(Divergências são ensinamentos. Dois dos maiores pensadores de todos os tempos não tinham consenso sobre a estética, e isso não é ruim)
“O escultor guiado pelas sombras e luz valoriza desde os maiores planos e formas até as mínimas saliências de um músculo. A escultura exige como todas as artes: proporções, ritmo e elegância no seu conjunto, harmonia de planos e de forma, justeza de planos, pureza de linhas e um modelar quente, pastoso e forte dentro de uma gama harmoniosa e sensível”.
João Turin
Olá!
Eu sempre tive cachorro em casa, mas, como cada um dos
filhos foi para um lado, também os bichos foram com eles. O emérito Homem-Cueca
está em Taubaté, com a menina mais nova, enquanto a pequena Nala está em
Curitiba, com o moleque mais velho. É uma gloriosa descendente de dachshund,
agitada e fofoqueira por natureza, o que demanda movimentação para cansá-la,
senão ninguém dorme. Ocorre que ela mora em condomínio, o que limita bastante
suas possibilidades, e, para solucionar, nada como um bom parque. Há,
entretanto, entraves. Seus “pais” se preocupam com o modesto tamanho e imensa
empertigação da cadela sem completa noção de perigo, o que lhes tira o sossego
perante as hordas de cachorros soltos*. Por outro lado, alguns parques não
admitem cachorros, seja lá por qual motivo for. Sendo assim, há restrições que
demandam alguma pesquisa. Vejam só, temos o Parque São Lourenço, que, ainda por
cima, abriga o Memorial Paranista, com seu anexo jardim de esculturas. Parece
interessante, vamos lá conhecer.
O parque em si corresponde à antiga área de uma fábrica de
cola (Boutin), da qual estão mantidas a chaminé de tijolinhos e um dos galpões,
devidamente convertido em espaço para educação artística e manutenção de ativos
culturais.
Um estouro de represa ajudou essa empresa a encerrar suas
atividades, o que demonstrou, de certa forma, que não era prudente manter
atividades econômicas de peso naquele lugar. Com isso, a área acabou por se
tornar um espaço de lazer, que foi sendo reforçada com o tempo. O resultado é
um conjunto de trilhas cercando uma lagoa, por onde se pode andar de bicicleta,
skate e, dadas suas elevações, de carrinho de rolimã.
E este é um dos lugares onde a pequena bisbilhoteira vem
fazer os seus passeios desde então.
Este é um dos muitos parques de Curitiba que foram pensados
para fazer a contenção de alagamentos. A lógica é simples: eles ficam em
lugares baixos, aproveitando a existência de lagoas naturais. Com isso, em caso
de chuvas torrenciais, o parque inunda, mas só ele. Lição para ser aprendida
nesses tempos de mudança climática e de piscinões horrorosos, como existem na
Terra da Garoa.
Com relação ao memorial, ele é dividido essencialmente em
duas partes: um jardim de esculturas e um espaço expositivo, enriquecido por um
teatro e uma lojinha, que ninguém é de ferro. Tudo aqui recende à obra do
escultor João Turin, um dos principais cabeças do Movimento Paranista, uma
corrente artístico-intelectual que procurou trazer a classe cultural paranaense
ao universo do modernismo da década de 20, e colocar um horizonte próprio em
ambiente cujo propósito era trazer brasilidade à arte brasileira. Temos aqui a
fachada da casa de João Turin, que ele também usava de ateliê.
Espalhadas pela área verde, há quinze reproduções de suas
esculturas, todas de grande porte e feitas em bronze.
Elas reproduzem a natureza e o homem que vivia nesse
ambiente, em especial aqueles que compunham a história original do estado.
O Memorial em si é a composição de três edifícios, pelo vão
dos quais há um grande corredor que serve como galeria.
Este corredor está repleto de baixos-relevos do autor, que
retratam cenas do quotidiano e da vida simples de uma região que ainda tinha
muito de aspectos campestres.
É aqui que fica o principal recinto de exposições das obras
de Turin, além de conter uma série de informações biográficas. Você é recebido
por esta estupenda Pietá.
Outras obras dignas de nota incorporam a cultura indígena e
a mesclam com o grande distintivo paranaense, as araucárias, o que dá ao autor
seu principal diferencial.
Uma obra expressa em um acervo rico, preponderantemente
figurativa sem perder em abstração. É um artista que eu realmente não conhecia,
e que me fez lembrar um pouco das tardes que eu passava no MUBE com as
crianças.
