Olá!
Quando escrevi o metapost (texto comemorativo à 100ª manifestação
neste espaço), resolvi franquear a palavra aos meus principais leitores e
colaboradores, dentre os quais Vitor Bertalan, que também é autor de um post
que fala sobre a concepção de boa arte. Abusado, ele não pediu que se
desenvolvesse apenas um, mas dois textos. Cumprirei minha tarefa a partir de agora,
falando sobre a Filosofia Árabe, a famosa (?) Falsafa.
Vou estabelecer que não farei grandes diferenças entre os
povos árabes propriamente ditos e seus vizinhos persas, otomanos e afegãos,
para que o texto não se torne muito enjoativo. Portanto, não me taxem de
incoerente porque estou plenamente consciente do fato.
Começando do começo: os árabes fazem parte dos povos que
constituíam a região do Crescente Fértil, um trecho do Oriente Médio
razoavelmente bem servido de água potável em forma de arco, o que faz lembrar,
no mapa, uma meia-lua. É nesse lugar do mundo que surgem dois marcos históricos
da humanidade: o desenvolvimento da agropecuária e a invenção da escrita, o
que, convenhamos, não é pouca coisa. A agricultura permitiu ao homem um
controle sobre a natureza nunca obtido anteriormente, o que fez com que seus
rumos itinerantes não fossem mais necessários; o homem já não precisava mais
ser nômade. E a escrita... bem, a escrita permite que você leia meus textos,
que comente o que você acha, que registremos nossas constatações, histórias,
experimentos e experiências.
Podemos atribuir aos fenícios, povo que habitava a região
onde hoje fica situado o Líbano, a dupla tarefa de ser porta de entrada e de
saída de mercadorias e da cultura regional, formando uma espécie de cosmópole
para onde convergia conhecimento do mundo inteiro (mundo então conhecido,
entenda-se bem) e de onde se irradiava o conhecimento médio-oriental para esse
mesmo mundo. Digamos, portanto, que a Fenícia era um roteador full-duplex, que mandava e recebia
conhecimento de toda parte. E por que isso acontecia?
Porque a Fenícia não estava no pedaço mais favorável do
Crescente Fértil, mas era muito próxima a ele. Os fenícios habitavam uma região
litorânea, onde não era possível desenvolver atividades de cunho agrícola ou
pastoril. Para sobreviver, eles se lançaram ao mar, seu grande campo de seara,
e se tornaram uma civilização náutica, que baseava sua atividade econômica no
comércio. Como dominaram técnicas de metalurgia e vidraçaria, eram grandes
exportadores de armas e objetos de vidro, e compravam de tudo: vinhos, marfim,
papiro, tecidos, especiarias, e assim vai. Eram o que, no meu tempo de criança,
chamávamos de mascates, só que em dimensões multinacionais.
Com o tempo, os
fenícios criaram uma imensa rede comercial que interligava Ásia, Europa e
África. Azeite grego era vendido no Egito, joias turcas eram vendidas entre os etruscos,
perfumes ibéricos eram vendidos na Macedônia, interligando as diversas regiões
atingíveis do globo. Para dar suporte à logística necessária ao empreendimento,
os fenícios fundaram uma série de colônias no Mar Mediterrâneo: Chipre,
Sicília, Sardenha, Córsega, Espanha, Cartago. Com a lábia típica de quem se
especializou no comércio, conseguiram se estabelecer em todos esses lugares sem
guerra. Sua ideia não era conquistar territórios, mas estabelecer entrepostos
que facilitassem o trâmite de suas mercadorias. Mas, além de produtos, os
fenícios exportavam e importavam conhecimento, amparados pela sua invenção mais
célebre, o alfabeto. Da mesma forma que traziam e levavam mercadorias de todo o
mundo conhecido, também traziam e levavam ideias. A Fenícia não era apenas um
entreposto comercial, era um depósito de linhas de pensamento.
Bem, isso explica satisfatoriamente a formação da Fenícia. Mas a região
que estamos estudando era muito maior do que hoje representa o litoral do
Líbano. Como esse conhecimento se espalhou para o restante do Oriente Médio?
