escuto os comentários de guerra, especialmente dos ataques israelenses na Faixa de Gaza, uma história cíclica e incessante, que alterna momentos de pau comendo e silêncio tenso, nunca de paz legítima. Esse lugar virou um sinônimo tão consistente de violência que até mesmo o calçadão que vai do metrô Sé até o asfalto da Silveira Martins ganhou esse apelido aqui em casa, vindo das trapalhadas do poder público que, vez por outra, faz o trecho virar uma sucursal da Cracolândia. Faixa de Gaza é, portanto, sinônimo de perigo. Mas eu não tenho vontade de ouvir sobre isso logo cedo, e vou acionar meu celular para ouvir sobre futebol ou fofocas. A ironia vem na forma de vídeos que abordam a ausência da Rússia na Copa do Mundo por conta da guerra contra a Ucrânia.
Bate em mim uma certa culpa. Às vezes eu me pergunto se não
sou muito chapa branca, ou menos engajado do que deveria ser, mesmo neste
humilde espaço. E às vezes eu me pergunto se eu não sou exatamente aquilo que
eu temia: insensível diante do mundo. Vou explicar isso tudo melhor, com calma.
Não se trata de não me importar com os acontecimentos
caóticos. Tenho posições bastante claras para mim mesmo e sou, por definição,
antiguerra. Acho que, especialmente na questão de Gaza, todos os limites foram
ultrapassados e não há como não encarar a ação israelense como um apartheid
seguido de um genocídio, com a concupiscência geral do Primeiro Mundo, mesmo
que haja justificativas históricas e razões para sua própria defesa. Mas há
dois pontos. O primeiro é que há um natural cansaço em se saber que se alinha
ao gabinete Netanyahu a maior potência política e bélica do planetinha azul, e
isso já faz com que não tenhamos muito rumo além das lamentações habituais e os
votos de desagravo, as moções de repúdio, os stories, os posts comovidos. Todos
tão tocantes quanto inúteis. E o segundo é que vamos ficando cada vez mais
anestesiados com o ambiente de violência que permeia o mundo, começando pela
rua de casa, terminando pelo pálido ponto azul rumo ao calcinamento. Todos os
dias encaro a praça repleta de mendigos e nem passa pela minha cabeça os dramas
de cada um deles, o que faz eles estarem lá, qual a história de cada uma de
suas feridas, que são muitas. Mesmo que sejam de boa paz, a vida nas ruas é
feita de violência, e tendemos a não nos incomodar, a não ser quando roubam o
celular de um dos nossos. Aí, sim, eles surgem. De tanto ver, fiquei cego.
O mesmo acontece quando pensamos na questão internacional.
Nos anos oitenta, quando a globalização dava suas caras com toda sua força, uma
reunião de artistas musicais deu origem ao projeto USA for Africa, que
gerou o megasucesso “We are the World”, que até hoje aparece por aí. Buscava
chamar atenção para a fome na África, o que é louvável, mas com a velha lógica
de mandar recursos sem mandar soluções, o que é costumeiro em quem quer reduzir
sua própria culpa. Dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar. Só
que não adianta ensinar a pescar se não se dá acesso ao rio. Aí, é divisão de
lucros, e isso já não é legal.
Daí, que tanto a fome na África persiste, quanto não se dá
horizontes. A questão ali é a guerra permanente, causada, em especial, pelas
divisões arbitrárias da época da colonização. É possível mediar os conflitos e
inserir esses países no mercado mundial. Isso seria resolver o problema. Como
fazer isso? Não sei, mas há meios, se houver vontade. Só que, fundamentalmente,
mostrar criancinhas negras esquecidas passa a dar um ar apelativo, meio brega
até. Você já sentiu isso? Então está comprovada a sua dessensibilização.
É uma sensação estranha, porque eu constato que não sou
imune à sensibilidade. Na rua em que habito, o trânsito amalucado traz
consequências. Um leve esbarrão de um carro em outro gerou um entrevero entre
dois motoristas que terminou com um extintor rachando a cabeça de um, enquanto
o outro foi se ver com a polícia, detido pelos transeuntes. Era exatamente o
momento em que o pobre golpeado ia sendo recolhido à ambulância que eu cheguei
para almoçar, e a cena sanguinolenta me causou choque, ainda mais quando o
bissexto zelador do prédio me descreveu a futilidade do ocorrido. O fato ficou
passeando alguns dias pela minha cabeça, prova do tanto que fiquei
impressionado.
Se eu me incomodo com dois brutalhões resolvendo seus
entreveros na porrada, por que fico com cara de horizonte perdido quando se
fala da guerra? Pego refletindo sobre o caso, pergunto por que não somos mais
incisivos com relação à guerra, à fome, à miséria. E vou buscar minhas
referências quanto sinto que estou perdido no caos. Sabe quando você está com
aquela roda de amigos e o debate esquenta? Sabe quando se busca a opinião
daquele mais quieto, que não se mistura no debate para não se tornar, também
ele, improdutivo? É assim que vou parar em Susan Sontag, uma das vozes da
lucidez.
