(Passear é lazer, mas em Aristóteles era também o conhecer)
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena
Fernando Pessoa, no heterônimo Alberto Caeiro
Olá!
O que nós fomos fazer mesmo? Ah, sim… comprar temperos. De
vez em quando dou um pulo em Curitiba, como vocês, meus bissextos leitores,
estão cansados de saber. Aproveito o home office e vou passar uma semana
na casa do moleque mais velho, especialmente porque, segundo ele, já está de
saída de lá, devendo voltar a Sampa no começo do ano que vem. Acontece que
tenho umas horas livres no começo do dia, e, com isso, vou com a patroa dar
umas voltinhas. Desta vez, para fazer isso, comprar temperos exóticos em uma
boa casa que existe por lá.
Só que comprar meia dúzia de pimentas extravagantes não é um
programa que leve mais que vinte minutos. Sendo assim, tempo havia, e lembrei
que passamos beirando o Passeio Público, um parque central da cidade e bastante
próximo à mercearia que iríamos. Não custa dar um pulinho.
O Passeio Público de Curitiba é seu parque mais antigo,
inaugurado em 1886 para sanear um alagado que existia por lá, e que só servia
para fazer proliferar mosquitos e muriçocas. Em seu lugar, um pequeno conjunto
de lagos, jardins e pontes para os cidadãos fazerem seus giros na hora de
folga.
O projeto tem essa cara de europeu porque seu criador se baseou
nos jardins franceses para produzir esse espaço relativamente pequeno, mas que
tem um sabor parisiense em seu intimismo, passando por seus portões e
continuando nas alamedas que ladeiam os lagos.
Originariamente, os lagos do parque eram utilizados por
pequenos botes para dar uma voltinha molhada, alla Veneza, o que parou
de ser feito com o tempo, restando unicamente os barquinhos de adereço.
Um dos contrapontos mais curiosos daqui foi a introdução de
um coreto eletrônico, que deu modernidade ao velho equipamento tão típico
dessas épocas, onde é possível usar e abusar de projeções, além da tradicional
função de servir de palco e palanque.
Este aqui é um pedacinho da Ilha da Ilusão, uma ilhota que contém um busto do escritor Emiliano Perneta, considerado o príncipe dos poetas curitibanos, de verve simbolista e também atuante na área do Direito.
O desaguadouro do antigo Córrego do Belém, que produzia o
antigo banhado, ainda se presta a alimentar de água todo o complexo, ainda
produzindo tanques e cascatas artificiais.
Há muitos bichos dentro do passeio público, o que garante a
alegria da criançada. Nos lagos, há as habituais carpas coloridas, sempre
dispostas a deglutir vorazmente suas porções de ração.
E há diversos viveiros para aves, todos eles devidamente
cercados e com recintos de repouso. Embora houvesse bastante sol, o ventinho
frio típico dessas latitudes não fazia com que todas as aves se encorajassem,
mas muitas delas procuravam os raios.
Há as aves nativas, especialmente da Mata Atlântica, da qual
as matas de araucárias fazem parte…
… e há as aves estrangeiras, mas que também se adaptam bem
ao subtrópico curitibano.
Enfim, um lugar aprazível para um passeio rápido, para namorar um pouco e até chupar um velho sorvetinho italiano, daqueles que vem com abelhas de brinde.
Bom... passeios podem nos ensinar bastante coisa, não é
verdade? Depende, né? Quando lembro de minha época mais escolar de todas, não
vislumbro grandes passagens que tenham ocorrido fora do interior da imensa
escola estadual, que ocupava meio quarteirão de uma rua da Vila Diva, bairro
operário da zona leste paulistana. Como prédio, era extraordinária: duas
quadras, vários níveis de pátio, muitas e muitas salas, algumas especializadas,
com laboratório e oficina, área de refeições e cantinas, e até uma pista de
salto, tudo meio capenga, mas existente. Ocorre que ela adotava aquele modelo
presídio tão típico da década de 70, onde uma cigarra anunciava os inícios e
términos de aula, e o confinamento era garantido, a não ser para os
aventureiros que se dispusessem a escapar por uma linha de águas pluviais no
extremo sul da fortificação, o que nem era tão difícil em tempo seco. A
segurança para sair era reforçada, mas a peia cantava lá dentro mesmo, e até
briga de facas cheguei a presenciar. Nada mal para quem ama referenciar os
saudosos tempos seguros de outrora.
As únicas saídas eram as excursões raríssimas, feitas para
dizer que existiam, e que custavam aos bolsos proletários os caraminguás para
pagar o fretamento e ingressos que por ventura existissem. Uma delas foi em
1982, para assistir o filme Gandhi. É um filme ótimo, didático, histórico, que
fez sucesso na época tratando de um tema delicado, as lutas da Índia derivadas
primeiro da dominação, depois da religião, mas quem o agendou não teve a
sensibilidade de perceber que mais de três horas de filme para uma escola
repleta de fedelhos descambaria para o pandemônio. Foi o que houve. Depois das
duas primeiras horas, não havia mais quem conseguisse ouvir minimamente o que
se dizia na tela, mesmo com os poderosos alto-falantes do Cine Marabá (acho que
foi no Marabá) em plena potência.
