(Entre dois extremos, há um universo de camadas que buscam o infinito. Como se apegar a qualquer uma delas?)
Olá!
Tem certas coisas na vida que só fazemos na base da coação,
algumas delas social. Isso significa que não precisamos ter uma arma na cabeça
impondo uma rendição, mas uma pressão que o mundo exerce sobre nós, sob pena de
sermos colocados no submundo dos desencaixados. É o caso do ato de se barbear.
Isso para mim, claro. Eu não tenho uma barba muito espessa, mas os pelos são
grossos, e isso dá aquela juvenil infestação de perebas se eu me atrever a
fazê-la diariamente. É irritante, é feio, não gosto.
Só que não tem remédio. As convenções estabelecem que barba
por fazer é coisa de malandro e, por isso, precisei chegar a uma fórmula
redutora de danos. Em primeiro lugar, mantive uma barba, ao invés de rapá-la
toda, porque isso evita que as pontas recém-nascidas se escancarem como em um
rosto limpo, dando aquela aparência de Homer Simpson. Depois, consegui
estabelecer uma relação de tolerância com minha própria pele, e cheguei em uma
agenda de consenso: fazer a barba em um dia, descansar dois. É isso que faz navegar
entre os tênues limites do aceitável.
Acontece que hoje eu me deparei com um dilema inusitado.
Desde o início da pandemia, visitas presenciais no cliente rarearam bastante,
já que as reuniões remotas se tornaram o padrão saudável. Entretanto, há aquelas
em que há exigência da presença, nem sempre bem justificadas, como o contato
olho no olho, a força das palavras e outros esoterismos, mas, no final das
contas, eu sou um subordinado. Nos dois dias anteriores à agenda, vejo-me
diante do espelho com o incômodo estado intermediário entre o fazer e o não
fazer.
A encruzilhada é a seguinte: é domingo, dia inevitável de
barba. Fazê-la à noite rende uma segunda elegante e uma terça claudicante. Para
o dia-a-dia, vá lá. Mas para ver os diletos fregueses, já se torna um tanto
relaxado. Sim, eu sou largado, mas as conveniências sociais fazem parte do
ganha-pão. Não posso deixar de fazer hoje, porque estou com aquela alegre
aparência de chihuahua, só que aí eu não tenho como deixar de repetir a ação
antes da terça, ou seja, na segunda. E aí minha pele de bebê não resiste a
tanto assédio.
A solução foi simples, embora eu não curta muito: acordar
mais cedo e fazer a barba na segunda pela manhã, o que a deixou ainda tolerável
(com o truque da barba maior preexistente) para a terça, e vida que segue. O
resto, puras impressões psicológicas, como se uma estranha força natural
estivesse forçando meus pelos mais rapidamente nesta segunda inglória, como se
imediatamente após as navalhadas já estivessem brotando os malvados folículos,
em um hirsutismo instantâneo e momentâneo inexplicável pela ciência, como se eu
tivesse a necessidade de me rebarbar imediatamente após passar a ardida loção.
A barba é, de fato, uma coisa esquisita. Como ela nunca para
de crescer, dizer que a temos feita é algo inalcançável. De fato, se você
chegar ao nível microscópico, verá na aguçada lente que o processo de
crescimento é ininterrupto, ao ponto de se achar que, mesmo após a morte, ela
persiste em seu mister. O que ocorre, na verdade, é que os tecidos relaxados do
defunto recente tendem a se encolher, o que faz com que pelos já germinados
ainda dentro da pele ponham-se para fora dos poros, dando a macabra sensação de
que ainda há algo vivo naquele presunto que ali jaz. Sendo tudo isso assim,
dizer que fizemos a barba é uma mera convenção e, como tal, fácil de ser alvo
de contestações.
Tudo isso não é problema significativo, mas pode acabar se
tornando. Isso acontece porque a barba é um exemplo lúdico para coisas bem mais
sérias, que são igualmente difíceis de determinar, mas que não vão apenas te
deixar com cara de descuidado. Quer um exemplo?
O que determina a maioridade? A resposta é simples: a lei.