Ela tem uma paixão, a fotografia, e tem senso crítico
aguçado. Faz meditações sobre a importância das fotografias na maneira como as
pessoas reagem diante do horror da guerra, e conclui que não basta que se
apresentem os artefatos, mas que há todo um ambiente que lhe apresenta, de modo
a lhe mudar completamente seu sentido.
Pense em uma pedra. Jogada na rua, é o resíduo de uma
construção, um estorvo de tropeço. Colocada em um pedestal, é o fundamento da
mesma construção, algo sacralizado até. Uma imagem não é nada sem a narrativa
que se faz em torno dela. Uma foto de guerra pode tanto mortificar quem a
observa, quanto exaltar um herói que derrota o suposto inimigo. Pode tanto
causar a revolta, quando colocar a culpa na vítima que está lá, estendida no
chão com os miolos espalhados. A fotografia depende da folha onde está colada.
Talvez ela tenha razão. O grande problema está no apelo que
se dá às imagens, e não nas imagens em si. Elas falam por si mesmas, mas sua
língua pode ser desvirtuada por sua moldura. Na maioria das vezes, fiamo-nos
mais naquilo que se descreve sobre a imagem do que nela mesma, e acabamos, com
isso, desviando o olhar dela. Há toda uma carga ideológica que conduz a isso,
como a destruição apresentada como uma necessidade da vitória, os lados
positivos da guerra. A dor e a morte são exibidos de acordo com a conveniência
de quem tem os meios, e isso balanceia onde se age e onde se omite. Sontag
exemplifica com aquela que é tida como a maior catástrofe da contemporaneidade:
os atentados do famoso 11 de setembro. São 3000 admitidos corpos que ficaram
completamente ocultos aos olhos das câmeras. Nem unzinho corpo do atentado foi
exibido por um curioso de plantão. Sabendo ser isso impossível em um momento em
que já existiam celulares com câmeras em profusão, só um tácito acordo
possibilita esse completo sumiço. Como não somos burros, percebemos o truque e
passamos a olhar para as imagens apresentadas com os filtros de quem o faz. E
isso mata os nossos nervos, porque passamos a colocar o horror entre
parênteses.
Há maneiras de compreender esses mecanismos. Em um pequenino
trecho do seu livro, lê-se sobre a introdução de imagens de cânceres e
enfisemas nas embalagens de cigarros no Canadá. Lembro que isso também foi
feito no Brasil e fico confuso. Ao lado da inequívoca redução no consumo, veio
aquilo que fazíamos ao tempo dos lançamentos. Dizíamos: “você já encheu o seu
álbum? Porque vieram figurinhas novas”. O tom jocoso já entrevia a colocação de
lado do efeito choque. Mas o fato é que tivemos expressiva diminuição no
consumo, o que pode ser mais bem explicado pela proibição do uso em locais
fechados. Mas o uso das imagens pode explicar o desencorajamento de novos
fumantes, ao que me parece, que não tem permanentemente as imagens chocantes
dentro dos seus bolsos, e talvez não se anestesiem como ocorre com os
inveterados, gozadores de seus próprios riscos.
Talvez a imagética trazida pelas redes sociais deem a dupla
noção de que eventos como a Guerra da Ucrânia ou os ataques a Gaza são causas
justas e que acontecem longe de nós. Ambas são ilusórias, porque a cada
imigrante que vemos em nosso país, e não são poucos, podemos colher o
entendimento de que um sofrimento pela saída da terra é igual pela injustiça
com os seres humanos, e, não importando se vemos nigerianos, haitianos ou
sírios, eles estão aqui pelos mesmos motivos das guerras nos Bálcãs ou no Oriente
Médio. Então TEMOS proximidade com as imagens que vemos e achamos longínquas,
na forma de drama humanitário.
Mas aí temos o efeito. As ideias que nos vendem tem a cara e
o selo da hegemonia. Intervenções em Gaza sempre carregam o fundo de combate ao
terrorismo, o que é justo e reconhecemos isso como tal. Mas as motivações para
a violência não vêm a claro, e dá impressão de que a dor é necessária, a
violência é inevitável, justamente pela culpa de quem a sofre. Como as imagens
que voam pelos canais de comunicação tem uma espécie de chancela do lado
vencedor, tendemos a interiorizar que aquela imagem que nos mostram é a imagem
autorizada, a imagem que permitem que vejamos. Quando isso acontece, é muito
difícil manter um interesse autêntico, e os consequentes sentimentos de pena ou
repulsa que deveríamos ter. A dor dos outros fica por detrás dessa capa
midiática, e isso nos torna apáticos. Mas elas continuam a existir, a dor e a
morte.
Quando eu volto a mim, já tomei todo o café e mal percebi o
produto do método, o que me obriga a repetir a operação. Talvez se fosse
extraída uma zurrapa inabsorvível eu tivesse reparado, mas eu já estou tão
acostumado com café que é possível nem perceber o que passa pela garganta,
mesmo que estiver me envenenando. É mais uma mostra de que nossos sentidos
conseguem ser desviados de tal forma a registrar outro tipo de realidade. Bons
ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Obra de tiro curto, com um modelo de ensaio, e desafiador
como só a autora consegue ser.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo:
Companhia das Letras, 2025.



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