Eu acabei por lembrar de um fato de quando tinha aulas de
educação artística no ginásio. Embora fosse um bom aluno, meu desempenho era
pouco mais que sofrível na disciplina, dada minha inabilidade natural no traço,
denunciada desde logo pela minha letra desditosa. Para uma determinada aula, a
professora Luiza mandou que levássemos gizes e agulhas para a aula, além dos
guaches que já carregávamos na mochila. O objetivo era esculpir um gatafunho
qualquer, e os melhores seriam expostos na escola. Se bem me lembro, era para
fazer a “obra de arte” em classe e colorir como lição de casa. Se eu já tinha
autocrítica suficiente para me desqualificar como desenhista e pintor, que
faria com um teco de calcário e uma agulha enferrujada?
O resultado acabou surpreendendo a mim mesmo. Do alto de
meus onze anos (acho), eu fui talhando duas peças decentes, onde estavam bem
definidas a cabeça, corpo e membros de dois personagens ainda em processo de
nascimento, mas já estruturados como deviam, incluindo os esboços dos rostos.
Ainda não sabia muito bem o que ia sair dali, mas já estava definido que seriam
duas figuras humanas. Em uma delas, os olhos ficaram implantados um pouco
baixos, o que lhe deu um ar antigo, e viria a ser uma velhinha. Na outra, um
defeito do próprio giz fez com que houvesse uma falha na região da boca,
parecida com um dente, e lá foi virar um vampiro. Levadas para casa, as
pecinhas receberam um acabamento com lixa de fósforo e pintadas, com uma mão de
goma laca por baixo e outra de verniz por cima. Ficou realmente bonito, para alguém
da minha idade e conjunto de interesses.
A questão é que não fui só eu quem gostou. Minha mãe mesma
ficou admirada, e ela não era muito de dar mole na avaliação do que eu fazia
(“É pra ele não se achar a última batatinha do pacote”, dizia, entre cruel e
divertida). Coloquei em uma embalagem de bala e as levei para a escola. Se eu
fiquei contente com o resultado e minha mãe foi condescendente, quem gostou
mais, vejam vocês, foi a professora. O trabalhinho era para ficar exposto e
voltar para seu dono, mas ela pediu para ficar com a dupla. Era um elogio para
mim, e concedi. Sabem quando eu fiz outra? Nunca mais.
Contei essa história toda unicamente para introduzir uma
questão de consciência do que se pode e do que se está disposto a fazer para
alcançar objetivos maiores. Uma qualidade conseguida na produção de uma obra de
arte envolve uma disposição em se aperfeiçoar até um ponto em que nos
perguntamos se vale a pena tanto esforço. Eu tenho uma prima que aprendeu na
marra a tocar piano, ficando não sei quantos anos na academia e outros tantos
no conservatório. Se eu disser a vi tocar na casa dela poucas vezes, seria uma
mentira: eu NUNCA a vi tocar. E ela sabe, ela tem a técnica e o diploma. Mas o
tempo gasto se tornou obrigação e matou a vontade que ela tinha. Simples assim.
Então acabamos encarando a arte como algo meio subalterno,
com uma importância secundária? Depende um pouco. Claro que, em um país onde se
vende o almoço para comprar a janta, tudo que não é essencial para a
sobrevivência acaba mesmo ficando em um plano acessório, que se volta mais ao
prazer do que às necessidades, e isso limita muito nossas expectativas. Mas é
possível encarar a arte por outro viés, porque ela traz respostas que a mera
cientificidade ou olhar filosófico não conseguem dar. Traspassa a capacidade
das mesmas de devolver a verdade a quem lança questões. O que podemos pensar
disso?
É preciso pôr na balança a assertiva da arte como forma de
conhecimento. Quem fez isso pela primeira vez, colocando entre parênteses a
validade da estética foi Platão, através da boca de Sócrates. Mas é preciso
compreender bem o que ele pensava.
