Marcadores

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Navegações de cabotagem – o Memorial Paranista de Curitiba e a divergência entre mestre e discípulo sobre o papel da arte

(Divergências são ensinamentos. Dois dos maiores pensadores de todos os tempos não tinham consenso sobre a estética, e isso não é ruim)

“O escultor guiado pelas sombras e luz valoriza desde os maiores planos e formas até as mínimas saliências de um músculo. A escultura exige como todas as artes: proporções, ritmo e elegância no seu conjunto, harmonia de planos e de forma, justeza de planos, pureza de linhas e um modelar quente, pastoso e forte dentro de uma gama harmoniosa e sensível”.

João Turin

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Eu sempre tive cachorro em casa, mas, como cada um dos filhos foi para um lado, também os bichos foram com eles. O emérito Homem-Cueca está em Taubaté, com a menina mais nova, enquanto a pequena Nala está em Curitiba, com o moleque mais velho. É uma gloriosa descendente de dachshund, agitada e fofoqueira por natureza, o que demanda movimentação para cansá-la, senão ninguém dorme. Ocorre que ela mora em condomínio, o que limita bastante suas possibilidades, e, para solucionar, nada como um bom parque. Há, entretanto, entraves. Seus “pais” se preocupam com o modesto tamanho e imensa empertigação da cadela sem completa noção de perigo, o que lhes tira o sossego perante as hordas de cachorros soltos*. Por outro lado, alguns parques não admitem cachorros, seja lá por qual motivo for. Sendo assim, há restrições que demandam alguma pesquisa. Vejam só, temos o Parque São Lourenço, que, ainda por cima, abriga o Memorial Paranista, com seu anexo jardim de esculturas. Parece interessante, vamos lá conhecer.

O parque em si corresponde à antiga área de uma fábrica de cola (Boutin), da qual estão mantidas a chaminé de tijolinhos e um dos galpões, devidamente convertido em espaço para educação artística e manutenção de ativos culturais.

Um estouro de represa ajudou essa empresa a encerrar suas atividades, o que demonstrou, de certa forma, que não era prudente manter atividades econômicas de peso naquele lugar. Com isso, a área acabou por se tornar um espaço de lazer, que foi sendo reforçada com o tempo. O resultado é um conjunto de trilhas cercando uma lagoa, por onde se pode andar de bicicleta, skate e, dadas suas elevações, de carrinho de rolimã.

E este é um dos lugares onde a pequena bisbilhoteira vem fazer os seus passeios desde então.

Este é um dos muitos parques de Curitiba que foram pensados para fazer a contenção de alagamentos. A lógica é simples: eles ficam em lugares baixos, aproveitando a existência de lagoas naturais. Com isso, em caso de chuvas torrenciais, o parque inunda, mas só ele. Lição para ser aprendida nesses tempos de mudança climática e de piscinões horrorosos, como existem na Terra da Garoa.

Com relação ao memorial, ele é dividido essencialmente em duas partes: um jardim de esculturas e um espaço expositivo, enriquecido por um teatro e uma lojinha, que ninguém é de ferro. Tudo aqui recende à obra do escultor João Turin, um dos principais cabeças do Movimento Paranista, uma corrente artístico-intelectual que procurou trazer a classe cultural paranaense ao universo do modernismo da década de 20, e colocar um horizonte próprio em ambiente cujo propósito era trazer brasilidade à arte brasileira. Temos aqui a fachada da casa de João Turin, que ele também usava de ateliê.

Espalhadas pela área verde, há quinze reproduções de suas esculturas, todas de grande porte e feitas em bronze.

Elas reproduzem a natureza e o homem que vivia nesse ambiente, em especial aqueles que compunham a história original do estado.

O Memorial em si é a composição de três edifícios, pelo vão dos quais há um grande corredor que serve como galeria.

Este corredor está repleto de baixos-relevos do autor, que retratam cenas do quotidiano e da vida simples de uma região que ainda tinha muito de aspectos campestres.

É aqui que fica o principal recinto de exposições das obras de Turin, além de conter uma série de informações biográficas. Você é recebido por esta estupenda Pietá.

Outras obras dignas de nota incorporam a cultura indígena e a mesclam com o grande distintivo paranaense, as araucárias, o que dá ao autor seu principal diferencial.