A visão que temos hoje do Oriente Médio é de toneladas de
areia sobrepondo um subsolo coalhado de hidrocarbonetos de origem fóssil, mais
conhecidos como petróleo. Mas esse produto, valiosíssimo nos dias atuais, não
tinha qualquer significado comercial a três mil anos atrás, até mesmo porque
mal se sabia de sua existência, sendo conhecido basicamente na forma de betume.
A região desértica e predominantemente árida era um fator invencível de
limitação à fixação de habitantes em vilas e comunidades. Isso porque a agricultura
era virtualmente impossível e a extração tremendamente restrita. Desta forma, o
jeito era apelar para os constantes deslocamentos entre lugares onde era
possível se abastecer, criando assim uma cultura nômade. Esses indivíduos eram
chamados de beduínos (do árabe badawï,
que significa “deserto”), e, com sua formação tribal e seus camelos e
caravanas, espalhavam pela região produtos e conhecimentos, de maneira similar
com o que faziam os fenícios em ponto maior.
Isso tudo permitiu à cultura árabe tornar-se prodigiosa,
porque não ficava aprisionada a um único sistema de pensamentos. De posse de
informações as mais diversas, podiam confrontá-las e combiná-las de modo a sintetizar
o suprassumo do conhecimento de então, incluindo Filosofia, Ciências e Técnica.
E o mais importante – moldou o ethos
do povo daquela região. Percebam como até hoje árabe é sinônimo de comerciante
(tudo bem, é um estereótipo, mas não injustificado). Já com relação a um
interesse filosófico que esmaeceu... Chegaremos lá.
Então concluímos que esse é o substrato que está no alicerce
de uma cultura que, de sábio em sábio, de poeta em poeta, desemboca na Falsafa, o resplendor da Filosofia
Árabe.
A Falsafa é uma palavra que significa Filosofia em árabe.
Pela proximidade das duas palavras, é possível perceber que uma derivou da
outra e que significam a mesmíssima coisa: amor ao saber. É considerada como o
período clássico do conhecimento árabe, não só pela quantidade e qualidade de
sua produção, mas também pela forte influência que os filósofos gregos
clássicos nela exerceram, em especial os escritos de Aristóteles.
Coincide com a Idade Média ocidental, tanto no período
quanto na temática. A Falsafa é teocêntrica, e faz suas investigações com o
viés do Islamismo então surgente. Mas não se limitou aos estudos da relação do
homem com suas divindades, em processo semelhante ao que ocorreu com a
filosofia medieval europeia (para entender porque não é verdade a monotemática
atribuída à Era Medieval, leiam aqui).
Os sábios árabes em geral eram considerados polímatas, ou
seja, homens versados em mais de uma área de conhecimento, podendo militar não
somente na Filosofia, mas nas Ciências em geral, na Religião, nas Artes e etc.
Com o propósito de acolher e centralizar a difusão do conhecimento, o califa
Al-Mamun fundou uma biblioteca chamada de Casa da Sabedoria, onde eram
traduzidas obras oriundas de todas as partes do mundo conhecido. Foi lá que se
deram as famosas traduções para o árabe das obras de Aristóteles, grande base
do desenvolvimento da Falsafa. Foi do trabalho realizado na Casa da Sabedoria,
inclusive, que a obra aristotélica chegou aos teólogos cristãos, como São Tomás
de Aquino e Duns Scotto, e não diretamente do grego.
Da Casa da Sabedoria, o primeiro grande filósofo foi
Al-Kindi, o Pai da Filosofia Árabe. Era estudioso em matemática, medicina,
farmacêutica e geometria, entre outros. Sua mais significativa contribuição
filosófica foi o estudo de compatibilidades entre a razão e a teologia
islâmica, especialmente na conciliação entre uma teologia natural, onde os
sinais divinos são observados pelos desdobramentos dos fenômenos naturais, e
uma teologia revelada, como é o caso das religiões abrâmicas
(Judaísmo-Cristianismo-Islamismo), que são sistematizadas através de emanações
transcendentais, de manifestações das divindades, que podem ser reduzidas a
códigos escritos. Muito embora Al-Kindi desse preferência à primeira linha de
interpretações, especialmente pelo fato de que uma teologia natural é
plenamente acessível à razão, entendia que as revelações eram necessárias para
compreender aquilo que se transpunha ao alcance da compreensão humana.