No seu livro A República, Platão pondera sobre o papel do
artista sob o prisma de seu sistema epistemológico. A teoria central platônica
diz que existe entre todos os entes existentes no universo uma espécie de
divindade a quem dá o nome de demiurgo, que seria o responsável não por
criar as coisas tangíveis, mas por lhes criar a forma. Esse demiurgo extrai
material do caos original e aplica a uma ideia que permeia todos os objetos da
mesma categoria, o que acaba, por, de uma forma ou de outra, irmaná-los. Ele
usa como exemplo um móvel, e nós faremos o mesmo. Imagine uma mesa. Ela pode
ser uma mesa de cozinha, daquelas que serve de apoio para quem tem as panelas
no fogo; pode ser uma mesa de jantar, com seu respectivo tampo de vidro, ou uma
mesinha de canto, que segura um antigo telefone; ou uma mesa de escritório,
cheia de gavetas, ou até mesmo uma mesa mortuária, cercada de velas e cruzes. O
fundamental é que todas elas guardam consigo a essência da mesa, algo que faz
com que ela ganhe esse designativo. É exatamente essa essência que o demiurgo
ordenou a partir do caos e a tornou uma forma, que habita o mundo das
ideias.
É preciso clarificar isso um pouco. O demiurgo não extrai as
coisas do nada, como faz, por exemplo, o deus cristão. Na concepção platônica,
este demiurgo encontra o universo em estado de caos, ou seja, na mais absoluta
desordem, porém preexistente. Para que esse caos se transforme em cosmos, ou
seja, o universo ordenado, com seus ciclos, suas repetições e suas leis, é
preciso que o demiurgo modele as formas, de modo a que tudo passe a ter uma
constituição, sem a qual nada possuiria uma essência. Sendo assim, conhecemos a
essência da mesa porque nosso intelecto consegue realizar um processo chamado
de methexis, que é o reconhecimento da participação de uma mesa
em particular com a ideia originária e universal de mesa.
O que acontece quando um marceneiro resolve então construir
uma mesa? Ele busca com seu intelecto a forma essencial da mesa que está no
campo das ideias e, dessa forma, traduz em material algo que estava unicamente
naquele mundo intelectivo criado pelo demiurgo. Novamente aqui podemos pensar
em um monte de modelos de mesas disponíveis, mas os critérios atendidos são de
sua especificidade, ou seja, a mesa em sua singularidade, daquela mesa em
particular, uma concreção da mesa intelectiva. Ocorre que essa mesa fabricada
pelo artífice plasma a mesa ideal, mas não é igual a ela, não tem a sua
perfeição. Sempre haverá na execução algo que destoe do que é o plano
intelectual. Lá, conseguimos o círculo perfeito, o triângulo perfeito, a reta
sem nenhum milímetro de desvio, e só lá. O mundo sensível tem um pacote de
desvios que fazem com que tenhamos, diante de nós, as aparências. Usando o
melhor dos compassos, temos a aparência do círculo perfeito, mas se visto em
olhar microscópico, acharem um monte de defeitos.
Entretanto, se o que captamos pelos nossos sentidos nos
permite reconhecer o que é o objeto, temos então a tal da methexis acontecendo.
Há uma coparticipação entre o novo objeto e seu paradigma fundamental, de forma
a colocar a peça no rol de determinações ontológicas da ideia em si, e o
artesão foi, com maior ou menor precisão, trazer a essência do mundo das ideias
para seu artefato, e, nesse sentido, ele é um criador, ele também uma cópia,
mas desta vez do demiurgo, com a diferença de que não extrai sua matéria do
caos, mas da própria natureza. Ele não cria o objeto em si, mas uma cópia do
mesmo.
Agora imagine que dê na cabeça de um escultor como João
Turin de fazer uma obra em pedra que represente uma mesa. Ele pode fazer uma mesa
majestosa, que serviria para um gigante. Bem, gigantes não existem, então a
mesa não serve para seu propósito. Poderia fazer uma mesa minúscula, daquelas
que cabem em uma casa de bonecas. Ora, bonecas são simulacros de pessoas,
portanto são imperfeitas. E mesmo que fizesse uma de tamanho normal, a ela
faltaria o objetivo: a obra de arte não como artigo de uso, além de que,
convenhamos, não é a coisa mais prática do mundo uma mesa de pedra, embora seja
possível. Pior ainda se for uma pintura, que não guarda com a peça original nem
ao menos a tridimensionalidade. O artista não faz methexis com o demiurgo,
assim como o artífice faz. E isso é alvo de desprezo para Platão, porque a mimética
é uma farsa, neste caso.
