Marcadores

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Navegações de cabotagem - o passeio público de Curitiba e o aprendizado que se faz caminhando

(Passear é lazer, mas em Aristóteles era também o conhecer)

A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena

Fernando Pessoa, no heterônimo Alberto Caeiro 

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

O que nós fomos fazer mesmo? Ah, sim… comprar temperos. De vez em quando dou um pulo em Curitiba, como vocês, meus bissextos leitores, estão cansados de saber.  Aproveito o home office e vou passar uma semana na casa do moleque mais velho, especialmente porque, segundo ele, já está de saída de lá, devendo voltar a Sampa no começo do ano que vem. Acontece que tenho umas horas livres no começo do dia, e, com isso, vou com a patroa dar umas voltinhas. Desta vez, para fazer isso, comprar temperos exóticos em uma boa casa que existe por lá.

Só que comprar meia dúzia de pimentas extravagantes não é um programa que leve mais que vinte minutos. Sendo assim, tempo havia, e lembrei que passamos beirando o Passeio Público, um parque central da cidade e bastante próximo à mercearia que iríamos. Não custa dar um pulinho.

O Passeio Público de Curitiba é seu parque mais antigo, inaugurado em 1886 para sanear um alagado que existia por lá, e que só servia para fazer proliferar mosquitos e muriçocas. Em seu lugar, um pequeno conjunto de lagos, jardins e pontes para os cidadãos fazerem seus giros na hora de folga.

O projeto tem essa cara de europeu porque seu criador se baseou nos jardins franceses para produzir esse espaço relativamente pequeno, mas que tem um sabor parisiense em seu intimismo, passando por seus portões e continuando nas alamedas que ladeiam os lagos.

Originariamente, os lagos do parque eram utilizados por pequenos botes para dar uma voltinha molhada, alla Veneza, o que parou de ser feito com o tempo, restando unicamente os barquinhos de adereço.

Um dos contrapontos mais curiosos daqui foi a introdução de um coreto eletrônico, que deu modernidade ao velho equipamento tão típico dessas épocas, onde é possível usar e abusar de projeções, além da tradicional função de servir de palco e palanque.

Este aqui é um pedacinho da Ilha da Ilusão, uma ilhota que contém um busto do escritor Emiliano Perneta, considerado o príncipe dos poetas curitibanos, de verve simbolista e também atuante na área do Direito.

O desaguadouro do antigo Córrego do Belém, que produzia o antigo banhado, ainda se presta a alimentar de água todo o complexo, ainda produzindo tanques e cascatas artificiais.

Há muitos bichos dentro do passeio público, o que garante a alegria da criançada. Nos lagos, há as habituais carpas coloridas, sempre dispostas a deglutir vorazmente suas porções de ração.

E há diversos viveiros para aves, todos eles devidamente cercados e com recintos de repouso. Embora houvesse bastante sol, o ventinho frio típico dessas latitudes não fazia com que todas as aves se encorajassem, mas muitas delas procuravam os raios.

Há as aves nativas, especialmente da Mata Atlântica, da qual as matas de araucárias fazem parte…

… e há as aves estrangeiras, mas que também se adaptam bem ao subtrópico curitibano.


Enfim, um lugar aprazível para um passeio rápido, para namorar um pouco e até chupar um velho sorvetinho italiano, daqueles que vem com abelhas de brinde.

Bom... passeios podem nos ensinar bastante coisa, não é verdade? Depende, né? Quando lembro de minha época mais escolar de todas, não vislumbro grandes passagens que tenham ocorrido fora do interior da imensa escola estadual, que ocupava meio quarteirão de uma rua da Vila Diva, bairro operário da zona leste paulistana. Como prédio, era extraordinária: duas quadras, vários níveis de pátio, muitas e muitas salas, algumas especializadas, com laboratório e oficina, área de refeições e cantinas, e até uma pista de salto, tudo meio capenga, mas existente. Ocorre que ela adotava aquele modelo presídio tão típico da década de 70, onde uma cigarra anunciava os inícios e términos de aula, e o confinamento era garantido, a não ser para os aventureiros que se dispusessem a escapar por uma linha de águas pluviais no extremo sul da fortificação, o que nem era tão difícil em tempo seco. A segurança para sair era reforçada, mas a peia cantava lá dentro mesmo, e até briga de facas cheguei a presenciar. Nada mal para quem ama referenciar os saudosos tempos seguros de outrora.

As únicas saídas eram as excursões raríssimas, feitas para dizer que existiam, e que custavam aos bolsos proletários os caraminguás para pagar o fretamento e ingressos que por ventura existissem. Uma delas foi em 1982, para assistir o filme Gandhi. É um filme ótimo, didático, histórico, que fez sucesso na época tratando de um tema delicado, as lutas da Índia derivadas primeiro da dominação, depois da religião, mas quem o agendou não teve a sensibilidade de perceber que mais de três horas de filme para uma escola repleta de fedelhos descambaria para o pandemônio. Foi o que houve. Depois das duas primeiras horas, não havia mais quem conseguisse ouvir minimamente o que se dizia na tela, mesmo com os poderosos alto-falantes do Cine Marabá (acho que foi no Marabá) em plena potência.

