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quinta-feira, 25 de julho de 2024

Navegações de cabotagem – o Memorial Árabe de Curitiba e o papel de guardiães da cultura grega

(Um Memorial serve para lembrar o que uma cultura tem de bom. No caso, de preservar outras culturas)

A tinta de um acadêmico é mais sagrada que o sangue de um mártir 

Maomé

Olá!

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Como eu digo que este texto será o prosseguimento do anterior, se o assunto nada tem a ver um com o outro? Bom… o mais fácil é contar rapidinho o que houve, para não ficar cansativo, nem misterioso.

Eu e a patroa viemos a Curitiba e, na falta do que fazer de manhãzinha, fomos passar frio e comprar temperos. No rumo ao empório, passamos do lado do Passeio Público e voltamos vinte minutos depois para visitá-lo. Até aí, descrevi tudo neste texto. Acontece que eu parei meu carro no lado oposto ao portão principal, um estacionamento a céu aberto, o que, na friaca sulista, acaba sendo um bem.

Ocorre que a saída não é em uma mera praça com seus habituais pombos a que tive de atravessar, mas um logradouro com um prédio no meio, um tanto estranho a um primeiro olhar, porque é absolutamente quadradão, de um tom entre o grená e o terracota chamativo. O que será? Vamos ver.

Ah, é o Memorial Árabe. Como já vi nas perambulações que fiz em Curitiba, há várias instituições que preservam as culturas originárias (poloneses, ingleses e ucranianos são exemplos), e não é diferente neste caso. O estilo da construção, conforme explicado no edifício, remete ao estilo mourisco, em especial nos pilares e nos arcos.

No espelho d'água que circunda a construção, há uma herma com o busto de um dos mais famosos pensadores árabes dos tempos modernos, Khalil Gibran. Libanês, foi um prolífico escritor em sua curta vida, sendo sua obra mais conhecida o livro poético-filosófico O Profeta.

Boa parte do memorial é recoberto por vitrais multicoloridos com formatos de mandalas, uma prática comum na cultura médio-oriental.

Do lado de dentro, a abóbada também segue o estilo mourisco, lembrando uma espécie de olho divino e muito parecido com o teto da igreja de Nossa Senhora da Agonia, de Itajubá.

Um dos principais propósitos do espaço é ser um centro de pesquisa, guarnecido por uma biblioteca, razão pela qual há grande quantidade de livros de autores árabes ou referentes à sua cultura.

Aproveitando todas essas obras, retoma-se a tradição e a lenda de Sheherazade e, todos os sábados, são feitas sessões de contação de histórias e leituras encenadas sobre os contos do folclore árabe, especialmente destinadas a crianças, em um simulacro de tenda berbere da primeira metade do milênio.

Há um mezanino onde temos uma pinacoteca de exposições transitórias, novamente enfatizando artistas de origem árabe. No dia de minha visita, as obras eram do recém-chegado Razel Janji, de origem síria, e que pinta as ruas e a vida quotidiana de sua cidade.

Também temos exposições permanentes, em especial as de fotografias das primeiras famílias com estes registros chegadas a Curitiba.

Por fim, há vários escritos em caracteres arábicos espalhados pelo espaço, muito diferentes daqueles que estamos habituados em nosso mundo ocidental.

A continuação está só no passeio. A temática não tem nada a ver uma com a outra.

Eu já falei em outro texto sobre a riqueza da Filosofia Árabe (falsafa) e tentei até algum tipo de resposta ao fato de que ela não é mais tão levada em conta hoje em dia (aqui). É preciso cuidado para tratar do assunto, porque os estereótipos sobre essa cultura são muito aflorados e se tornam dificultadores de respostas, sem que façamos aquele velho exercício fenomenológico de remover as nossas próprias camadas de cultura da frente de nosso olhar.

O começo é didático. Quando olhamos para os mapas-múndis, localizamos um país chamado Arábia Saudita. Esse designativo não é inútil. Trata-se da porção de território que é comandado pela dinastia Saudi, o que representa um pequeno pedaço da imensa região que podemos chamar de mundo árabe. Basicamente, o traço cultural mais forte que liga todo esse caldeirão é a língua, principalmente porque sua extensão é imensa. Abrange toda a Península Arábica, onde estão países como a própria Arábia Saudita, Omã, Iêmen, EAU, em outros países do Oriente Médio como Líbano, Síria e Jordânia, toda a faixa norte da África, o chamado Magreb, incluindo Marrocos, Egito, Líbia e Tunísia, e até mesmo países da África Negra, como a Somália, o Sudão e o Djibouti. Com tantos países compondo um território grande assim, é natural que não se componha uma cultura unificada, da mesma forma que a média dos amazonenses é bem diferente da média dos gaúchos, embora seja de bom tom evitar estereótipos. Nem todos os falantes de árabes são islâmicos, nem todos vivem no deserto, nem todos são morenos de cabelos escuros, e até mesmo nem todos têm o árabe como sua única língua. Sendo assim, o chavão do caldeirão cultural se aplica perfeitamente bem neste caso.

Ocorre que este território foi maior ainda, alcançando quantidades expressivas de porções europeias, especialmente na Península Ibérica e nas ilhas do Mediterrâneo. Essa presença está até mesmo nos caracteres físicos de seus habitantes até hoje, o que faz deduzir que boa parte desse fenótipo esteja também nas culturas. Há uma maneira bem clássica de se reconhecer a influência: as milhares de palavras de origem árabe que fazem parte dos vocabulários europeus, mormente na parte mais ao sul do continente, o que evidentemente é somente uma amostra, mas que está no nosso dia-a-dia, disponível para todos reconhecerem.

