(Um Memorial serve para lembrar o que uma cultura tem de bom. No caso, de preservar outras culturas)
A tinta de um acadêmico é mais sagrada que o sangue de um mártir
Maomé
Olá!
Como eu digo que este texto será o prosseguimento do
anterior, se o assunto nada tem a ver um com o outro? Bom… o mais fácil é
contar rapidinho o que houve, para não ficar cansativo, nem misterioso.
Eu e a patroa viemos a Curitiba e, na falta do que fazer de
manhãzinha, fomos passar frio e comprar temperos. No rumo ao empório, passamos
do lado do Passeio Público e voltamos vinte minutos depois para visitá-lo. Até
aí, descrevi tudo neste
texto. Acontece que eu parei meu carro no lado oposto ao portão principal,
um estacionamento a céu aberto, o que, na friaca sulista, acaba sendo um bem.
Ocorre que a saída não é em uma mera praça com seus
habituais pombos a que tive de atravessar, mas um logradouro com um prédio no
meio, um tanto estranho a um primeiro olhar, porque é absolutamente quadradão,
de um tom entre o grená e o terracota chamativo. O que será? Vamos ver.
Ah, é o Memorial Árabe. Como já vi nas perambulações que fiz
em Curitiba, há várias instituições que preservam as culturas originárias (poloneses,
ingleses
e ucranianos
são exemplos), e não é diferente neste caso. O estilo da construção, conforme
explicado no edifício, remete ao estilo mourisco, em especial nos pilares e nos
arcos.
No espelho d'água que circunda a construção, há uma
herma com o busto de um dos mais famosos pensadores árabes dos tempos modernos,
Khalil Gibran. Libanês, foi um prolífico escritor em sua curta vida, sendo
sua obra mais conhecida o livro poético-filosófico O Profeta.
Boa parte do memorial é recoberto por vitrais multicoloridos
com formatos de mandalas, uma prática comum na cultura médio-oriental.
Do lado de dentro, a abóbada também segue o estilo mourisco,
lembrando uma espécie de olho divino e muito parecido com o teto da igreja de
Nossa Senhora da Agonia, de Itajubá.
Um dos principais propósitos do espaço é ser um centro de
pesquisa, guarnecido por uma biblioteca, razão pela qual há grande quantidade
de livros de autores árabes ou referentes à sua cultura.
Aproveitando todas essas obras, retoma-se a tradição e a
lenda de Sheherazade e, todos os sábados, são feitas sessões de contação de
histórias e leituras encenadas sobre os contos do folclore árabe, especialmente
destinadas a crianças, em um simulacro de tenda berbere da primeira metade do
milênio.
Há um mezanino onde temos uma pinacoteca de exposições
transitórias, novamente enfatizando artistas de origem árabe. No dia de minha
visita, as obras eram do recém-chegado Razel Janji, de origem síria, e que
pinta as ruas e a vida quotidiana de sua cidade.
Também temos exposições permanentes, em especial as de
fotografias das primeiras famílias com estes registros chegadas a Curitiba.
Por fim, há vários escritos em caracteres arábicos
espalhados pelo espaço, muito diferentes daqueles que estamos habituados em
nosso mundo ocidental.
A continuação está só no passeio. A temática não tem nada a
ver uma com a outra.
Eu já falei em outro texto sobre a riqueza da Filosofia Árabe
(falsafa) e tentei até algum tipo de resposta ao fato de que ela não é
mais tão levada em conta hoje em dia (aqui).
É preciso cuidado para tratar do assunto, porque os estereótipos sobre essa
cultura são muito aflorados e se tornam dificultadores de respostas, sem que
façamos aquele velho exercício fenomenológico de remover as nossas próprias
camadas de cultura da frente de nosso olhar.
O começo é didático. Quando olhamos para os mapas-múndis,
localizamos um país chamado Arábia Saudita. Esse designativo não é inútil.
Trata-se da porção de território que é comandado pela dinastia Saudi, o que
representa um pequeno pedaço da imensa região que podemos chamar de mundo
árabe. Basicamente, o traço cultural mais forte que liga todo esse caldeirão é
a língua, principalmente porque sua extensão é imensa. Abrange toda a Península
Arábica, onde estão países como a própria Arábia Saudita, Omã, Iêmen, EAU, em
outros países do Oriente Médio como Líbano, Síria e Jordânia, toda a faixa
norte da África, o chamado Magreb, incluindo Marrocos, Egito, Líbia e Tunísia,
e até mesmo países da África Negra, como a Somália, o Sudão e o Djibouti. Com
tantos países compondo um território grande assim, é natural que não se
componha uma cultura unificada, da mesma forma que a média dos amazonenses é
bem diferente da média dos gaúchos, embora seja de bom tom evitar estereótipos.
