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quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 5º lugar: Aiuruoca e as dificuldades das imposições na área da linguagem

(A maneira como um idioma se forma é a prova de que é difícil forçar a barra para novos usos)

“Escrever é um ato não natural [...] A palavra falada é mais velha do que nossa espécie, e o instinto para a linguagem permite que as crianças engatem em conversas articuladas anos antes de entrar numa escola. Mas a palavra escrita é uma invenção recente que não deixou marcas em nosso genoma e precisa ser adquirida mediante esforço ao longo da infância e depois”.

Steven Pinker

Olá!

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Quando estive na cidade de Caxambu, bateu em mim a vontade de ir até São Thomé da Letras, por conta de sua fama de cidade esotérica e descolada, o que fiz. Entretanto, eu olhava para o trajeto do Maps e não me convencia do tempo alto para quilometragem baixa. Isso me causava desconfiança de uma estrada muito ruim, e como ainda era época do intrépido Bedelho, ficava bolado em colocar meu pobre carro urbano em uma longa trilha arenosa. Com isso, passei a cogitar outras paragens, que acabaram não se realizando porque, ora essa, acabei indo à terra mística. Uma dessas era exatamente a que começarei a tratar agora, a cidade de Aiuruoca.

Este nome significa “casa do papagaio”, e é justificado pela presença do majestoso Pico do Papagaio, um maciço rochoso que se estende a mais de 2000 m de altitude.

Essa formação é de visual onipresente pela região, seja no meio urbano, seja pelas sendas rurais, que não são poucas.

Por esse motivo, é uma espécie de símbolo da cidade, o que ajuda até mesmo a explicar seu nome. Creio que seja derivado do fato de ser uma região repleta da ave e suas aparentadas, como maritacas, araras e outros psitacídeos.

Aiuruoca é repleta de cachoeiras, divididas especialmente nos caminhos dos Vales dos Garcias e do Mututu. Visitei algumas delas, dentre as quais fica o manso Poço do Joaquim Bernardo, na verdade um remanso que forma uma piscina natural a partir de um dos afluentes do rio Aiuruoca.

Bastante próximo, estão situadas as plantações de oliveiras, que se trata de uma atividade produtiva relativamente recente e que agora tem começado a render seus frutos, de forma a fazer surgir o nome da cidade no circuito.

As terras altas e a temperatura amena que caracterizam a Mantiqueira têm se provado ótimas para o cultivo de oliveiras e produção do azeite, de modo que é um negócio que vai se expandindo a passos largos, com alguns lagares ficando bastante famosos, como o Serra dos Garcias.

O que comprova a boa qualidade dos produtos é a quantidade de certificados de premiação que se tem obtido pelos negociantes da região. São realmente muito saborosos e acompanham bem um pãozinho torrado.

Na área urbana, podemos encontrar uma cidade muito pequena, que futuramente terá problemas para se estruturar frente ao crescente turismo na região. Não se trata de nenhum demérito, porque o centrinho é bem bonito.

Ao redor da praça central e nas ruas do entorno, há uma série de construções coloniais típicas, muito comuns de encontrar nesta região e no Vale do Paraíba, por exemplo, com paredes de taipa e janelas com os vidros voltados para fora.

A igreja matriz é dedicada a Nossa Senhora da Conceição, com torre projetada imponente e a sobriedade típica de construções de época.

Um busto na praça reverencia um poeta da cidade, Dantas Motta. Viveu na época do Modernismo, com um ecletismo, entretanto, que lhe fez ter um estilo completamente próprio.

Boa parte do artesanato da região é bastante interessante porque é comercializado diretamente pelos indígenas que vivem nas redondezas, o que tipifica bastante as peças oferecidas.

Lá, vemos o conceito de etnojoia. São inúmeros artigos de sementes, palha, penas e cordões, cujo objetivo é produzir alternativas às bijuterias industriais, com o colorido vivo tão ao gosto tanto dos indígenas, quanto da patroa, que se divertiu à beça lá dentro.

No pacotinho do presente, o termo tupi para o beija-flor, escrito de uma forma atípica, porém correta.

Aiuruoca é o nome complicado de uma cidade simples, que está batalhando para se estruturar e receber os turistas que nunca tinha recebido em volume tão grande. Aliás, a complicação termina com um mínimo de exercícios, como os que costumo fazer quando me dou de frente com situações como essas. É só quebrar a palavra em partes menores e ensaiar um pouco –  aiu-ru-oca, aiu-ruoca, aiuru-oca, Aiuruoca. Duas ou três vezes são suficientes para parar de falar aruoca, airoca, airuoca ou qualquer outra corruptela desse nome.