Mas o caso é que os árabes não trouxeram coisas somente suas, e que acabaram por se tornar centrais na transmissão do conhecimento ocidental para o próprio ocidente. Confuso? Sim, mas vocês vão entender, meus episódicos leitores.

A coisa toda é a seguinte: a Magna Grécia floresceu todo o esplendor de sua cultura em um momento em que um outro grande império crescia notavelmente: os romanos. Com todo seu poderio bélico e militar, Roma subjugou uma extensão de território que só veio a ser superada pelo Império Britânico já nos séculos XIX e XX, em um contexto absolutamente diverso do que tínhamos nos tempos em que as guerras se faziam através da presença física do povo dominante e do corpo a corpo nos combates. A Grécia, ela mesma um país de grande extensão, foi uma das nações que acabou por ser subjugada pelo Império Romano, que, por sua vez, teve neles o espelho de uma sociedade avançada e organizada, com ênfase na ciência e no conhecimento que em poucos lugares puderam ser encontradas. 

Os romanos tinham uma característica em suas dominações. Não se incomodavam com o fato de que as estruturas culturais dos povos dominados fossem mantidas, desde que não representassem uma ameaça real ao exercício de poder e, especificamente, à tributação. O convívio relativamente pacífico dos romanos com os demais povos fez com que, em certa medida, houvesse cruzamentos culturais, de modo a imiscuir influências nos dois sentidos da relação. Com os gregos, entretanto, e seus sofisticados sistemas de pensamentos, o trâmite foi maior e mais expressivo, de modo a ser a cultura dominada a influenciar mais pesadamente a cultura do dominador. Isso se espelhou mais evidentemente na religião, sendo que praticamente toda a estrutura olímpica é transposta para os panteões romanos. Muito da filosofia clássica grega veio junto e começamos a ter pensadores romanos que aproveitavam fortemente essa influência, como Cícero, Seneca, Marco Aurélio e tantos outros.

A coisa andou bem até o século III, quando o Império Romano adotou o Cristianismo como religião oficial.

(Já começo abrindo parênteses para não ser mal interpretado. Em nenhum momento estava escrito que o Cristianismo precisava desmantelar culturas já estabelecidas, mas seu caráter apostólico, salvífico e exclusivista favoreciam a substituição de uma determinada cultura não congruente com suas doutrinas pela suas próprias, isto é difícil de negar).

A partir desse momento, a antiga cultura grega que dava base para a romana, incluindo uma religião politeísta e com suas deidades fisicamente presentes, foram paulatinamente sendo substituídas por modelos baseados nas predisposições cristãs, de forma a se dar a supressão dos antigos pensadores gregos, que agora eram colocados de lado, no caminho do esquecimento, seja pela via da absorção, seja pela via da exclusão. O golpe de misericórdia veio com o imperador Justiniano, que proibiu a continuidade das antigas escolas filosófica pagãs, fazendo com que todo o conhecimento advindo desses polos parasse de ser disseminado.

É importante frisar que o pensamento grego não foi pura e simplesmente jogado na lata de lixo. É melhor dizer que ele foi retrabalhado dentro da lógica cristã, o que fez com que o platonismo se transformasse em Patrística, e o fez de maneira nobre, dando base para uma igreja que ainda não possuía momentos de estabilidade anteriores para fixar de maneira definitiva suas doutrinas e dogmas. Foi o momento em que grandes concílios foram realizados, de maneira a definir mais claramente os rumos que a igreja ora hegemônica daria para seus rebanhos. Por outro lado, todo esse conjunto foi escrito já em língua latina, e os escritos gregos foram sendo paulatinamente deixados de lado em seus originais.

Entretanto, tudo o que não fosse facilmente absorvido pela nova ordem reinante ficou encostadinho no fundo das prateleiras da memória, o que incluiu, como mais notável, todo o corpus aristotélico. E é aí que as migrações árabes para a Europa vão fazer com que haja um ressurgimento.

Os gregos não espalharam sua influência apenas para o Império Romano. Toda a região que hoje chamamos de Arábia, que está na mesma circunvizinhança, também recebeu as ideias gregas. Ao contrário da Europa, no entanto, não houve dentre eles um processo de descarte do conhecimento clássico para ser substituído por ideário em conciliação com seus princípios religiosos, e sim uma espécie de assimilação. O chamado Califado Abássida foi um grande incentivador das artes e das ciências por um motivo muito simples: o conhecimento não é um inimigo de deus, mas um aliado. A visão islâmica de então via como as técnicas permitiam que o mundo fosse mais bem explorado e, de tabela, Alá fosse devidamente reverenciado por esse ato. Um exemplo simplíssimo está na precisão que se obtinha nas orações, ao saber interpretar-se corretamente para que direção estava Meca, e com isso o cumprimento diário da oração voltada para essa cidade fosse melhor. Se olhando ao mundo eu sei onde está Meca, olhando ao mundo eu sei onde está deus, sacaram?

Isso nos traz a seguinte informação: se conhecemos os textos aristotélicos, foi porque os povos árabes foram seus guardiães quando jaziam esquecidos durante a Idade Média. Os árabes eram depositários do saber grego e o levou para as terras que conquistaram na Europa. E é desses territórios que se deu a nova difusão da cultura clássica para o restante da Europa, culminando no momento em que surge a Escolástica e o antigo pensamento grego é retomado em seu antigo esplendor, devidamente adaptado agora ao Cristianismo. Um exemplo de como se deu esse processo está na ilha da Sicília, atualmente pertencente à Itália. Sendo uma ilha razoavelmente grande do Mar Mediterrâneo, foi um dos primeiros objetos da conquista árabe, até o momento em que os normandos retomaram o território para um povo europeu. A novidade é que não encontraram lá mais uma população cristã dentre outras, mas um centro de difusão da cultura árabe diretamente e grega por via da preservação.