Nem todos os falantes de árabes são islâmicos, nem todos vivem no deserto, nem
todos são morenos de cabelos escuros, e até mesmo nem todos têm o árabe como
sua única língua. Sendo assim, o chavão do caldeirão cultural se aplica
perfeitamente bem neste caso.
Ocorre que este território foi maior ainda, alcançando
quantidades expressivas de porções europeias, especialmente na Península
Ibérica e nas ilhas do Mediterrâneo. Essa presença está até mesmo nos
caracteres físicos de seus habitantes até hoje, o que faz deduzir que boa parte
desse fenótipo esteja também nas culturas. Há uma maneira bem clássica de se
reconhecer a influência: as milhares de palavras de origem árabe que fazem
parte dos vocabulários europeus, mormente na parte mais ao sul do continente, o
que evidentemente é somente uma amostra, mas que está no nosso dia-a-dia,
disponível para todos reconhecerem.
Mas o caso é que os árabes não trouxeram coisas somente
suas, e que acabaram por se tornar centrais na transmissão do conhecimento
ocidental para o próprio ocidente. Confuso? Sim, mas vocês vão entender, meus
episódicos leitores.
A coisa toda é a seguinte: a Magna Grécia floresceu todo o
esplendor de sua cultura em um momento em que um outro grande império crescia
notavelmente: os romanos. Com todo seu poderio bélico e militar, Roma subjugou
uma extensão de território que só veio a ser superada pelo Império Britânico já
nos séculos XIX e XX, em um contexto absolutamente diverso do que tínhamos nos
tempos em que as guerras se faziam através da presença física do povo dominante
e do corpo a corpo nos combates. A Grécia, ela mesma um país de grande
extensão, foi uma das nações que acabou por ser subjugada pelo Império Romano,
que, por sua vez, teve neles o espelho de uma sociedade avançada e organizada,
com ênfase na ciência e no conhecimento que em poucos lugares puderam ser
encontradas.
Os romanos tinham uma característica em suas dominações. Não
se incomodavam com o fato de que as estruturas culturais dos povos dominados
fossem mantidas, desde que não representassem uma ameaça real ao exercício de
poder e, especificamente, à tributação. O convívio relativamente pacífico dos
romanos com os demais povos fez com que, em certa medida, houvesse cruzamentos
culturais, de modo a imiscuir influências nos dois sentidos da relação. Com os
gregos, entretanto, e seus sofisticados sistemas de pensamentos, o trâmite foi
maior e mais expressivo, de modo a ser a cultura dominada a influenciar mais
pesadamente a cultura do dominador. Isso se espelhou mais evidentemente na
religião, sendo que praticamente toda a estrutura olímpica é transposta para os
panteões romanos. Muito da filosofia clássica grega veio junto e começamos a
ter pensadores romanos que aproveitavam fortemente essa influência, como Cícero,
Seneca, Marco Aurélio e tantos outros.
A coisa andou bem até o século III, quando o Império Romano
adotou o Cristianismo como religião oficial.
(Já começo abrindo parênteses para não ser mal interpretado.
Em nenhum momento estava escrito que o Cristianismo precisava desmantelar
culturas já estabelecidas, mas seu caráter apostólico, salvífico e exclusivista
favoreciam a substituição de uma determinada cultura não congruente com suas
doutrinas pela suas próprias, isto é difícil de negar).
A partir desse momento, a antiga cultura grega que dava base
para a romana, incluindo uma religião politeísta e com suas deidades
fisicamente presentes, foram paulatinamente sendo substituídas por modelos
baseados nas predisposições cristãs, de forma a se dar a supressão dos antigos
pensadores gregos, que agora eram colocados de lado, no caminho do esquecimento,
seja pela via da absorção, seja pela via da exclusão. O golpe de misericórdia
veio com o imperador Justiniano, que proibiu a continuidade das antigas escolas
filosófica pagãs, fazendo com que todo o conhecimento advindo desses polos
parasse de ser disseminado.
É importante frisar que o pensamento grego não foi pura e
simplesmente jogado na lata de lixo. É melhor dizer que ele foi retrabalhado
dentro da lógica cristã, o que fez com que o platonismo se transformasse em
Patrística, e o fez de maneira nobre, dando base para uma igreja que ainda não
possuía momentos de estabilidade anteriores para fixar de maneira definitiva
suas doutrinas e dogmas. Foi o momento em que grandes concílios foram
realizados, de maneira a definir mais claramente os rumos que a igreja ora
hegemônica daria para seus rebanhos. Por outro lado, todo esse conjunto foi
escrito já em língua latina, e os escritos gregos foram sendo paulatinamente deixados
de lado em seus originais.
Entretanto, tudo o que não fosse facilmente absorvido pela
nova ordem reinante ficou encostadinho no fundo das prateleiras da memória, o
que incluiu, como mais notável, todo o corpus aristotélico. E é aí que as
migrações árabes para a Europa vão fazer com que haja um ressurgimento.