Outra ocasião vergonhosa foi quando excursionamos ao teatro
Sérgio Cardoso, para assistir a uma peça sobre um dos principais
independentistas sul-americanos, Simón Bolívar. Encontrei uma obra sobre no
acervo do Teatro de Arena, mas acho que não era a mesma. Se em um cinema com
seu potente sistema de som o caos se instaurou, o que podemos pensar de uma
sala onde o que se ouve é a voz pura dos atores? Com menos de cinco minutos o
ator principal parou a atuação e deu um esporro proverbial na patuleia
infanto-juvenil, de forma a corar de um escarlate profundo as faces dos
docentes presentes, nossos professores.
Mas ainda tinham as saídas que fazíamos para disputar os
campeonatos interescolares. Aí, sim, nós aprendíamos… aprendíamos que tinham
menininhas observando e nos desdobrávamos nas acrobacias, mais para parecermos
pavões do que para demonstrar alguma consciência tática e tentar conseguir
alguma medalha.
Não sei exatamente a idade de quem me lê. Talvez as coisas
tenham melhorado.
O fato é que, nessas simples lembranças, coloquei na mesa
que fomos à República em um cinema e ao Bixiga em um teatro, mas nunca demos
trinta passos dentro da nossa própria freguesia, para conhecer minimamente sua
estrutura e funcionamento. A impressão geral é que a vida acontecia lá fora, e
que nada ocorria no nosso mundo real, mas o fato é que sim, havia uma sociedade
que povoava aquelas casas de tijolos aparentes pela queda dos rebocos, e onde
se fazia mais do que beber em companhia nas tardes de domingo. Poderíamos ter
ido à Sociedade de Amigos do Bairro, ao “bailarico” português, à Escola de
Samba Príncipe Negro ou a tantos outros lugares que existiam e que chegaríamos
em meia hora a pé, no máximo, entender por que estavam ali, o que faziam, o que
representavam para a coletividade. Parece bobagem, mas a visão que uma escola
dá é mais despida de camadas irracionais, um ângulo mais sistêmico da realidade
que nos cerca, justamente por seu propósito didático. Quando conhecemos esses pequenos
espaços por nós mesmos, o que é perfeitamente possível, podemos ter um ponto de
vista obliterado pelos preconceitos que nascem em nossas próprias casas,
devemos admitir. Assim, ao invés de ser uma entidade representativa do
interesse dos moradores, a Sociedade do Bairro vira um lugar para os velhos
jogar bocha; o espaço de manifestação cultural se torna o salão onde as
mulheres bigodudas se travestem de camponesas e a escola de samba deixa de ser
o amálgama de uma coletividade para virar o lugar onde os pretos vão fazer seus
batuques. Entendem onde quero chegar?
Por isso, o simples andar pelas ruas da cidade pode ter
propósito educacional e civilizatório. Encarar a realidade significa vivê-la, e
isso é mais fácil quando não estamos reclusos, meramente conjecturando o que é
a vida e seus desdobramentos. Para saber a vida, é preciso perceber a vida.
Aristóteles claramente tem essa visão e a coloca em seu
projeto educacional. Eram épocas em que os grandes letrados fundavam escolas, e
nelas impunham seus próprios estilos e métodos. Algumas delas ficaram
extremamente conhecidas, começando pela de seu mestre Platão, conhecida como
Academia. Esse nome foi dado em homenagem ao herói Academo, que tinha seu
túmulo nas imediações da área onde o filósofo instalou sua escola. Esse nome
virou sinônimo tanto de local de estudos, quanto de prática de esportes, que
Platão também prezava. Por isso, meu caro musculito, minha prezada monstrinha,
não é uma apropriação tão indébita chamar seu lugar de ginástica de academia.
Aristóteles, conquanto fosse o discípulo mais brilhante de
Platão, não foi escolhido seu sucessor por ocasião de sua morte, certamente
pelas suas divergências fundamentais com o mestre. Por esse motivo, resolveu
fundar seu próprio gymnasium, a quem o nome de Liceu, cujo bosque era
dedicado ao deus Likeon, uma das personificações de Apolo. Também hoje esse
nome continua a ser utilizado, não tão aberto como a academia, que acabou
virando sinônimo de produção de conhecimento, mas como estabelecimento de ensino
secundário (vide o Liceu de Artes e Ofícios, célebre aqui em Terra da Garoa).
Entre as duas instituições, há importantes diferenças metodológicas derivantes
da forma de cada um pensar.
Quando nós observamos a esplêndida obra de Rafael Sanzio
denominada “Escola de Atenas”, vemos no seu centro justamente nossos dois heróis,
Platão e Aristóteles.