Só que isso ainda é uma contribuição aparente, que costumamos ver quando estudamos nos manuais de Filosofia. A resposta mais difícil de se dar é: qual é o tamanho do material próprio que os povos árabes trouxeram nesta contribuição? Filósofos como Averróis e Avicena fizeram ressurgir o aristotelismo através de suas obras, mas com um papel diferente com relação aos copistas da Casa da Sabedoria, o mais importante centro de registro da cultura árabe. A influência do Islamismo faz surgir uma relação mais próxima com a divindade, sem, entretanto, que a porção religiosa obnubilasse por completo o restante do conhecimento. Esses pensadores eram chamados de polímatas, pela razão de abordarem uma gama muito distinta de ramos do conhecimento, o que lhes ampliou muito a abrangência da cosmovisão.

Se São Tomás de Aquino teve seus famosos subsídios aristotélicos para construir a Escolástica, foi porque encontrou as obras dos autores e dos copistas árabes. Chega a ser irônico: a principal corrente da filosofia cristã em voga até os dias de hoje estaria impossibilitada pela relegação ao esquecimento de seu mais robusto fundamento. Ato e potência, quatro causas e primeiro motor são componentes inelutáveis do pensamento tomista que tiveram origem lá, no velho Aristóteles. Se fosse pelo gosto patrístico da igreja de até então, sua filosofia dificilmente ganharia o esplendor que recebeu. É um motejo, não? 

A explicação para que ideias antes rejeitadas passassem a fazer sentido veio justamente pelo filtro árabe. Autores como Avicena e Averróis trouxeram um Aristóteles já conciliado com um monoteísmo bem consolidado, o Islamismo, e isso fez com que São Tomás de Aquino vislumbrasse todo um universo de princípios que coadunava muito bem com o Cristianismo, de forma a até mesmo proporcionar provas ontológicas robustas da existência de Deus, as famosas cinco teses (vide aqui).

Essas são as razões pelas quais a cultura árabe não pode e não deve ser encarada meramente como um universo exótico, como fazem parecer os filmes (e os noticiários) da tevê. Saí de lá com uma imensa vontade de achar uma boa casa de esfihas para aproveitar o clima, mas vou deixar isso para quando estiver de volta a São Paulo. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Normalmente vendida em boxes, a coleção de contos 1001 Noites não precisam ser lidos em sua inteireza, e é até fácil de achar capítulos na internet. Segue a recomendação:

AS MIL e uma noites. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2015.


E o endereço do Memorial:

Memorial Árabe

Avenida João Gualberto, 141

Centro Cívico

Curitiba/PR

A aproximadamente 407 Km do centro de São Paulo

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Navegações de cabotagem - o passeio público de Curitiba e o aprendizado que se faz caminhando

(Passear é lazer, mas em Aristóteles era também o conhecer)

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena

Fernando Pessoa, no heterônimo Alberto Caeiro 

Olá!

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O que nós fomos fazer mesmo? Ah, sim… comprar temperos. De vez em quando dou um pulo em Curitiba, como vocês, meus bissextos leitores, estão cansados de saber.  Aproveito o home office e vou passar uma semana na casa do moleque mais velho, especialmente porque, segundo ele, já está de saída de lá, devendo voltar a Sampa no começo do ano que vem. Acontece que tenho umas horas livres no começo do dia, e, com isso, vou com a patroa dar umas voltinhas. Desta vez, para fazer isso, comprar temperos exóticos em uma boa casa que existe por lá.

Só que comprar meia dúzia de pimentas extravagantes não é um programa que leve mais que vinte minutos. Sendo assim, tempo havia, e lembrei que passamos beirando o Passeio Público, um parque central da cidade e bastante próximo à mercearia que iríamos. Não custa dar um pulinho.

O Passeio Público de Curitiba é seu parque mais antigo, inaugurado em 1886 para sanear um alagado que existia por lá, e que só servia para fazer proliferar mosquitos e muriçocas. Em seu lugar, um pequeno conjunto de lagos, jardins e pontes para os cidadãos fazerem seus giros na hora de folga.

O projeto tem essa cara de europeu porque seu criador se baseou nos jardins franceses para produzir esse espaço relativamente pequeno, mas que tem um sabor parisiense em seu intimismo, passando por seus portões e continuando nas alamedas que ladeiam os lagos.

Originariamente, os lagos do parque eram utilizados por pequenos botes para dar uma voltinha molhada, alla Veneza, o que parou de ser feito com o tempo, restando unicamente os barquinhos de adereço.

Um dos contrapontos mais curiosos daqui foi a introdução de um coreto eletrônico, que deu modernidade ao velho equipamento tão típico dessas épocas, onde é possível usar e abusar de projeções, além da tradicional função de servir de palco e palanque.

Este aqui é um pedacinho da Ilha da Ilusão, uma ilhota que contém um busto do escritor Emiliano Perneta, considerado o príncipe dos poetas curitibanos, de verve simbolista e também atuante na área do Direito.

O desaguadouro do antigo Córrego do Belém, que produzia o antigo banhado, ainda se presta a alimentar de água todo o complexo, ainda produzindo tanques e cascatas artificiais.

Há muitos bichos dentro do passeio público, o que garante a alegria da criançada. Nos lagos, há as habituais carpas coloridas, sempre dispostas a deglutir vorazmente suas porções de ração.

E há diversos viveiros para aves, todos eles devidamente cercados e com recintos de repouso. Embora houvesse bastante sol, o ventinho frio típico dessas latitudes não fazia com que todas as aves se encorajassem, mas muitas delas procuravam os raios.

Há as aves nativas, especialmente da Mata Atlântica, da qual as matas de araucárias fazem parte…

… e há as aves estrangeiras, mas que também se adaptam bem ao subtrópico curitibano.