Os gregos não espalharam sua influência apenas para o Império
Romano. Toda a região que hoje chamamos de Arábia, que está na mesma
circunvizinhança, também recebeu as ideias gregas. Ao contrário da Europa, no
entanto, não houve dentre eles um processo de descarte do conhecimento clássico
para ser substituído por ideário em conciliação com seus princípios religiosos,
e sim uma espécie de assimilação. O chamado Califado Abássida foi um grande
incentivador das artes e das ciências por um motivo muito simples: o
conhecimento não é um inimigo de deus, mas um aliado. A visão islâmica de então
via como as técnicas permitiam que o mundo fosse mais bem explorado e, de
tabela, Alá fosse devidamente reverenciado por esse ato. Um exemplo simplíssimo
está na precisão que se obtinha nas orações, ao saber interpretar-se
corretamente para que direção estava Meca, e com isso o cumprimento diário da
oração voltada para essa cidade fosse melhor. Se olhando ao mundo eu sei onde
está Meca, olhando ao mundo eu sei onde está deus, sacaram?
Isso nos traz a seguinte informação: se conhecemos os textos
aristotélicos, foi porque os povos árabes foram seus guardiães quando jaziam
esquecidos durante a Idade Média. Os árabes eram depositários do saber grego e
o levou para as terras que conquistaram na Europa. E é desses territórios que
se deu a nova difusão da cultura clássica para o restante da Europa, culminando
no momento em que surge a Escolástica e o antigo pensamento grego é retomado em
seu antigo esplendor, devidamente adaptado agora ao Cristianismo. Um exemplo de
como se deu esse processo está na ilha da Sicília, atualmente pertencente à
Itália. Sendo uma ilha razoavelmente grande do Mar Mediterrâneo, foi um dos
primeiros objetos da conquista árabe, até o momento em que os normandos
retomaram o território para um povo europeu. A novidade é que não encontraram
lá mais uma população cristã dentre outras, mas um centro de difusão da cultura
árabe diretamente e grega por via da preservação.
Só que isso ainda é uma contribuição aparente, que
costumamos ver quando estudamos nos manuais de Filosofia. A resposta mais
difícil de se dar é: qual é o tamanho do material próprio que os povos árabes
trouxeram nesta contribuição? Filósofos como Averróis e Avicena fizeram
ressurgir o aristotelismo através de suas obras, mas com um papel diferente com
relação aos copistas da Casa da Sabedoria, o mais importante centro de registro
da cultura árabe. A influência do Islamismo faz surgir uma relação mais próxima
com a divindade, sem, entretanto, que a porção religiosa obnubilasse por
completo o restante do conhecimento. Esses pensadores eram chamados de polímatas,
pela razão de abordarem uma gama muito distinta de ramos do conhecimento, o que
lhes ampliou muito a abrangência da cosmovisão.
Se São Tomás de Aquino teve seus famosos subsídios aristotélicos
para construir a Escolástica, foi porque encontrou as obras dos autores e dos
copistas árabes. Chega a ser irônico: a principal corrente da filosofia cristã em
voga até os dias de hoje estaria impossibilitada pela relegação ao esquecimento
de seu mais robusto fundamento. Ato e potência, quatro causas e primeiro motor
são componentes inelutáveis do pensamento tomista que tiveram origem lá, no
velho Aristóteles. Se fosse pelo gosto patrístico da igreja de até então, sua
filosofia dificilmente ganharia o esplendor que recebeu. É um motejo,
não?
A explicação para que ideias antes rejeitadas passassem a
fazer sentido veio justamente pelo filtro árabe. Autores como Avicena e Averróis
trouxeram um Aristóteles já conciliado com um monoteísmo bem consolidado, o
Islamismo, e isso fez com que São Tomás de Aquino vislumbrasse todo um universo
de princípios que coadunava muito bem com o Cristianismo, de forma a até mesmo
proporcionar provas ontológicas robustas da existência de Deus, as famosas
cinco teses (vide aqui).
Essas são as razões pelas quais a cultura árabe não pode e
não deve ser encarada meramente como um universo exótico, como fazem parecer os
filmes (e os noticiários) da tevê. Saí de lá com uma imensa vontade de achar
uma boa casa de esfihas para aproveitar o clima, mas vou deixar isso para
quando estiver de volta a São Paulo. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Normalmente vendida em boxes, a coleção de contos 1001
Noites não precisam ser lidos em sua inteireza, e é até fácil de achar
capítulos na internet. Segue a recomendação:
AS MIL e uma noites. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2015.
E o endereço do Memorial:
Memorial Árabe
Avenida João Gualberto, 141
Centro Cívico
Curitiba/PR
A aproximadamente 407 Km do centro de São Paulo
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