Importava de Aristóteles uma tese semelhante à do Primeiro Motor Imóvel, que
especula a existência de uma causa primeira, não causada...
(Funciona assim, crianças: tudo o que se move, move-se
porque algo o pôs em movimento. Uma pedra se move porque alguém a atirou;
alguém a atirou porque moveu o braço; moveu o braço porque seu organismo tinha
forças para fazê-lo; tinha forças para fazê-lo porque se alimentou, blá, blá, blá.
Aristóteles entendia que era possível realizar esse retrocesso infinitamente,
até chegar em um ponto em que a anterioridade se esgota – algo moveu sem ser
movido. Esse é o Primeiro Motor Imóvel).
... mas, estendendo o conceito aristotélico, Al-Kindi via a
causa primeira, Deus, como um princípio de unidade para tudo o que existe. A
partir desta constatação, discute longamente qual seria a natureza desse Deus.
Em seguida, podemos falar de Al-Farabi, tão letrado quanto
Al-Kindi, tanto que de seu nome derivou o termo alfarrábio, que significa livro cujo principal valor é ser antigo. Além
de Ciências Naturais e Música, Al-Farabi também teve grande interesse no estudo
de Ética, Política e Economia. A sua filosofia desloca-se do caráter mais
especulativo para um sentido mais empírico, e discorreu maciçamente sobre os
limites do conhecimento humano, principalmente em descobrir suas causas
originais. Na Política, Al-Farabi tenta redesenhar a cidade ideal de Platão.
Esta cidade seria a territorialização de uma sociedade que teria uma extensão
do mundo inteiro.
Depois, falemos de Al-Kwarizmi. Menos filósofo e mais
matemático, de seu nome derivam dois termos muito conhecidos em nosso
dia-a-dia: algarismo e algoritmo. O primeiro porque nosso herói utilizou os
símbolos numéricos indianos e acrescentou a eles um fator imprescindível para a
matemática: o conceito de zero. Sim, pessoas. Fazemos contas por causa deste
cidadão. O segundo se deu pelo desenvolvimento de equações cuja resolução era
descrita passo a passo, em um processo que derivou ao que hoje utilizamos em
linguagem de programação. Criador da álgebra, sua principal contribuição
filosófica está no campo da lógica, na medida em que as resoluções de suas
equações pelo método algorítmico fornecem uma metodologia para a matematização
do pensamento.
Seguimos com Al-Ghazali, precursor de René Descartes e da
dúvida metódica, e de Malebranche com seu Ocasionalismo. Sua principal
contribuição é a quebra com uma certa dependência ao pensamento grego, dando
ênfase ao Sufismo, uma corrente mais mística e contemplativa do Islamismo,
baseada no autoconhecimento, e que guarda alguma relação com religiões do Oriente
mais distante, como o Hinduísmo e o Mazdeísmo. Segundo seu pensamento, toda a
sorte de efeitos em que a alma tem influência sobre o corpo, ou todo movimento
que do corpo se dirige à alma são ocasiões para que Deus se manifeste. Desta
forma, Deus é a mola propulsora de toda a cadeia de causa e consequência que se
observam no universo.
Daí, vamos para Ibn-Khaldun, historiador que introduz vários
conceitos sociológicos (apesar de não serem chamados assim). Também introduz
uma Filosofia da História baseada em ciclos, que interpreta a História como a
repetição constante do mesmo modelo de acontecimentos. Mesmo que estes não
sejam iguais, as estruturas que os conduzem são sempre as mesmas. Desta forma,
é possível prever os desdobramentos de fatos históricos através da análise de
situações semelhantes que ocorreram anteriormente. Observou ainda o modo como a
Economia era uma irradiadora de consequências nos estratos sociais e versou
sobre o papel do Estado na sua regulação.