Enfim, um lugar aprazível para um passeio rápido, para namorar um pouco e até chupar um velho sorvetinho italiano, daqueles que vem com abelhas de brinde.

Bom... passeios podem nos ensinar bastante coisa, não é verdade? Depende, né? Quando lembro de minha época mais escolar de todas, não vislumbro grandes passagens que tenham ocorrido fora do interior da imensa escola estadual, que ocupava meio quarteirão de uma rua da Vila Diva, bairro operário da zona leste paulistana. Como prédio, era extraordinária: duas quadras, vários níveis de pátio, muitas e muitas salas, algumas especializadas, com laboratório e oficina, área de refeições e cantinas, e até uma pista de salto, tudo meio capenga, mas existente. Ocorre que ela adotava aquele modelo presídio tão típico da década de 70, onde uma cigarra anunciava os inícios e términos de aula, e o confinamento era garantido, a não ser para os aventureiros que se dispusessem a escapar por uma linha de águas pluviais no extremo sul da fortificação, o que nem era tão difícil em tempo seco. A segurança para sair era reforçada, mas a peia cantava lá dentro mesmo, e até briga de facas cheguei a presenciar. Nada mal para quem ama referenciar os saudosos tempos seguros de outrora.

As únicas saídas eram as excursões raríssimas, feitas para dizer que existiam, e que custavam aos bolsos proletários os caraminguás para pagar o fretamento e ingressos que por ventura existissem. Uma delas foi em 1982, para assistir o filme Gandhi. É um filme ótimo, didático, histórico, que fez sucesso na época tratando de um tema delicado, as lutas da Índia derivadas primeiro da dominação, depois da religião, mas quem o agendou não teve a sensibilidade de perceber que mais de três horas de filme para uma escola repleta de fedelhos descambaria para o pandemônio. Foi o que houve. Depois das duas primeiras horas, não havia mais quem conseguisse ouvir minimamente o que se dizia na tela, mesmo com os poderosos alto-falantes do Cine Marabá (acho que foi no Marabá) em plena potência.

Outra ocasião vergonhosa foi quando excursionamos ao teatro Sérgio Cardoso, para assistir a uma peça sobre um dos principais independentistas sul-americanos, Simón Bolívar. Encontrei uma obra sobre no acervo do Teatro de Arena, mas acho que não era a mesma. Se em um cinema com seu potente sistema de som o caos se instaurou, o que podemos pensar de uma sala onde o que se ouve é a voz pura dos atores? Com menos de cinco minutos o ator principal parou a atuação e deu um esporro proverbial na patuleia infanto-juvenil, de forma a corar de um escarlate profundo as faces dos docentes presentes, nossos professores.

Mas ainda tinham as saídas que fazíamos para disputar os campeonatos interescolares. Aí, sim, nós aprendíamos… aprendíamos que tinham menininhas observando e nos desdobrávamos nas acrobacias, mais para parecermos pavões do que para demonstrar alguma consciência tática e tentar conseguir alguma medalha.

Não sei exatamente a idade de quem me lê. Talvez as coisas tenham melhorado.

O fato é que, nessas simples lembranças, coloquei na mesa que fomos à República em um cinema e ao Bixiga em um teatro, mas nunca demos trinta passos dentro da nossa própria freguesia, para conhecer minimamente sua estrutura e funcionamento. A impressão geral é que a vida acontecia lá fora, e que nada ocorria no nosso mundo real, mas o fato é que sim, havia uma sociedade que povoava aquelas casas de tijolos aparentes pela queda dos rebocos, e onde se fazia mais do que beber em companhia nas tardes de domingo. Poderíamos ter ido à Sociedade de Amigos do Bairro, ao “bailarico” português, à Escola de Samba Príncipe Negro ou a tantos outros lugares que existiam e que chegaríamos em meia hora a pé, no máximo, entender por que estavam ali, o que faziam, o que representavam para a coletividade. Parece bobagem, mas a visão que uma escola dá é mais despida de camadas irracionais, um ângulo mais sistêmico da realidade que nos cerca, justamente por seu propósito didático. Quando conhecemos esses pequenos espaços por nós mesmos, o que é perfeitamente possível, podemos ter um ponto de vista obliterado pelos preconceitos que nascem em nossas próprias casas, devemos admitir. Assim, ao invés de ser uma entidade representativa do interesse dos moradores, a Sociedade do Bairro vira um lugar para os velhos jogar bocha; o espaço de manifestação cultural se torna o salão onde as mulheres bigodudas se travestem de camponesas e a escola de samba deixa de ser o amálgama de uma coletividade para virar o lugar onde os pretos vão fazer seus batuques. Entendem onde quero chegar?

Por isso, o simples andar pelas ruas da cidade pode ter propósito educacional e civilizatório. Encarar a realidade significa vivê-la, e isso é mais fácil quando não estamos reclusos, meramente conjecturando o que é a vida e seus desdobramentos. Para saber a vida, é preciso perceber a vida.

Aristóteles claramente tem essa visão e a coloca em seu projeto educacional. Eram épocas em que os grandes letrados fundavam escolas, e nelas impunham seus próprios estilos e métodos. Algumas delas ficaram extremamente conhecidas, começando pela de seu mestre Platão, conhecida como Academia. Esse nome foi dado em homenagem ao herói Academo, que tinha seu túmulo nas imediações da área onde o filósofo instalou sua escola. Esse nome virou sinônimo tanto de local de estudos, quanto de prática de esportes, que Platão também prezava. Por isso, meu caro musculito, minha prezada monstrinha, não é uma apropriação tão indébita chamar seu lugar de ginástica de academia.