Outra ocasião vergonhosa foi quando excursionamos ao teatro Sérgio Cardoso, para assistir a uma peça sobre um dos principais independentistas sul-americanos, Simón Bolívar. Encontrei uma obra sobre no acervo do Teatro de Arena, mas acho que não era a mesma. Se em um cinema com seu potente sistema de som o caos se instaurou, o que podemos pensar de uma sala onde o que se ouve é a voz pura dos atores? Com menos de cinco minutos o ator principal parou a atuação e deu um esporro proverbial na patuleia infanto-juvenil, de forma a corar de um escarlate profundo as faces dos docentes presentes, nossos professores.

Mas ainda tinham as saídas que fazíamos para disputar os campeonatos interescolares. Aí, sim, nós aprendíamos… aprendíamos que tinham menininhas observando e nos desdobrávamos nas acrobacias, mais para parecermos pavões do que para demonstrar alguma consciência tática e tentar conseguir alguma medalha.

Não sei exatamente a idade de quem me lê. Talvez as coisas tenham melhorado.

O fato é que, nessas simples lembranças, coloquei na mesa que fomos à República em um cinema e ao Bixiga em um teatro, mas nunca demos trinta passos dentro da nossa própria freguesia, para conhecer minimamente sua estrutura e funcionamento. A impressão geral é que a vida acontecia lá fora, e que nada ocorria no nosso mundo real, mas o fato é que sim, havia uma sociedade que povoava aquelas casas de tijolos aparentes pela queda dos rebocos, e onde se fazia mais do que beber em companhia nas tardes de domingo. Poderíamos ter ido à Sociedade de Amigos do Bairro, ao “bailarico” português, à Escola de Samba Príncipe Negro ou a tantos outros lugares que existiam e que chegaríamos em meia hora a pé, no máximo, entender por que estavam ali, o que faziam, o que representavam para a coletividade. Parece bobagem, mas a visão que uma escola dá é mais despida de camadas irracionais, um ângulo mais sistêmico da realidade que nos cerca, justamente por seu propósito didático. Quando conhecemos esses pequenos espaços por nós mesmos, o que é perfeitamente possível, podemos ter um ponto de vista obliterado pelos preconceitos que nascem em nossas próprias casas, devemos admitir. Assim, ao invés de ser uma entidade representativa do interesse dos moradores, a Sociedade do Bairro vira um lugar para os velhos jogar bocha; o espaço de manifestação cultural se torna o salão onde as mulheres bigodudas se travestem de camponesas e a escola de samba deixa de ser o amálgama de uma coletividade para virar o lugar onde os pretos vão fazer seus batuques. Entendem onde quero chegar?

Por isso, o simples andar pelas ruas da cidade pode ter propósito educacional e civilizatório. Encarar a realidade significa vivê-la, e isso é mais fácil quando não estamos reclusos, meramente conjecturando o que é a vida e seus desdobramentos. Para saber a vida, é preciso perceber a vida.

Aristóteles claramente tem essa visão e a coloca em seu projeto educacional. Eram épocas em que os grandes letrados fundavam escolas, e nelas impunham seus próprios estilos e métodos. Algumas delas ficaram extremamente conhecidas, começando pela de seu mestre Platão, conhecida como Academia. Esse nome foi dado em homenagem ao herói Academo, que tinha seu túmulo nas imediações da área onde o filósofo instalou sua escola. Esse nome virou sinônimo tanto de local de estudos, quanto de prática de esportes, que Platão também prezava. Por isso, meu caro musculito, minha prezada monstrinha, não é uma apropriação tão indébita chamar seu lugar de ginástica de academia.

Aristóteles, conquanto fosse o discípulo mais brilhante de Platão, não foi escolhido seu sucessor por ocasião de sua morte, certamente pelas suas divergências fundamentais com o mestre. Por esse motivo, resolveu fundar seu próprio gymnasium, a quem o nome de Liceu, cujo bosque era dedicado ao deus Likeon, uma das personificações de Apolo. Também hoje esse nome continua a ser utilizado, não tão aberto como a academia, que acabou virando sinônimo de produção de conhecimento, mas como estabelecimento de ensino secundário (vide o Liceu de Artes e Ofícios, célebre aqui em Terra da Garoa). Entre as duas instituições, há importantes diferenças metodológicas derivantes da forma de cada um pensar.

Quando nós observamos a esplêndida obra de Rafael Sanzio denominada “Escola de Atenas”, vemos no seu centro justamente nossos dois heróis, Platão e Aristóteles. 