Vamos agora para os três mais conhecidos filósofos árabes
medievais. O primeiro é Avicena, muito conhecido na medicina, mas que também
foi um filósofo de ponta. Ainda que ligado à teologia, é pelo caminho da razão
e da evidência que prefere trilhar. Por isso mesmo, suas teses por vezes
conflitavam com o pensamento islâmico ortodoxo, em especial na questão do
universo eterno. Talvez sua principal tese seja a distinção entre mente e
corpo. Para tentar prová-la, Avicena lança mão do exercício do Homem Voador, no
qual há o descarte dos sentidos para reconhecer a atividade mental. A suposição
é a de que, de posse de todas as faculdades cognitivas, um homem inicia
repentinamente sua existência, suspenso no ar e de olhos vendados, sem que
possa tocar em nada, privando-se assim de qualquer sensação. Em uma assertiva
semelhante ao cogito cartesiano, esse
homem voador tem certeza da existência do eu, mas a indisponibilidade dos
sentidos impede que se busquem referenciais externos, que só poderiam ser
obtidos pelo corpo. Somente há a mente ao seu dispor, destacada do corpo ou de
outro meio físico. Portanto, há uma clara distinção entre ambos.
Averróis é quem segue. Tem como novidade seu trabalho na
área judiciária, e elaborou uma teoria hierárquica da sociedade, com uma visão
platônica, já que entendia ser necessária uma distinção entre uma elite letrada
para o exercício filosófico, enquanto à prole seria destinado o seguimento
literal do Corão. Mas o filósofo em tela não cria que o livro sagrado dos
muçulmanos fornecesse uma visão precisa da verdade. Entendia que muitas vezes
lançava mão de lirismo, para postular verdades que precisariam ser
interpretadas. Da mesma forma que Avicena e Aristóteles, colocava-se em
oposição às teses corânicas para afirmar a infinitude do universo. Acreditava
em uma visão inédita da imortalidade do homem, baseada no compartilhamento
intelectual. O homem como indivíduo morre, dizia ele, mas, quando doa ao
intelecto uma verdade permanente, ele deixa uma porção de si para a eternidade.
E também elaborou a teoria da dupla verdade – são reais tanto as verdades de fé
quanto as verdades da razão, a cada uma dado conhecer conforme seu alcance.
E fecharemos esse rol de filósofos com Muhammad Rumi,
sufista como Al-Ghazali. Tinha uma filosofia mística, mas que não era
desprovida de razão. Ele imaginava que o homem era uma ponte entre o passado e
o futuro que se sucediam de forma espiral, descrevendo uma progressão, e não um
círculo. A extensão dessa espiral era a eternidade, onde também era eterna a
sucessão de vida, decaimento e morte, e a transformação de formas de vida é
garantia da continuidade universal. Rumi afirmava que a intelecção desta forma
de conhecimento não vem da razão; é preciso intuí-la através da prática da
emoção, chefiada pela prática do amor.
Pois bem. Por que, aparentemente, a Filosofia Árabe para por
aí? As hipóteses que consegui levantar são as seguintes:
1) Traçando um paralelo com a Europa, verificamos que a
linha geral do pensamento desloca-se de Deus para o homem na medida em que
floresce o Iluminismo e diminui a influência das igrejas cristãs. A Filosofia
Árabe ainda permanece por mais tempo atrelada ao teocentrismo, e sua ligação
cada vez mais forte com a religião, que se tornava sempre mais sedimentada em
sua sociedade – em oposição ao que acontecia com o Cristianismo na Europa –
tornou menos mutáveis as linhas de pensamento. Os progressos civilizatórios
contrastavam com o código corânico, dado pela divindade, imutável, e que
codificava não somente os ritos e práticas cerimoniais, mas também todo o
conjunto da vida social e política. Ao contrário do que ocorreu no passado,
quando o mundo árabe se formou com base na importação de mercadorias e
conhecimento, agora temos um império que se esfacelava, aculturados pela
colonização.
2) Não conhecemos nada do mundo árabe, e esse é um ótimo
fator para falar bobagens, incluindo acreditar que não se pratica mais
filosofia no Oriente Médio. Desde as Cruzadas, o mundo ocidental criou uma
visão do Oriente Médio baseada no exótico, e essa visão estereotipada se
arrasta até os dias de hoje. Quem nos tece um soberbo painel desse hábito de
nossa cultura é o escritor palestino (portanto médio-oriental) Edward Saïd, um
daqueles filósofos a quem precisamos ler para compreender um pouco melhor o que
é nosso mundo. Em sua obra Orientalismo,
Saïd faz uma ampla análise de como o Ocidente tem uma visão distorcida do mundo
árabe, demonstrando como os povos ocidentais construíram ao longo da história
uma imagem do Oriente Médio que não tem muito a ver com a realidade.