Mas como se chegou à idade da responsabilidade (lembrando que há diversas
idades mínimas espalhadas pela legislação)? Eu pesquisei por toda a internet, e
não achei uma resposta que tivesse cunho científico, o que me leva a crer que o
principal componente é a tradição, algumas vezes ligada ao exercício da
religião, já que vários ritos de passagem estão ligados à idade do gajo. Sempre
é muito difícil determinar o ponto exato em que uma pessoa passa a ter efetiva
responsabilidade pelos seus atos ou adquire capacidade suficiente para exercer
uma função. Ninguém acorda de manhã e se vê revestido de novos hábitos e
conhecimentos que dão uma guinada substancial na vida: poder dirigir, ser
preso, eleger e ser eleito.
O caso é que a lei resolve a questão na canetada, porque sua
arbitrariedade, no caso, é de rigor. Não há como avaliar caso a caso a capacidade
e a responsabilidade de cada pessoa, por isso é estabelecido um parâmetro o
mais próximo possível considerando fatores que rodeiam um contribuinte. Por
exemplo, aos 18 anos há tempo na média para que alguém tenha estudado e obtido
um ofício, e que este lhe permitirá se sustentar, ao menos em tese.
Na prática, contudo, essa régua é móvel. Haverá gente que,
aos vinte anos, conseguiria gerir o país de melhor forma que ineptos de 67
anos. Como não dá para aferir essa condição, cravam-se 35 anos para que certo
cidadão possa ser presidente. Mas essa condição existe, independente da
conveniência social da imposição arbitrária. E há algum ponto na vida em que
nos tornaremos mais capacitados e mais responsáveis. Só que essa é uma condição
em que não é possível detectar o ponto exato de virada, porque não são coisas
que acontecem de uma vez, como acontece com a barba que acabo de fazer e já vai
crescendo novamente. Podemos estar perfeitamente aptos para dirigir em um
momento, e somente preparados para casar em outro, para ingressar no serviço
público em outro ainda.
Outro belíssimo exemplo costuma dar mais discussão ainda:
quando podemos afirmar que principia a vida? Aqui, a mistureba de conceitos
tende ao infinito. Uma resposta intuitiva seria dizer que é no nascimento, mas
logo de cara esbarramos em uma pilha de problemas. Certo: aqui também temos o
arbítrio legal, e, ao menos no Brasil, alguém ganha direitos ao sair do ventre
de sua mãe. Mas quando vamos à espinhosa questão do aborto*, essa definição já
não se aplica. Daí, a definição de vida vai ganhando uma plasticidade quase
artística, e a continuidade de que estou falando se mistura a si mesma. Uma
definição que se costuma utilizar é a transição do embrião para o feto, o que
acontece após X semanas de gestação. Na real, o que determina que um embrião
agora é um feto não é seu tempo de existência, mas um conjunto de
amadurecimentos tais que caracterizam o trânsito. Mas como mensurar o momento
exato em que uma quantidade de células deixou de ser um amontoado e virou um
órgão definido? No limite, podemos descer até o nível molecular e isso é
impossível de fazer. Outra definição é a capacidade de que o feto consiga viver
autonomamente, sem ligações corpóreas com sua mãe. Mais uma vez, é possível
imaginar esse momento nos milésimos de segundo: se o feto se desligar de sua
mãe no instante X, virá a óbito; se for no instante X+0,001 segundo, já
conseguirá sobreviver. Uma posição que é mais confortável é o momento da
concepção, o exato ponto em que um espermatozoide invade um óvulo, mas também
aqui a definição é insegura, porque a regressão não é nem impossível, nem
absurda. Estes dois componentes, comumente, são considerados construtores da
vida, mas não é um absurdo inequívoco considerá-los vivos. E a regressão pode
ser feita ab ovo, o que, aí sim, é absurdo. Sendo assim, a continuidade,
também aqui, impossibilita determinar um momento exato.
Tudo isso resulta em uma zona cinzenta que tramita entre
dois extremos, e, como pudemos ver, nem sempre se consegue determinar com exatidão
o ponto exato onde nos encontramos, e isso é um perigo em forma de falácia.
Imagine a seguinte situação: precisamos tratar de um câncer.
A boa lógica indica que devemos procurar um médico, que fará uma avaliação e
indicará o melhor tratamento possível. Se não for na senda da enganação, médico
nenhum no mundo vai te dar certeza de cura, e sabemos o quanto a progressão da
doença é agressiva. Isso leva uma pessoa a procurar outras rotas.