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rafael#/media/Ficheiro:Escola_de_Atenas_-_Vaticano_2.jpg

Como toda boa obra de arte, a carga abstrata é tão ou mais importante do que a habilidade técnica, e o que vemos aqui é justamente o debate entre ambos os morubixabas gregos. Para o mais velho, o conhecimento era uma propriedade exclusiva do intelecto, que seria o mecanismo disponível para se atingir as formas perfeitas que plasmaram toda a realidade. Prova disso era seu grande interesse pela matemática, área do conhecimento que fornece parâmetros exatos do que seria essa tal realidade. Por esse motivo, Platão é representado com a face de Leonardo da Vinci, seu correspondente da ocasião, e com um dedo apontando para cima, onde estaria o Hiperurânio, ou o tal do Mundo das Ideias. Para Aristóteles, no entanto, a questão não se dá unicamente no campo das ideias, mas na realidade em si própria, ou seja, no mundo captável, de uma maneira muito mais orgânica do que ocorria com seu mestre. Sendo assim, é a partir da observação do universo circunstante que se extraem dados para se aproximar da verdade, em um processo claramente empírico. Aristóteles dava muita importância à coleta de dados e às ciências que necessitam de dinamismo empírico, principalmente a biologia, dando menor importância às formas hard code do Mundo das Ideias platônico. É representado, portanto, como seu representante Michelângelo e aponta para baixo com a palma da mão e para todas as direções com os dedos, indicando que a realidade está no aqui e no agora. 

Essa divisão ideal já deu, muitos séculos antes do grande embate moderno, as bases para o confronto entre racionalistas e empiristas que, no final das contas, provaram-se complementares. Para os primeiros, o conhecimento é, antes de mais nada, um exercício mental, que é capaz de extrair a realidade mediante o raciocínio puro. Já os outros não abriam mão de experienciar suas teorias para dar fundamento calcado na realidade. A coisa já nasceu aí.

Se fizermos uma rápida reflexão, constataremos que ambas as correntes se imiscuem, se imbricam, se abraçam. Grandes conclusões universais, como as distâncias astronômicas, são obtidas através de cálculos complexos, que praticamente prescindem de observações. É que quanto menos as sensações participarem da relação cognitiva, menos darão desvio às conclusões. Mas o diabo é que um telescópio poderoso foi colocado em pleno espaço sideral, para funcionar melhor do que se estivesse aqui na Terra. As máquinas, vejam vocês, também tem sensibilidade, e um equipamento desses funciona melhor fora porque tem menos refrações de luz. E isso ficou conhecido porque foi observado. Um não foge do outro.

Nos primórdios dessa linha de pensamento, Aristóteles dividia seu Liceu em dois períodos distintos. Na parte da manhã, chamado de esotérico, tratava de temas mais profundamente filosóficos, e tinha um número mais reduzido de alunos. Já na parte da tarde, tinha-se o período exotérico, com temas mais próximos ao dia-a-dia dos discípulos, voltados para a política, literatura e retórica. De toda forma, era seu hábito circular pelos jardins do Liceu ou mesmo pelas ruas da cidade enquanto dava suas aulas e preleções, justamente para trazer caráter mais empírico e menos especulativo com relação à Academia.

Esse método de ensino fez história, a ponto de se tornar sinônimo de aristotelismo. Eram os peripatéticos, o que, em uma tradução meio forçada, significa “aqueles que andam ao redor”. Sempre tendi a achar que esse nome teria a ver com o termo pathos, já que a própria palavra patético, que significa aquele que provoca compaixão ou tristeza, em decorrência do sofrimento que apresenta, tem o termo na sua raiz. Mas não. Esse pathos é sinônimo de caminho (path um inglês quer dizer exatamente isso), e o pensador ambulante é o símbolo da escola.

O Liceu ainda sobreviveu ao seu criador, por mais um bom tempo. Seus sucessores mais conhecidos foram Teofrasto, Estratão de Lâmpsaco, Alexandre de Afrodísias e Andrônico de Rodes, a quem coube fazer a organização das obras aristotélicas. O caráter empírico de seus estudos lhe deu o ar mais prático que é adotado no ensino profissionalizante, e, por esse motivo, os liceus espalhados pelo mundo estão voltados a essa parcela do mundo educacional, como na França, em Portugal e mesmo no Brasil.

Voltando ao presente, depois do passeio e do sorvetinho, ainda deu tempo para mais coisas, mas isso vai ficar para o próximo texto. Até lá e bons ventos a todos!

Recomendações:

Já que eu mencionei o filme, vai a indicação dele, que é muito bom mesmo.

ATTENBOROUGH, Richard. Gandhi. Filme. Columbia: EUA, índia, Reino Unido, 1982. Cor/PB. 188 min.


E o endereço do parque:

Passeio público 

Rua Presidente Carlos Cavalcanti, S/N

Centro Cívico

Curitiba/PR

A aproximadamente 405 km do centro de São Paulo 

Nenhum comentário:

Postar um comentário