Nomes indígenas são como a própria cultura indígena, são estranhos enquanto mal conhecidos. Depois disso, damo-nos conta de como fazem parte de nossa vida, e passamos a incorporá-los com muito maior naturalidade. Um grande exemplo está nos topônimos, que disputam com a religião católica a primazia nas denominações, quando já não se misturam (Santana de Parnaíba, que tal?). Explica-se: sendo povos originários, os índios já tinham os lugares nomeados antes da chegada europeia, e muitos deles foram mantidos. Não é normal que você chegue em um local desconhecido e pergunte a quem já está lá onde você está? Pois bem, a lógica é essa.

Eu gosto dos nomes de origem indígena. São fortes, presentes e sonoros, como Pernambuco, Indaiatuba, Itapecerica, Mangaratiba, Ipanema, com equilíbrio entre vogais e consoantes, de modo a não termos aquele amontoado de fonemas típicos de outras culturas. Claro que sempre haverá um Nhocuné ou Mongaguá para servir de trava-línguas, mas isso existe em todos os idiomas, como o clássico “bajame la jaula, Jayme” das línguas hispânicas.

A presença da influência indígena na cultura do Brasil é o principal fator de diferenciação entre o português usado aqui e aquele de Portugal, muito mais do que as decantadas diferenças de sotaque. O exemplo mais familiar é com relação àqueles a quem falta cabelo. Em Portugal, temos os calvos, sendo que aqui, há distinção entre aqueles que têm apenas as entradinhas (esses, os calvos) e os que têm o coco pelado, aqui conhecidos por carecas. A palavra careca não tem o menor sentido em Lusitânia, porque ela é de origem indígena, e, com isso, o léxico de Pindorama (o nome indígena pelo qual se chamava o Brasil – lindíssimo) é enriquecido com relação à língua matriz.

A interpenetração linguística é um fenômeno natural no meio social, e acontece desde o momento em que duas tribos distintas tiveram contato e passaram a tentar compartilhar sua cosmovisão. O exemplo mais próximo que temos de nós é o latim, que, em sua versão vulgar, espalhou-se por toda a Europa desde os tempos da expansão do Império Romano. Chegou à região da Ibéria trazido particularmente pelos soldados, e lá se misturou com os falantes locais, especialmente influenciados pelos árabes. Chegando nas Américas, recebeu ainda a mistura das línguas autóctones e dos povos africanos escravizados e constituiu a língua que hoje falamos em Terra Brasilis.

Eis que temos a maneira de como a língua se forma, mas há ainda o processo de distinção entre o que é correto de se falar e o que não, que fica na conta do coloquial. Quando um índio chama uma determinada fruta por um nome que somente ele conhece, ela dá uma espécie de credencial oficial àquela espécie desconhecida. Por outro lado, quando a cultura preponderante já tem um nome para aquela fruta, o nome indígena fica como um designativo alternativo e não oficial, subalterno à designação oficial. Na medida em que esse nome vá recebendo mais e mais uso, melhor vai se tornando seu estatuto, ao ponto em que, um belo dia, ele vai para a norma culta, ao lado do termo nobre, às vezes até mesmo o substituindo. Ninguém mais é chamado de “vossa mercê”, mas de você, seu derivado hodierno.

Muitos termos, neste exato instante, estão concorrendo para se tornar mais e mais aceitos, primeiro no uso coloquial e popular, com todo o preconceito que vem junto, mas, da mesma forma que na seleção natural, aumentando sua penetração, e esperando ficar colocado no cânone da linguagem.

Um bom exemplo é o gerundismo. O “vou estar enviando” (i'll be sending) é fruto de uma limitação da língua inglesa, mais pobre na articulação dos verbos do que as românicas, e que foi levada a cabo por conta da tradução porca dos manuais originais, e dá impressão de uma fala empolada, sem que se perceba que, em português, há duas formas corretas de fazê-lo: “eu vou enviar”, mais do dia-a-dia e “eu enviarei”, mais formal. Hoje, ainda conseguimos resistir ao erro, mas será inevitável que o uso vá consagrar a forma. Haverá um momento tal em que virá a consagração, e o gerundismo passará a fazer parte na norma culta. Para nós, infelizmente; mas, desde que bem aceito, ninguém mais estará preocupado com isso.