Aristóteles, conquanto fosse o discípulo mais brilhante de Platão, não foi escolhido seu sucessor por ocasião de sua morte, certamente pelas suas divergências fundamentais com o mestre. Por esse motivo, resolveu fundar seu próprio gymnasium, a quem o nome de Liceu, cujo bosque era dedicado ao deus Likeon, uma das personificações de Apolo. Também hoje esse nome continua a ser utilizado, não tão aberto como a academia, que acabou virando sinônimo de produção de conhecimento, mas como estabelecimento de ensino secundário (vide o Liceu de Artes e Ofícios, célebre aqui em Terra da Garoa). Entre as duas instituições, há importantes diferenças metodológicas derivantes da forma de cada um pensar.

Quando nós observamos a esplêndida obra de Rafael Sanzio denominada “Escola de Atenas”, vemos no seu centro justamente nossos dois heróis, Platão e Aristóteles. 

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rafael#/media/Ficheiro:Escola_de_Atenas_-_Vaticano_2.jpg

Como toda boa obra de arte, a carga abstrata é tão ou mais importante do que a habilidade técnica, e o que vemos aqui é justamente o debate entre ambos os morubixabas gregos. Para o mais velho, o conhecimento era uma propriedade exclusiva do intelecto, que seria o mecanismo disponível para se atingir as formas perfeitas que plasmaram toda a realidade. Prova disso era seu grande interesse pela matemática, área do conhecimento que fornece parâmetros exatos do que seria essa tal realidade. Por esse motivo, Platão é representado com a face de Leonardo da Vinci, seu correspondente da ocasião, e com um dedo apontando para cima, onde estaria o Hiperurânio, ou o tal do Mundo das Ideias. Para Aristóteles, no entanto, a questão não se dá unicamente no campo das ideias, mas na realidade em si própria, ou seja, no mundo captável, de uma maneira muito mais orgânica do que ocorria com seu mestre. Sendo assim, é a partir da observação do universo circunstante que se extraem dados para se aproximar da verdade, em um processo claramente empírico. Aristóteles dava muita importância à coleta de dados e às ciências que necessitam de dinamismo empírico, principalmente a biologia, dando menor importância às formas hard code do Mundo das Ideias platônico. É representado, portanto, como seu representante Michelângelo e aponta para baixo com a palma da mão e para todas as direções com os dedos, indicando que a realidade está no aqui e no agora. 

Essa divisão ideal já deu, muitos séculos antes do grande embate moderno, as bases para o confronto entre racionalistas e empiristas que, no final das contas, provaram-se complementares. Para os primeiros, o conhecimento é, antes de mais nada, um exercício mental, que é capaz de extrair a realidade mediante o raciocínio puro. Já os outros não abriam mão de experienciar suas teorias para dar fundamento calcado na realidade. A coisa já nasceu aí.

Se fizermos uma rápida reflexão, constataremos que ambas as correntes se imiscuem, se imbricam, se abraçam. Grandes conclusões universais, como as distâncias astronômicas, são obtidas através de cálculos complexos, que praticamente prescindem de observações. É que quanto menos as sensações participarem da relação cognitiva, menos darão desvio às conclusões. Mas o diabo é que um telescópio poderoso foi colocado em pleno espaço sideral, para funcionar melhor do que se estivesse aqui na Terra. As máquinas, vejam vocês, também tem sensibilidade, e um equipamento desses funciona melhor fora porque tem menos refrações de luz. E isso ficou conhecido porque foi observado. Um não foge do outro.

Nos primórdios dessa linha de pensamento, Aristóteles dividia seu Liceu em dois períodos distintos. Na parte da manhã, chamado de esotérico, tratava de temas mais profundamente filosóficos, e tinha um número mais reduzido de alunos. Já na parte da tarde, tinha-se o período exotérico, com temas mais próximos ao dia-a-dia dos discípulos, voltados para a política, literatura e retórica. De toda forma, era seu hábito circular pelos jardins do Liceu ou mesmo pelas ruas da cidade enquanto dava suas aulas e preleções, justamente para trazer caráter mais empírico e menos especulativo com relação à Academia.

Esse método de ensino fez história, a ponto de se tornar sinônimo de aristotelismo. Eram os peripatéticos, o que, em uma tradução meio forçada, significa “aqueles que andam ao redor”. Sempre tendi a achar que esse nome teria a ver com o termo pathos, já que a própria palavra patético, que significa aquele que provoca compaixão ou tristeza, em decorrência do sofrimento que apresenta, tem o termo na sua raiz. Mas não. Esse pathos é sinônimo de caminho (path um inglês quer dizer exatamente isso), e o pensador ambulante é o símbolo da escola.

O Liceu ainda sobreviveu ao seu criador, por mais um bom tempo. Seus sucessores mais conhecidos foram Teofrasto, Estratão de Lâmpsaco, Alexandre de Afrodísias e Andrônico de Rodes, a quem coube fazer a organização das obras aristotélicas. O caráter empírico de seus estudos lhe deu o ar mais prático que é adotado no ensino profissionalizante, e, por esse motivo, os liceus espalhados pelo mundo estão voltados a essa parcela do mundo educacional, como na França, em Portugal e mesmo no Brasil.

Voltando ao presente, depois do passeio e do sorvetinho, ainda deu tempo para mais coisas, mas isso vai ficar para o próximo texto. Até lá e bons ventos a todos!

Recomendações:

Já que eu mencionei o filme, vai a indicação dele, que é muito bom mesmo.

ATTENBOROUGH, Richard. Gandhi. Filme. Columbia: EUA, índia, Reino Unido, 1982. Cor/PB. 188 min.