Uma obra expressa em um acervo rico, preponderantemente figurativa sem perder em abstração. É um artista que eu realmente não conhecia, e que me fez lembrar um pouco das tardes que eu passava no MUBE com as crianças.

Eu acabei por lembrar de um fato de quando tinha aulas de educação artística no ginásio. Embora fosse um bom aluno, meu desempenho era pouco mais que sofrível na disciplina, dada minha inabilidade natural no traço, denunciada desde logo pela minha letra desditosa. Para uma determinada aula, a professora Luiza mandou que levássemos gizes e agulhas para a aula, além dos guaches que já carregávamos na mochila. O objetivo era esculpir um gatafunho qualquer, e os melhores seriam expostos na escola. Se bem me lembro, era para fazer a “obra de arte” em classe e colorir como lição de casa. Se eu já tinha autocrítica suficiente para me desqualificar como desenhista e pintor, que faria com um teco de calcário e uma agulha enferrujada?

O resultado acabou surpreendendo a mim mesmo. Do alto de meus onze anos (acho), eu fui talhando duas peças decentes, onde estavam bem definidas a cabeça, corpo e membros de dois personagens ainda em processo de nascimento, mas já estruturados como deviam, incluindo os esboços dos rostos. Ainda não sabia muito bem o que ia sair dali, mas já estava definido que seriam duas figuras humanas. Em uma delas, os olhos ficaram implantados um pouco baixos, o que lhe deu um ar antigo, e viria a ser uma velhinha. Na outra, um defeito do próprio giz fez com que houvesse uma falha na região da boca, parecida com um dente, e lá foi virar um vampiro. Levadas para casa, as pecinhas receberam um acabamento com lixa de fósforo e pintadas, com uma mão de goma laca por baixo e outra de verniz por cima. Ficou realmente bonito, para alguém da minha idade e conjunto de interesses.

A questão é que não fui só eu quem gostou. Minha mãe mesma ficou admirada, e ela não era muito de dar mole na avaliação do que eu fazia (“É pra ele não se achar a última batatinha do pacote”, dizia, entre cruel e divertida). Coloquei em uma embalagem de bala e as levei para a escola. Se eu fiquei contente com o resultado e minha mãe foi condescendente, quem gostou mais, vejam vocês, foi a professora. O trabalhinho era para ficar exposto e voltar para seu dono, mas ela pediu para ficar com a dupla. Era um elogio para mim, e concedi. Sabem quando eu fiz outra? Nunca mais.

Contei essa história toda unicamente para introduzir uma questão de consciência do que se pode e do que se está disposto a fazer para alcançar objetivos maiores. Uma qualidade conseguida na produção de uma obra de arte envolve uma disposição em se aperfeiçoar até um ponto em que nos perguntamos se vale a pena tanto esforço. Eu tenho uma prima que aprendeu na marra a tocar piano, ficando não sei quantos anos na academia e outros tantos no conservatório. Se eu disser a vi tocar na casa dela poucas vezes, seria uma mentira: eu NUNCA a vi tocar. E ela sabe, ela tem a técnica e o diploma. Mas o tempo gasto se tornou obrigação e matou a vontade que ela tinha. Simples assim.

Então acabamos encarando a arte como algo meio subalterno, com uma importância secundária? Depende um pouco. Claro que, em um país onde se vende o almoço para comprar a janta, tudo que não é essencial para a sobrevivência acaba mesmo ficando em um plano acessório, que se volta mais ao prazer do que às necessidades, e isso limita muito nossas expectativas. Mas é possível encarar a arte por outro viés, porque ela traz respostas que a mera cientificidade ou olhar filosófico não conseguem dar. Traspassa a capacidade das mesmas de devolver a verdade a quem lança questões. O que podemos pensar disso?

É preciso pôr na balança a assertiva da arte como forma de conhecimento. Quem fez isso pela primeira vez, colocando entre parênteses a validade da estética foi Platão, através da boca de Sócrates. Mas é preciso compreender bem o que ele pensava.