Outro exemplo é o aportuguesamento de palavras. Era comum que as palavras oriundas de línguas estrangeiras fossem adaptadas às regras ortográficas do português, e, com isso, surgiram termos como clube (club), futebol (football), bife (beef), coquetel (cocktail), nocaute (knockout), pudim (pudding), sanduíche (sandwich) e tantos outros, incluindo o horroroso copirraite (que não pegou muito). Por conta da tecnologia, vários e vários novos termos vão sendo introduzidos em nossos quotidianos, só que sem o costume do aportuguesamento, ficando no original em inglês. A internet fez com que surgissem os sites, browser, online/offline, dentre outros, com a novidade de não serem mais aportuguesados, já que não lemos as palavras saite, brauser ou onlaine/ofilaine.

Há ainda outro detalhe. Da mesma forma que palavras surgem, palavras somem. Caem em desuso pelos mais diversos fatores: obsolescência, substituição do termo, momento histórico. Se você não compreende quando eu digo que o zagueiro do teu time deu uma domingada no último jogo, poderemos deduzir duas coisas: que certamente você tem menos de cinquenta anos e que o termo está caindo em desuso. Essa derivação vem do célebre zagueiro Domingos da Guia, um dos melhores nas décadas de 30 e 40, e que, por conta de sua incomum habilidade, era dos poucos à época a sair jogando de sua área, quando o esperado era um clássico chutão para frente. Se por um lado isso dava qualidade na saída de jogo, por outro trazia o risco do desarme. Quem trabalha muito, erra muito, e foi mais de uma vez que um voluntarioso atacante conseguiu o desarme que resultou em contra-ataque. Essa perda de bola arriscada ficou conhecida como domingada. Só que o tempo passou, Domingos da Guia se foi e o termo foi perdendo força, pelo distanciamento histórico, até sua quase extinção nos dias de hoje.

Não deveria nos causar sustos, esse fenômeno. É esse o processo natural de toda cultura, e aquela dominante impõe sobre as demais as suas características. Não foi diferente com os romanos, com os britânicos, com os espanhóis e portugueses na América Latina. O máximo que podemos fazer é choramingar, se isso nos incomodar, mas o mecanismo de construção dinâmica das linguagens é esse, além, evidentemente, das transformações internas.

E qual é o motorzinho dessas transformações? Ora, o próprio processo histórico. No momento em que a França tinha o domínio diplomático do mundo, muito do seu linguajar e cultura se espalhou pelos quatro cantos do planetinha. Abajur, maionese, sutiã, purê, balé, tricô, garçom e tantos outros são palavras que poderiam ter alternativas em português, mas que preponderaram porque a França era mais poderosa política e economicamente. Idem ocorrerá com árabes na Península Ibérica, com russos na área eslava e com ingleses contemporaneamente. Mas não é só pelas regras de dominação que as línguas se formam, porque elas se imiscuem pelo uso. Um exemplo para lá de prosaico: sabem aqueles saquinhos com suco gelado? Como eles se chamam em sua cidade? No meu bairro (São Paulo é tão grande que tem mais de uma fala), chamávamos de juju. No Rio, é sacolé. Em Taubaté, o pessoal trata por gelinho. Há lugares onde é chupe-chupe, geladinho, dindim, flau e assim por diante. É incontrolável o nome que o tal gelo com suco tomará em um local. Pode-se achar engraçado o falar de um forasteiro, ou usar o das novelas dos grandes centros, ou o do cidadão que o trouxe para a cidade, ou… ou… ou. A centralidade do que falo aqui é: o processo de formação de uma língua se dá de maneira espontânea, seja qual for o mecanismo que se der.

E é aí que eu vou retomar uma daquelas polêmicas que eu gostava de lançar aos alunos nos primórdios deste blog. Ultimamente temos cada vez mais ouvido falar em gênero neutro. Trata-se de uma proposta de utilização de designativos que não determinem um gênero quando ele não é aplicável, notadamente pela característica majoritária de nossa língua em utilizar o gênero masculino quando há uma generalização, mormente nos casos de plural. O exemplo mais em voga é o “todas, todos, todes”.

A contestação se dá por conta da suposição de um sexismo na formação da língua portuguesa, já que a neutralidade de gênero é, com poucas exceções, indicada pelo masculino. Isso traz problemas interpretativos: enquanto um termo como “jogadoras” indica claramente que naquele conjunto só existem mulheres, o termo “jogadores” não permite fazer tal dedução, já que ele indica tanto presença mista, quanto presença exclusiva de homens.