E o endereço do parque:

Passeio público 

Rua Presidente Carlos Cavalcanti, S/N

Centro Cívico

Curitiba/PR

A aproximadamente 405 km do centro de São Paulo 

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Navegações de cabotagem – o Memorial Paranista de Curitiba e a divergência entre mestre e discípulo sobre o papel da arte

(Divergências são ensinamentos. Dois dos maiores pensadores de todos os tempos não tinham consenso sobre a estética, e isso não é ruim)

“O escultor guiado pelas sombras e luz valoriza desde os maiores planos e formas até as mínimas saliências de um músculo. A escultura exige como todas as artes: proporções, ritmo e elegância no seu conjunto, harmonia de planos e de forma, justeza de planos, pureza de linhas e um modelar quente, pastoso e forte dentro de uma gama harmoniosa e sensível”.

João Turin

Olá!

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Eu sempre tive cachorro em casa, mas, como cada um dos filhos foi para um lado, também os bichos foram com eles. O emérito Homem-Cueca está em Taubaté, com a menina mais nova, enquanto a pequena Nala está em Curitiba, com o moleque mais velho. É uma gloriosa descendente de dachshund, agitada e fofoqueira por natureza, o que demanda movimentação para cansá-la, senão ninguém dorme. Ocorre que ela mora em condomínio, o que limita bastante suas possibilidades, e, para solucionar, nada como um bom parque. Há, entretanto, entraves. Seus “pais” se preocupam com o modesto tamanho e imensa empertigação da cadela sem completa noção de perigo, o que lhes tira o sossego perante as hordas de cachorros soltos*. Por outro lado, alguns parques não admitem cachorros, seja lá por qual motivo for. Sendo assim, há restrições que demandam alguma pesquisa. Vejam só, temos o Parque São Lourenço, que, ainda por cima, abriga o Memorial Paranista, com seu anexo jardim de esculturas. Parece interessante, vamos lá conhecer.

O parque em si corresponde à antiga área de uma fábrica de cola (Boutin), da qual estão mantidas a chaminé de tijolinhos e um dos galpões, devidamente convertido em espaço para educação artística e manutenção de ativos culturais.

Um estouro de represa ajudou essa empresa a encerrar suas atividades, o que demonstrou, de certa forma, que não era prudente manter atividades econômicas de peso naquele lugar. Com isso, a área acabou por se tornar um espaço de lazer, que foi sendo reforçada com o tempo. O resultado é um conjunto de trilhas cercando uma lagoa, por onde se pode andar de bicicleta, skate e, dadas suas elevações, de carrinho de rolimã.

E este é um dos lugares onde a pequena bisbilhoteira vem fazer os seus passeios desde então.

Este é um dos muitos parques de Curitiba que foram pensados para fazer a contenção de alagamentos. A lógica é simples: eles ficam em lugares baixos, aproveitando a existência de lagoas naturais. Com isso, em caso de chuvas torrenciais, o parque inunda, mas só ele. Lição para ser aprendida nesses tempos de mudança climática e de piscinões horrorosos, como existem na Terra da Garoa.

Com relação ao memorial, ele é dividido essencialmente em duas partes: um jardim de esculturas e um espaço expositivo, enriquecido por um teatro e uma lojinha, que ninguém é de ferro. Tudo aqui recende à obra do escultor João Turin, um dos principais cabeças do Movimento Paranista, uma corrente artístico-intelectual que procurou trazer a classe cultural paranaense ao universo do modernismo da década de 20, e colocar um horizonte próprio em ambiente cujo propósito era trazer brasilidade à arte brasileira. Temos aqui a fachada da casa de João Turin, que ele também usava de ateliê.

Espalhadas pela área verde, há quinze reproduções de suas esculturas, todas de grande porte e feitas em bronze.

Elas reproduzem a natureza e o homem que vivia nesse ambiente, em especial aqueles que compunham a história original do estado.

O Memorial em si é a composição de três edifícios, pelo vão dos quais há um grande corredor que serve como galeria.

Este corredor está repleto de baixos-relevos do autor, que retratam cenas do quotidiano e da vida simples de uma região que ainda tinha muito de aspectos campestres.

É aqui que fica o principal recinto de exposições das obras de Turin, além de conter uma série de informações biográficas. Você é recebido por esta estupenda Pietá.

Outras obras dignas de nota incorporam a cultura indígena e a mesclam com o grande distintivo paranaense, as araucárias, o que dá ao autor seu principal diferencial.


Uma obra expressa em um acervo rico, preponderantemente figurativa sem perder em abstração. É um artista que eu realmente não conhecia, e que me fez lembrar um pouco das tardes que eu passava no MUBE com as crianças.

Eu acabei por lembrar de um fato de quando tinha aulas de educação artística no ginásio. Embora fosse um bom aluno, meu desempenho era pouco mais que sofrível na disciplina, dada minha inabilidade natural no traço, denunciada desde logo pela minha letra desditosa. Para uma determinada aula, a professora Luiza mandou que levássemos gizes e agulhas para a aula, além dos guaches que já carregávamos na mochila. O objetivo era esculpir um gatafunho qualquer, e os melhores seriam expostos na escola. Se bem me lembro, era para fazer a “obra de arte” em classe e colorir como lição de casa. Se eu já tinha autocrítica suficiente para me desqualificar como desenhista e pintor, que faria com um teco de calcário e uma agulha enferrujada?

O resultado acabou surpreendendo a mim mesmo. Do alto de meus onze anos (acho), eu fui talhando duas peças decentes, onde estavam bem definidas a cabeça, corpo e membros de dois personagens ainda em processo de nascimento, mas já estruturados como deviam, incluindo os esboços dos rostos. Ainda não sabia muito bem o que ia sair dali, mas já estava definido que seriam duas figuras humanas. Em uma delas, os olhos ficaram implantados um pouco baixos, o que lhe deu um ar antigo, e viria a ser uma velhinha. Na outra, um defeito do próprio giz fez com que houvesse uma falha na região da boca, parecida com um dente, e lá foi virar um vampiro. Levadas para casa, as pecinhas receberam um acabamento com lixa de fósforo e pintadas, com uma mão de goma laca por baixo e outra de verniz por cima. Ficou realmente bonito, para alguém da minha idade e conjunto de interesses.