Minha mãe dizia que o tratamento do câncer era sempre mutilatório, antes ainda de ser acometida por este mesmo mal. Sua doença começou pela bexiga, que precisou ter sua capacidade reduzida pela metade. Tia Nica teve câncer no seio, e lá foi seu seio. Prima Cláudia teve câncer de útero, e lá foi seu útero. Tio Antônio teve câncer de pulmão, e lá foi seu pulmão. Até mesmo o insólito Homem-Cueca, atualmente taubateano (embora seja carapicuibano de nascimento), passou há uns nove meses por uma cirurgia para retirar mastocitomas da pele, sendo que um deles estava entre seus dedos da pata, e lá se foram os dois.
Teria razão a progenitora? Uma cura sempre inclui uma perda
corporal? Não totalmente. Embora realizar amplas extrações faça parte do
protocolo de tratamento, o fato é que as rádio e quimioterapias atuam também
para conter a expansão. O próprio cão, se deixado à própria sorte, a essa hora
teria muito mais focos espalhados pelo corpo, tornando o tratamento muito mais
difícil. Por enquanto, um bom tempo depois de operado, parece que está tudo bem
com o vira-lata, ainda que com dois dedos a menos na pata da frente.
Acontece que, como nunca há a certeza de cura, é
razoavelmente natural que se tentem alternativas menos canônicas de tratamento,
desde novas drogas que não passaram por testes, passando por ervas da sabedoria
popular e chegando a combinações esdrúxulas de beberagens, isso tudo sem contar
os apelos para a senda espiritual. Em alguns casos, fia-se mais nesses do que
nas preconizações científicas, a ponto de se abandonar tratamentos para se
dedicar às bizarrices de um charlatão.
"Se ninguém tem certeza de nada, então vale qualquer
tentativa", é o pensamento. Equivocado, certamente. Eu já disse que o
desespero é um guia de conduta, mesmo que cego, e é compreensível que se apele
para rotas alternativas quando o diagnóstico não traz boas notícias. Mas não se
pode equiparar o que um médico diz com aquilo que um beberrão na porta de um
boteco receita. Por caprichos da probabilidade, pode até ser que uma caipirinha
de uísque com babosa possua, de fato, algum efeito profilático sobre certos
tumores, mas qual é a chance de que isso seja verdade? Em quem a racionalidade
mandaria confiar?
Para democraticamente demonstrar como essa linha é embaçada,
teve um caso correlato na família ainda no mês passado. Um tio da patroa estava
se sentindo doente, e foi no posto de saúde da pequena cidade em que vivia. Com
os resultados na mão, o médico disse se tratar de câncer em estágio avançado.
Todo mundo ficou meio em choque, mas uma das parentes sacou o revólver contra o
doutor: "é um clínico geral que não sabe de nada… precisa levar no
especialista em Londrina ". Tinha razão a revoltada parenta, mas alto lá.
O médico que fez a análise tem formação, sabe interpretar o que diz um exame e
não pode ser colocado na condição de mané, como faz crer a assertiva. Se fosse
eu, informata metido a filósofo que lesse o emaranhado de letras e cravasse o
diagnóstico, teria plena razão a indigitada. Mas esse não é o caso, já que o
doutor clínico tem autorização social e conhecimento aferido para opinar. Por
essa razão, esse argumento de continuidade tem não só dois lados, mas
infinitos.
Portanto, a principal característica da falácia continuum é
qualificar qualquer posição em um amplo espectro de possibilidades como tendo o
mesmo valor. Isso é evidentemente falso, porque há níveis de precisão mesmo em
um diagnóstico impreciso. A palavra de um médico vale mais no âmbito
científico, assim como um teólogo terá mais peso em termos de religião, ou um estatístico
terá maior aporte em questões de probabilidade, e nada disso pode ser comparado
com palpiteiros. Há uma escala de valor nas afirmações de quem vive sobre um
determinado assunto, que supera opiniões infundadas, ainda que devamos ter
dosagens com as “carteiradas” do argumento de autoridade (vide).
Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Vou dar uma recomendação literária, de longe um dos livros
que eu mais gostei de ler na vida. Aqui, vemos toda a força das zonas
cinzentas, da indefinição das repetições e dos ciclos que parecem eternos. Vale
muito a pena ler o quanto antes.
MARQUEZ, Gabriel Garcia. Cem Anos de Solidão. Rio de
Janeiro: Record, 2010.
* Se existe um tema em que eu não consigo me definir por completo, é nesse. Para saber mais, leiam este texto.
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