No seu livro A República, Platão pondera sobre o papel do artista sob o prisma de seu sistema epistemológico. A teoria central platônica diz que existe entre todos os entes existentes no universo uma espécie de divindade a quem dá o nome de demiurgo, que seria o responsável não por criar as coisas tangíveis, mas por lhes criar a forma. Esse demiurgo extrai material do caos original e aplica a uma ideia que permeia todos os objetos da mesma categoria, o que acaba, por, de uma forma ou de outra, irmaná-los. Ele usa como exemplo um móvel, e nós faremos o mesmo. Imagine uma mesa. Ela pode ser uma mesa de cozinha, daquelas que serve de apoio para quem tem as panelas no fogo; pode ser uma mesa de jantar, com seu respectivo tampo de vidro, ou uma mesinha de canto, que segura um antigo telefone; ou uma mesa de escritório, cheia de gavetas, ou até mesmo uma mesa mortuária, cercada de velas e cruzes. O fundamental é que todas elas guardam consigo a essência da mesa, algo que faz com que ela ganhe esse designativo. É exatamente essa essência que o demiurgo ordenou a partir do caos e a tornou uma forma, que habita o mundo das ideias. 

É preciso clarificar isso um pouco. O demiurgo não extrai as coisas do nada, como faz, por exemplo, o deus cristão. Na concepção platônica, este demiurgo encontra o universo em estado de caos, ou seja, na mais absoluta desordem, porém preexistente. Para que esse caos se transforme em cosmos, ou seja, o universo ordenado, com seus ciclos, suas repetições e suas leis, é preciso que o demiurgo modele as formas, de modo a que tudo passe a ter uma constituição, sem a qual nada possuiria uma essência. Sendo assim, conhecemos a essência da mesa porque nosso intelecto consegue realizar um processo chamado de methexis, que é o reconhecimento da participação de uma mesa em particular com a ideia originária e universal de mesa.

O que acontece quando um marceneiro resolve então construir uma mesa? Ele busca com seu intelecto a forma essencial da mesa que está no campo das ideias e, dessa forma, traduz em material algo que estava unicamente naquele mundo intelectivo criado pelo demiurgo. Novamente aqui podemos pensar em um monte de modelos de mesas disponíveis, mas os critérios atendidos são de sua especificidade, ou seja, a mesa em sua singularidade, daquela mesa em particular, uma concreção da mesa intelectiva. Ocorre que essa mesa fabricada pelo artífice plasma a mesa ideal, mas não é igual a ela, não tem a sua perfeição. Sempre haverá na execução algo que destoe do que é o plano intelectual. Lá, conseguimos o círculo perfeito, o triângulo perfeito, a reta sem nenhum milímetro de desvio, e só lá. O mundo sensível tem um pacote de desvios que fazem com que tenhamos, diante de nós, as aparências. Usando o melhor dos compassos, temos a aparência do círculo perfeito, mas se visto em olhar microscópico, acharem um monte de defeitos.

Entretanto, se o que captamos pelos nossos sentidos nos permite reconhecer o que é o objeto, temos então a tal da methexis acontecendo. Há uma coparticipação entre o novo objeto e seu paradigma fundamental, de forma a colocar a peça no rol de determinações ontológicas da ideia em si, e o artesão foi, com maior ou menor precisão, trazer a essência do mundo das ideias para seu artefato, e, nesse sentido, ele é um criador, ele também uma cópia, mas desta vez do demiurgo, com a diferença de que não extrai sua matéria do caos, mas da própria natureza. Ele não cria o objeto em si, mas uma cópia do mesmo.

Agora imagine que dê na cabeça de um escultor como João Turin de fazer uma obra em pedra que represente uma mesa. Ele pode fazer uma mesa majestosa, que serviria para um gigante. Bem, gigantes não existem, então a mesa não serve para seu propósito. Poderia fazer uma mesa minúscula, daquelas que cabem em uma casa de bonecas. Ora, bonecas são simulacros de pessoas, portanto são imperfeitas. E mesmo que fizesse uma de tamanho normal, a ela faltaria o objetivo: a obra de arte não como artigo de uso, além de que, convenhamos, não é a coisa mais prática do mundo uma mesa de pedra, embora seja possível. Pior ainda se for uma pintura, que não guarda com a peça original nem ao menos a tridimensionalidade. O artista não faz methexis com o demiurgo, assim como o artífice faz. E isso é alvo de desprezo para Platão, porque a mimética é uma farsa, neste caso.