A questão divide opiniões naquele mesmo esquema de Fla-Flu. Quem se diz de esquerda é favorável, quem se diz de direita é contrário, em geral. É a coisa do pacote pronto, mas as justificativas são, de um lado, o direito de se representar sem uma mácula sexista, e de outro a inutilidade de se mexer na língua por motivo fútil.

Eu sou um cara mais dado a ser progressista, como é possível observar nos diferentes textos deste blog, embora eu procure manter a impossível neutralidade quando a questão não é opinativa. Mas eu tenho pontos de conservadorismo, e este é um, ainda que haja pragmatismo nessa posição.

Em primeiro lugar, eu tenho uma chatice absolutamente decantada no quesito linguagem, sendo que já até a narrei aqui. Mas, além disso, por tudo o que expus até o presente momento, dá para perceber que a formação de uma língua não se dá por decreto. Forçar a utilização de termos neutros é praticamente uma garantia para seu fracasso.

É preciso apostar que a causa ganhará adeptos de forma orgânica. Eu mesmo já me peguei a utilizando de maneira informal, na base do “boa tarde para todes”, e é assim que as coisas nascem. Primeiro, parece engraçadinho, mas, aos poucos, vai caindo no uso comum, assim como certos termos deixam de ser utilizados por se tratar de mau gosto. Dependendo, isso nem leva tanto tempo assim, e não precisa de uma lei que os proíba.

Notem que toda disposição linguística nasce da fala, e não da escrita. Surge pela via da informalidade, e depois passa para os manuais. Conforme nos ensina Steven Pinker, linguista e psicólogo canadense, a linguagem pode ser considerada como uma característica inata dos seres humanos, ou seja, os mecanismos evolutivos desenharam a nossa espécie para conceber e utilizar meios de comunicação entre os seus membros. Portanto, os caminhos da natureza nos levaram a ter linguagem inerente, ainda que não seja de forma meramente falada, mas gestual, por exemplo. Entretanto, escrever não é um ato natural do ser humano. Uma criança balbucia os seus vagidos porque há um aparelho fonador apropriado para isso, além de um instinto voltado para a comunicação. Já as letras não representam nada para ela, não só porque não seja capaz de interpretá-las, mas porque é perfeitamente possível viver sem essa forma de expressão. A escrita é uma sistematização artificial de um objeto natural que é a fala. Portanto, a espontaneidade está nessa última. É nela que se constroem as comunicações, antes de serem trasladadas para a escrita. O “orra, meu” dos paulistanos nasce das bocas, e não das penas, para evitar o palavrão sem tirar a força da expressão, e é assim que fica eternizado. Construir a linguagem pela lei vai pelo caminho inverso, e aqui não falamos pela via matemática da ordem dos fatores que não alteram o produto, e sim pelo caminho inverso da divisão. É colocar o carro na frente dos bois, é fazer a linguiça comer o cachorro.

Qual seria a consequência da utilização de termos neutros através da legislação? Primeiro, um erro de estratégia. Imposições são sempre antipáticas, por mais que sejam calcadas em causas justas. Sabemos que pessoas estão sofrendo por conta disso, e são justamente elas que são alvo dos piores opositores dessa causa. O caminho da conscientização me parece ser o único factível, com seu lento, mas progressivo processo. Subsidiariamente, há que temos uma deficiência já muito grande com relação ao aprendizado da língua. Temos uma urgente necessidade de melhorar os índices escolares, passando por uma mudança cultural que comece já no berço. Aumentar a complexidade de uma língua que já é difícil de aprender dá ainda mais munição aos opositores da ideia.

Em tempo: os projetos de lei que tramitam hoje no Congresso versam todos sobre a proibição da utilização de gênero neutro em sala de aula ou documentos oficiais. Não há nenhum projeto concreto que vise tornar obrigatório tal uso, isso é importante frisar. Enquanto a adoção do gênero neutro ainda vaga no campo das ideias, já se correu legalmente para impedir seu uso. É mais uma demonstração do momento de neurose que temos vivido em nossos dias.

E é assim que um nome de cidade, daqueles mais ou menos difíceis de falar de cara, suscita uma discussão em mim mesmo sobre temas controversos do nosso quotidiano. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livro que parece aqueles manuais de redação de jornal, mas que tem fundos filosóficos que nos fazem pensar bastante, e, daí, a sua recomendação.

PINKER, Steven. Guia de escrita. Como Conceber um Texto com Clareza, Precisão e Elegância. São Paulo: Contexto, 2016.

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