Um dos principais problemas que a concepção de Orientalismo
traz é a tendência a enxergar o Oriente Médio como um bloco monolítico, como eu
mesmo fiz no início deste texto. Não é. Estamos falando de inúmeras etnias,
espalhadas por um território extenso, cada uma com seus hábitos e costumes
próprios. O Islamismo parece um traço comum, mas não é. A poligamia parece um
traço comum, mas não é. O autoritarismo e a violência parecem traços comuns,
mas não são.
Essa invenção tem um propósito: legitimar o colonialismo. Apresentada
de modo romanceado, mas com um viés alienante, a cultura médio-oriental é
idealizada de forma a poder ser considerada inferior à ocidental. O primeiro
passo deste processo é a construção da imagem. Através de relatos e obras
literárias, o mundo árabe é-nos colocado como um espaço das ardilosidades dos
vizires, da lubricidade das odaliscas, da ostentação dos sultões, um mundo
antiquado e embrutecido. É uma imagem que busca opor, na aparência, uma cadeia
de valores. Sempre teremos a tendência de achar nossos valores mais preciosos
que os do outro.
O segundo passo é o silenciamento. Após construir a imagem
do Oriente pelo Ocidente, não se permite a réplica em sentido contrário. E isso
é feito através da invisibilidade da cultura real. Continuamos a apresentar o
Oriente Médio como cultura inferior, atualmente estruturada não mais em guardas
de harém, mas em homens-bomba; não mais em dançarinas do ventre, mas em
mulheres recobertas pelas burcas; não mais em califas, mas em ditadores
sanguinários. Muito disso é verdadeiro, mas é uma visão parcial. Raros casos de
produção cultural médio-oriental chegam até nós. É pouco frequente ver filmes,
livros e relatos, em especial quando não são ficcionais, e com isso passamos a
acreditar piamente que a Filosofia Árabe se esvaiu, sufocada em seus
fundamentos. Será mesmo? O próprio Saïd é prova do contrário.
Em que medida isso não acontece até hoje? Temos praticamente
como definição que os árabes são um povo violento, pronto a se arremessar
carregado de bombas em qualquer instituição que lhes divirja. Apresentamos o
Islamismo como o pano de fundo que valida a violência, contrapondo-o ao nosso
sacrossanto Cristianismo e buscando demonstrar como o mesmo é perfeito. Só que
isso pode ser válido para nós, membros de uma sociedade de matriz
judaico-cristã, mas não para o mundo inteiro. Criamos um monstro para bater e
justificar nossa própria violência, que não se limita a atirar bombas na cabeça
dos outros, mas que se estende ao direito de reconhecer cidadania a quem
carrega consigo qualquer traço de identidade exógena. Exemplo: Aconteceu nos
EUA recentemente um caso ridículo. Um menino de 14 anos chamado Ahmed (o
que já explica tudo), especialmente dado aos engenhos eletrônicos, construiu um
relógio digital e apresentou-o em sua escola. A história terminou com o infeliz
preso. É que a professora suspeitou se tratar de uma bomba, comunicou o fato à
direção e esta chamou a polícia, que o algemou e conduziu à delegacia. Até o
presidente Obama entrou na parada para amenizar o problema. Se isso não é um
clássico de efeitos da construção de uma imagem, então não sei mais o que é.
O que Saïd nos mostra é como as nossas deficiências em
enxergar sob a perspectiva do outro pode perpassar tão fortemente a nossa
própria cultura que se torna possível distorcer a visão que temos de um povo
inteiro. As descrições que damos das demais etnias dizem muito mais de nós
mesmos do que daqueles a quem tentamos retratar.
Recomendação de leitura:
Sabe aqueles casos clássicos de obras do gênero “não morra
antes de ler”? É exatamente o caso deste livro.
SAÏD, Edward. Orientalismo.
O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
Post-scriptum final: eu tenho dantescas dificuldades até
mesmo de passar uma linha na agulha, filho de costureira que sou. E admiro
profundamente quem tem habilidade e criatividade para manipular máquinas e
equipamentos. O que fizeram com esse rapaz é de uma violência assustadora. Acho
que não precisamos ter tanto medo de morrer, a ponto de enxergar ameaça em um
menino de 14 anos que apresenta um trabalho que deveria ser louvado.
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