A questão é que não fui só eu quem gostou. Minha mãe mesma ficou admirada, e ela não era muito de dar mole na avaliação do que eu fazia (“É pra ele não se achar a última batatinha do pacote”, dizia, entre cruel e divertida). Coloquei em uma embalagem de bala e as levei para a escola. Se eu fiquei contente com o resultado e minha mãe foi condescendente, quem gostou mais, vejam vocês, foi a professora. O trabalhinho era para ficar exposto e voltar para seu dono, mas ela pediu para ficar com a dupla. Era um elogio para mim, e concedi. Sabem quando eu fiz outra? Nunca mais.

Contei essa história toda unicamente para introduzir uma questão de consciência do que se pode e do que se está disposto a fazer para alcançar objetivos maiores. Uma qualidade conseguida na produção de uma obra de arte envolve uma disposição em se aperfeiçoar até um ponto em que nos perguntamos se vale a pena tanto esforço. Eu tenho uma prima que aprendeu na marra a tocar piano, ficando não sei quantos anos na academia e outros tantos no conservatório. Se eu disser a vi tocar na casa dela poucas vezes, seria uma mentira: eu NUNCA a vi tocar. E ela sabe, ela tem a técnica e o diploma. Mas o tempo gasto se tornou obrigação e matou a vontade que ela tinha. Simples assim.

Então acabamos encarando a arte como algo meio subalterno, com uma importância secundária? Depende um pouco. Claro que, em um país onde se vende o almoço para comprar a janta, tudo que não é essencial para a sobrevivência acaba mesmo ficando em um plano acessório, que se volta mais ao prazer do que às necessidades, e isso limita muito nossas expectativas. Mas é possível encarar a arte por outro viés, porque ela traz respostas que a mera cientificidade ou olhar filosófico não conseguem dar. Traspassa a capacidade das mesmas de devolver a verdade a quem lança questões. O que podemos pensar disso?

É preciso pôr na balança a assertiva da arte como forma de conhecimento. Quem fez isso pela primeira vez, colocando entre parênteses a validade da estética foi Platão, através da boca de Sócrates. Mas é preciso compreender bem o que ele pensava.

No seu livro A República, Platão pondera sobre o papel do artista sob o prisma de seu sistema epistemológico. A teoria central platônica diz que existe entre todos os entes existentes no universo uma espécie de divindade a quem dá o nome de demiurgo, que seria o responsável não por criar as coisas tangíveis, mas por lhes criar a forma. Esse demiurgo extrai material do caos original e aplica a uma ideia que permeia todos os objetos da mesma categoria, o que acaba, por, de uma forma ou de outra, irmaná-los. Ele usa como exemplo um móvel, e nós faremos o mesmo. Imagine uma mesa. Ela pode ser uma mesa de cozinha, daquelas que serve de apoio para quem tem as panelas no fogo; pode ser uma mesa de jantar, com seu respectivo tampo de vidro, ou uma mesinha de canto, que segura um antigo telefone; ou uma mesa de escritório, cheia de gavetas, ou até mesmo uma mesa mortuária, cercada de velas e cruzes. O fundamental é que todas elas guardam consigo a essência da mesa, algo que faz com que ela ganhe esse designativo. É exatamente essa essência que o demiurgo ordenou a partir do caos e a tornou uma forma, que habita o mundo das ideias. 

É preciso clarificar isso um pouco. O demiurgo não extrai as coisas do nada, como faz, por exemplo, o deus cristão. Na concepção platônica, este demiurgo encontra o universo em estado de caos, ou seja, na mais absoluta desordem, porém preexistente. Para que esse caos se transforme em cosmos, ou seja, o universo ordenado, com seus ciclos, suas repetições e suas leis, é preciso que o demiurgo modele as formas, de modo a que tudo passe a ter uma constituição, sem a qual nada possuiria uma essência. Sendo assim, conhecemos a essência da mesa porque nosso intelecto consegue realizar um processo chamado de methexis, que é o reconhecimento da participação de uma mesa em particular com a ideia originária e universal de mesa.

O que acontece quando um marceneiro resolve então construir uma mesa? Ele busca com seu intelecto a forma essencial da mesa que está no campo das ideias e, dessa forma, traduz em material algo que estava unicamente naquele mundo intelectivo criado pelo demiurgo. Novamente aqui podemos pensar em um monte de modelos de mesas disponíveis, mas os critérios atendidos são de sua especificidade, ou seja, a mesa em sua singularidade, daquela mesa em particular, uma concreção da mesa intelectiva. Ocorre que essa mesa fabricada pelo artífice plasma a mesa ideal, mas não é igual a ela, não tem a sua perfeição. Sempre haverá na execução algo que destoe do que é o plano intelectual. Lá, conseguimos o círculo perfeito, o triângulo perfeito, a reta sem nenhum milímetro de desvio, e só lá. O mundo sensível tem um pacote de desvios que fazem com que tenhamos, diante de nós, as aparências. Usando o melhor dos compassos, temos a aparência do círculo perfeito, mas se visto em olhar microscópico, acharem um monte de defeitos.

Entretanto, se o que captamos pelos nossos sentidos nos permite reconhecer o que é o objeto, temos então a tal da methexis acontecendo. Há uma coparticipação entre o novo objeto e seu paradigma fundamental, de forma a colocar a peça no rol de determinações ontológicas da ideia em si, e o artesão foi, com maior ou menor precisão, trazer a essência do mundo das ideias para seu artefato, e, nesse sentido, ele é um criador, ele também uma cópia, mas desta vez do demiurgo, com a diferença de que não extrai sua matéria do caos, mas da própria natureza. Ele não cria o objeto em si, mas uma cópia do mesmo.