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rafael#/media/Ficheiro:Escola_de_Atenas_-_Vaticano_2.jpg
Como toda boa obra de arte, a carga abstrata é tão ou mais
importante do que a habilidade técnica, e o que vemos aqui é justamente o
debate entre ambos os morubixabas gregos. Para o mais velho, o conhecimento era
uma propriedade exclusiva do intelecto, que seria o mecanismo disponível para
se atingir as formas perfeitas que plasmaram toda a realidade. Prova disso era
seu grande interesse pela matemática, área do conhecimento que fornece
parâmetros exatos do que seria essa tal realidade. Por esse motivo, Platão é
representado com a face de Leonardo da Vinci, seu correspondente da ocasião, e
com um dedo apontando para cima, onde estaria o Hiperurânio, ou o tal do Mundo
das Ideias. Para Aristóteles, no entanto, a questão não se dá unicamente no
campo das ideias, mas na realidade em si própria, ou seja, no mundo captável,
de uma maneira muito mais orgânica do que ocorria com seu mestre. Sendo assim,
é a partir da observação do universo circunstante que se extraem dados para se
aproximar da verdade, em um processo claramente empírico. Aristóteles dava
muita importância à coleta de dados e às ciências que necessitam de dinamismo
empírico, principalmente a biologia, dando menor importância às formas hard
code do Mundo das Ideias platônico. É representado, portanto, como seu
representante Michelângelo e aponta para baixo com a palma da mão e para todas
as direções com os dedos, indicando que a realidade está no aqui e no
agora.
Essa divisão ideal já deu, muitos séculos antes do grande
embate moderno, as bases para o confronto entre racionalistas e empiristas que,
no final das contas, provaram-se complementares. Para os primeiros, o
conhecimento é, antes de mais nada, um exercício mental, que é capaz de extrair
a realidade mediante o raciocínio puro. Já os outros não abriam mão de
experienciar suas teorias para dar fundamento calcado na realidade. A coisa já
nasceu aí.
Se fizermos uma rápida reflexão, constataremos que ambas as
correntes se imiscuem, se imbricam, se abraçam. Grandes conclusões universais,
como as distâncias astronômicas, são obtidas através de cálculos complexos, que
praticamente prescindem de observações. É que quanto menos as sensações
participarem da relação cognitiva, menos darão desvio às conclusões. Mas o
diabo é que um telescópio poderoso foi colocado em pleno espaço sideral, para
funcionar melhor do que se estivesse aqui na Terra. As máquinas, vejam vocês,
também tem sensibilidade, e um equipamento desses funciona melhor fora porque
tem menos refrações de luz. E isso ficou conhecido porque foi observado. Um não
foge do outro.
Nos primórdios dessa linha de pensamento, Aristóteles
dividia seu Liceu em dois períodos distintos. Na parte da manhã, chamado de
esotérico, tratava de temas mais profundamente filosóficos, e tinha um número
mais reduzido de alunos. Já na parte da tarde, tinha-se o período exotérico,
com temas mais próximos ao dia-a-dia dos discípulos, voltados para a política,
literatura e retórica. De toda forma, era seu hábito circular pelos jardins do
Liceu ou mesmo pelas ruas da cidade enquanto dava suas aulas e preleções,
justamente para trazer caráter mais empírico e menos especulativo com relação à
Academia.
Esse método de ensino fez história, a ponto de se tornar
sinônimo de aristotelismo. Eram os peripatéticos, o que, em uma tradução meio
forçada, significa “aqueles que andam ao redor”. Sempre tendi a achar que esse
nome teria a ver com o termo pathos, já que a própria palavra patético,
que significa aquele que provoca compaixão ou tristeza, em decorrência do
sofrimento que apresenta, tem o termo na sua raiz. Mas não. Esse pathos é
sinônimo de caminho (path um inglês quer dizer exatamente isso), e o
pensador ambulante é o símbolo da escola.
O Liceu ainda sobreviveu ao seu criador, por mais um bom
tempo. Seus sucessores mais conhecidos foram Teofrasto, Estratão de Lâmpsaco,
Alexandre de Afrodísias e Andrônico de Rodes, a quem coube fazer a organização
das obras aristotélicas. O caráter empírico de seus estudos lhe deu o ar mais
prático que é adotado no ensino profissionalizante, e, por esse motivo, os
liceus espalhados pelo mundo estão voltados a essa parcela do mundo
educacional, como na França, em Portugal e mesmo no Brasil.
Voltando ao presente, depois do passeio e do sorvetinho,
ainda deu tempo para mais coisas, mas isso vai ficar para o próximo texto. Até
lá e bons ventos a todos!
Recomendações:
Já que eu mencionei o filme, vai a indicação dele, que é
muito bom mesmo.
ATTENBOROUGH, Richard. Gandhi. Filme. Columbia: EUA,
índia, Reino Unido, 1982. Cor/PB. 188 min.
E o endereço do parque:
Passeio público
Rua Presidente Carlos Cavalcanti, S/N
Centro Cívico
Curitiba/PR
A aproximadamente 405 km do centro de São Paulo
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