Pois então a conclusão é que não temos a methexis, ao contrário da mesa urdida pelo marceneiro. O escultor ou o pintor exercem seu ofício através de uma sensibilidade que já se baseia no mundo sensível. É uma cópia da cópia, já distante do mundo intelectivo em dois graus. Poderia ser ainda pior, se o pintor fizesse sua tela a partir de um relato, o que daria três níveis de distanciamento do mundo das ideias: o marceneiro que fez o móvel, o observador que o descreveu e o artista que lhe levou à tela. Se o conhecimento se dá por aproximação racional ao mundo das ideias, no plano estético, ou seja, no âmbito do sensível, cada vez mais nos distanciamos da verdade, e nos colocamos em uma situação de falsificação.

Desta forma, podemos concluir que a arte, na cosmovisão platônica, é antes uma inutilidade quando associada ao conhecimento. No entanto, seu discípulo Aristóteles é-lhe quase um opositor em muitos aspectos, e este é mais um. A importância que o moço de Estagira dá à arte e à estética por extensão é de dar completude educacional e de dar propósito ao conjunto teológico grego.

Começando a conversa, e embora não negue uma espiritualidade da construção do cosmos, Aristóteles não cria no mundo das ideias e no demiurgo, por consequência. O que ele tem é algo mais voltado para a ética do que para a epistemologia.

Aristóteles fala muito sobre a eudaimonia, a felicidade como causa final para o ser humano. Nesse sistema de causas, a causa final é o propósito para que algum objeto tenha vindo a existir. Por exemplo, uma mesa tem como causa final servir como um plano elevado que se aplique a facilitar a vida de quem desenvolve alguma atividade, seja ela qual for: trabalhar, comer, escrever e etc. A busca pela felicidade é o grande propósito do ser humano, a sua causa final. E, ato contínuo, o prazer está envolvido nessa relação.

Na primeira parte de sua obra A Poética, Aristóteles fala sobre a tragédia (a segunda, sobre a comédia, infelizmente foi perdida e até hoje não recuperada). Entre tragédia e comédia, a principal diferença não está em que a primeira é triste e a segunda alegre, mas que a tragédia é uma reprodução da vida como ela é, enquanto a comédia é a sua pura transgressão. Tristeza e alegria são meros reflexos, porque, conforme reportava Aristóteles, a vida é repleta de pathos, ou seja, de sentimentos fortes, pesados, muitas vezes acompanhados de intenso sofrimento.

O principal objetivo da tragédia é exatamente obter o que Platão mais queria evitar: a mimesis. Através da imitação, a arte traz aprendizado para o ser humano, porque lhe permite tanto vislumbrar uma trajetória semelhante à sua própria vida, quanto se integrar a essa espécie de destino comum da humanidade que é o pathos. Dessa forma, quando um artista traduz uma existência trágica, ele quer propiciar uma oportunidade para seus espectadores de reconhecer seu sentimento puro com relação ao seu papel como ser humano, em um processo chamado de catarse.

Mas não era uma questão de prazer? Onde a catarse é prazerosa, se prefigura o sofrimento? A catarse não é o prazer do regozijo, como pode fazer parecer um ideal estético de beleza, mas do reconhecimento de si mesmo como parte do destino humano, do pertencimento comum próprio da espécie, cujo sofrimento é inevitável. Quando observa que os mesmos sentimentos que lhe povoam ocorrem com outros humanos e até com deuses, o ser que presencia o fenômeno da catarse se liberta da repressão de seus próprios medos e encargos, que passam a ser encarados com maior naturalidade.

Esse é um processo que faz parte do aprendizado do cidadão, a quem Aristóteles dava sobeja importância, e entra em seu conceito de Paideia, a educação integral do ser humano, que lança mão de diversos expedientes para prepará-lo em todos os seus aspectos, inclusive utilizados aparatos estéticos. Deslindarei esse termo melhor, em momento adequado.

Por este motivo, os dois filósofos basilares da Grécia Antiga possuíam divergências tão sérias em sua maneira de encarar a arte: o propósito desta para um não coincide com que o outro via na sua principal utilidade. E com isso seria provável que ambos estariam aqui neste Memorial com feições bastante distintas - um carrancudo e outro deslumbrado, e, entre eles, a pequena Nala dando seus puxavantes para caçar suas lagartixas. Bons ventos a todos!


Recomendações:

As principais anotações platônicas estão na mais que recomendada A República, que já utilizei bastante por aqui, mas indico mais uma vez;

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.


Com relação a Aristóteles, vai para a obra já mencionada no texto presente:

ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008.

*Um franco exagero.

Nenhum comentário:

Postar um comentário