Pois então a conclusão é que não temos a methexis, ao
contrário da mesa urdida pelo marceneiro. O escultor ou o pintor exercem seu
ofício através de uma sensibilidade que já se baseia no mundo sensível. É uma
cópia da cópia, já distante do mundo intelectivo em dois graus. Poderia ser
ainda pior, se o pintor fizesse sua tela a partir de um relato, o que daria
três níveis de distanciamento do mundo das ideias: o marceneiro que fez o
móvel, o observador que o descreveu e o artista que lhe levou à tela. Se o
conhecimento se dá por aproximação racional ao mundo das ideias, no plano
estético, ou seja, no âmbito do sensível, cada vez mais nos distanciamos da
verdade, e nos colocamos em uma situação de falsificação.
Desta forma, podemos concluir que a arte, na cosmovisão
platônica, é antes uma inutilidade quando associada ao conhecimento. No
entanto, seu discípulo Aristóteles é-lhe quase um opositor em muitos aspectos,
e este é mais um. A importância que o moço de Estagira dá à arte e à estética
por extensão é de dar completude educacional e de dar propósito ao conjunto
teológico grego.
Começando a conversa, e embora não negue uma espiritualidade
da construção do cosmos, Aristóteles não cria no mundo das ideias e no
demiurgo, por consequência. O que ele tem é algo mais voltado para a ética do
que para a epistemologia.
Aristóteles fala muito sobre a eudaimonia, a
felicidade como causa final para o ser humano. Nesse sistema de causas, a causa
final é o propósito para que algum objeto tenha vindo a existir. Por exemplo,
uma mesa tem como causa final servir como um plano elevado que se aplique a
facilitar a vida de quem desenvolve alguma atividade, seja ela qual for:
trabalhar, comer, escrever e etc. A busca pela felicidade é o grande propósito
do ser humano, a sua causa final. E, ato contínuo, o prazer está envolvido
nessa relação.
Na primeira parte de sua obra A Poética, Aristóteles fala
sobre a tragédia (a segunda, sobre a comédia, infelizmente foi perdida e até
hoje não recuperada). Entre tragédia e comédia, a principal diferença não está
em que a primeira é triste e a segunda alegre, mas que a tragédia é uma
reprodução da vida como ela é, enquanto a comédia é a sua pura transgressão.
Tristeza e alegria são meros reflexos, porque, conforme reportava Aristóteles,
a vida é repleta de pathos, ou seja, de sentimentos fortes, pesados,
muitas vezes acompanhados de intenso sofrimento.
O principal objetivo da tragédia é exatamente obter o que
Platão mais queria evitar: a mimesis. Através da imitação, a arte traz
aprendizado para o ser humano, porque lhe permite tanto vislumbrar uma
trajetória semelhante à sua própria vida, quanto se integrar a essa espécie de
destino comum da humanidade que é o pathos. Dessa forma, quando um artista
traduz uma existência trágica, ele quer propiciar uma oportunidade para seus
espectadores de reconhecer seu sentimento puro com relação ao seu papel como
ser humano, em um processo chamado de catarse.
Mas não era uma questão de prazer? Onde a catarse é
prazerosa, se prefigura o sofrimento? A catarse não é o prazer do regozijo,
como pode fazer parecer um ideal estético de beleza, mas do reconhecimento de
si mesmo como parte do destino humano, do pertencimento comum próprio da
espécie, cujo sofrimento é inevitável. Quando observa que os mesmos sentimentos
que lhe povoam ocorrem com outros humanos e até com deuses, o ser que presencia
o fenômeno da catarse se liberta da repressão de seus próprios medos e
encargos, que passam a ser encarados com maior naturalidade.
Esse é um processo que faz parte do aprendizado do cidadão,
a quem Aristóteles dava sobeja importância, e entra em seu conceito de Paideia,
a educação integral do ser humano, que lança mão de diversos expedientes para
prepará-lo em todos os seus aspectos, inclusive utilizados aparatos estéticos.
Deslindarei esse termo melhor, em momento adequado.
Por este motivo, os dois filósofos basilares da Grécia
Antiga possuíam divergências tão sérias em sua maneira de encarar a arte: o
propósito desta para um não coincide com que o outro via na sua principal
utilidade. E com isso seria provável que ambos estariam aqui neste Memorial com
feições bastante distintas - um carrancudo e outro deslumbrado, e, entre eles,
a pequena Nala dando seus puxavantes para caçar suas lagartixas. Bons ventos a
todos!
Recomendações:
As principais anotações platônicas estão na mais que
recomendada A República, que já utilizei bastante por aqui, mas indico mais uma
vez;
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.
Com relação a Aristóteles, vai para a obra já mencionada no
texto presente:
ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2008.
*Um franco exagero.
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