Agora imagine que dê na cabeça de um escultor como João Turin de fazer uma obra em pedra que represente uma mesa. Ele pode fazer uma mesa majestosa, que serviria para um gigante. Bem, gigantes não existem, então a mesa não serve para seu propósito. Poderia fazer uma mesa minúscula, daquelas que cabem em uma casa de bonecas. Ora, bonecas são simulacros de pessoas, portanto são imperfeitas. E mesmo que fizesse uma de tamanho normal, a ela faltaria o objetivo: a obra de arte não como artigo de uso, além de que, convenhamos, não é a coisa mais prática do mundo uma mesa de pedra, embora seja possível. Pior ainda se for uma pintura, que não guarda com a peça original nem ao menos a tridimensionalidade. O artista não faz methexis com o demiurgo, assim como o artífice faz. E isso é alvo de desprezo para Platão, porque a mimética é uma farsa, neste caso.

Pois então a conclusão é que não temos a methexis, ao contrário da mesa urdida pelo marceneiro. O escultor ou o pintor exercem seu ofício através de uma sensibilidade que já se baseia no mundo sensível. É uma cópia da cópia, já distante do mundo intelectivo em dois graus. Poderia ser ainda pior, se o pintor fizesse sua tela a partir de um relato, o que daria três níveis de distanciamento do mundo das ideias: o marceneiro que fez o móvel, o observador que o descreveu e o artista que lhe levou à tela. Se o conhecimento se dá por aproximação racional ao mundo das ideias, no plano estético, ou seja, no âmbito do sensível, cada vez mais nos distanciamos da verdade, e nos colocamos em uma situação de falsificação.

Desta forma, podemos concluir que a arte, na cosmovisão platônica, é antes uma inutilidade quando associada ao conhecimento. No entanto, seu discípulo Aristóteles é-lhe quase um opositor em muitos aspectos, e este é mais um. A importância que o moço de Estagira dá à arte e à estética por extensão é de dar completude educacional e de dar propósito ao conjunto teológico grego.

Começando a conversa, e embora não negue uma espiritualidade da construção do cosmos, Aristóteles não cria no mundo das ideias e no demiurgo, por consequência. O que ele tem é algo mais voltado para a ética do que para a epistemologia.

Aristóteles fala muito sobre a eudaimonia, a felicidade como causa final para o ser humano. Nesse sistema de causas, a causa final é o propósito para que algum objeto tenha vindo a existir. Por exemplo, uma mesa tem como causa final servir como um plano elevado que se aplique a facilitar a vida de quem desenvolve alguma atividade, seja ela qual for: trabalhar, comer, escrever e etc. A busca pela felicidade é o grande propósito do ser humano, a sua causa final. E, ato contínuo, o prazer está envolvido nessa relação.

Na primeira parte de sua obra A Poética, Aristóteles fala sobre a tragédia (a segunda, sobre a comédia, infelizmente foi perdida e até hoje não recuperada). Entre tragédia e comédia, a principal diferença não está em que a primeira é triste e a segunda alegre, mas que a tragédia é uma reprodução da vida como ela é, enquanto a comédia é a sua pura transgressão. Tristeza e alegria são meros reflexos, porque, conforme reportava Aristóteles, a vida é repleta de pathos, ou seja, de sentimentos fortes, pesados, muitas vezes acompanhados de intenso sofrimento.

O principal objetivo da tragédia é exatamente obter o que Platão mais queria evitar: a mimesis. Através da imitação, a arte traz aprendizado para o ser humano, porque lhe permite tanto vislumbrar uma trajetória semelhante à sua própria vida, quanto se integrar a essa espécie de destino comum da humanidade que é o pathos. Dessa forma, quando um artista traduz uma existência trágica, ele quer propiciar uma oportunidade para seus espectadores de reconhecer seu sentimento puro com relação ao seu papel como ser humano, em um processo chamado de catarse.

Mas não era uma questão de prazer? Onde a catarse é prazerosa, se prefigura o sofrimento? A catarse não é o prazer do regozijo, como pode fazer parecer um ideal estético de beleza, mas do reconhecimento de si mesmo como parte do destino humano, do pertencimento comum próprio da espécie, cujo sofrimento é inevitável. Quando observa que os mesmos sentimentos que lhe povoam ocorrem com outros humanos e até com deuses, o ser que presencia o fenômeno da catarse se liberta da repressão de seus próprios medos e encargos, que passam a ser encarados com maior naturalidade.

Esse é um processo que faz parte do aprendizado do cidadão, a quem Aristóteles dava sobeja importância, e entra em seu conceito de Paideia, a educação integral do ser humano, que lança mão de diversos expedientes para prepará-lo em todos os seus aspectos, inclusive utilizados aparatos estéticos. Deslindarei esse termo melhor, em momento adequado.

Por este motivo, os dois filósofos basilares da Grécia Antiga possuíam divergências tão sérias em sua maneira de encarar a arte: o propósito desta para um não coincide com que o outro via na sua principal utilidade. E com isso seria provável que ambos estariam aqui neste Memorial com feições bastante distintas - um carrancudo e outro deslumbrado, e, entre eles, a pequena Nala dando seus puxavantes para caçar suas lagartixas. Bons ventos a todos!


Recomendações:

As principais anotações platônicas estão na mais que recomendada A República, que já utilizei bastante por aqui, mas indico mais uma vez;

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.


Com relação a Aristóteles, vai para a obra já mencionada no texto presente:

ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008.

*Um franco exagero.