(Falácias não se fazem somente com palavras)
Olá!
Eu juro para vocês que não tive estômago para acompanhar de
perto as últimas eleições. Havia uma combinação de descrédito com a classe
política, de cansaço com o turbilhão social dos últimos quatro anos e com a
séria ameaça de que tudo iria se repetir. Sendo assim, fixei meus candidatos e
desliguei o botãozinho, o que significa nem sonhar em acompanhar a propaganda
eleitoral e desprezar de pleno efeito os debates televisivos, a grande vedete
de todo o processo. Só não tive como evitar a apuração, tensa ao cubo,
principalmente no segundo turno. O prédio em que habito normalmente é de calma
redobrada nos domingos à noite, mas o desassossego estava vibrando em cada um
dos velhos tijolos, para um lado ou para o outro.
Os debates que citei mudaram muito nos últimos tempos. Por
conta dos quebra-paus das décadas de 80/90, foram estabelecidas tantas regras
que dificilmente não se resulta em um negócio insosso, só marcado pela
inverossimilhança das propostas (quando existem). Caras como Maluf, Brizola e
Quércia podiam não ser melhores como portadores da verdade, mas ao menos
garantiam a noite no quesito diversão. São bastantes os acontecimentos desses
tempos que viraram memes até os dias de hoje. Só que no fundo, o resultado é o
mesmo: todos eles, indefectivelmente, saíam dos debates com a cara amassada de
quem vai ao corner do ringue, mas cantando vitória como se fossem galos de
briga. Fiquei velho e cansei desse tipo de coisa.
Como bem sabemos, o intuito sempre é um só: sair vencedor de
um debate. Esse conceito, entretanto, é muito maleável. O que é a vitória em
si? É um compilado de argumentos devidamente sequenciados e com itens objetivos
avaliados? Ou é aquilo que faz a audiência gritar mais? Ao menos para o voto,
parece claro ser a segunda. E para muitos dos debates de YouTube também.
É dessa forma que agem aqueles que compreenderam que a
guerra de argumentos também se vence sem eles. É fato que nem sempre e nem
todos têm a correta compreensão do que se discute, então busca-se por certos sinais
de que alguém está em posição favorável ou não. Se alguém gagueja, por exemplo,
pode estar se demonstrando inseguro, e se isso acontece temos uma amostra de se
estar acuado. Por isso a fala firme e as demonstrações de se estar por cima da
carne seca enganam muito. Não importa o que se diz, mas a sensação de
superioridade que se passa. E isso passa mais pela agudeza do emocional do que
pela correção da lógica aplicada.
Quando falamos em falácias, normalmente estamos nos
dirigindo a construções lógicas (ou nem tanto) que desvirtuam o objetivo de um
argumento. São inúmeras as formas de fazer isso, como temos visto neste pequeno
guia. Há os apelos, que buscam enfatizar o aspecto emocional em detrimento da
lógica, há os erros categoriais, para misturar as bolas sobre o que estamos
falando, os erros formais, que torcem a propositura dos silogismos e muitos
outros. Mas não é só daquilo que está manifesto na linguagem que vivem as
falhas argumentativas. Elas também residem em atitudes e gestuais, que tentam
causar a mesma dispersão produzida pelas palavras. É nisso que consiste a
falácia da falsa proclamação de vitória, um tanto semelhante ao argumentum
ad lapidem, porque procura dar uma terminação ao debate, mas, ao invés
de utilizar da peremptoriedade verbal, vai na mão da persuasão pela forma, e
não pelo conteúdo.
Uma forma de se entender a falsa proclamação de vitória são
as chamadas mitadas, termo do qual peguei um ranço desmedido, por motivos
óbvios. Uma mitada (ou uma lacração, se vindo da esquerda) é uma frase de
efeito que, supostamente, humilha um adversário e define o debate. Geralmente
são frases feitas, algumas vezes desencaixadas do conceito que se discute, mas,
exatamente por se apresentarem prontas, são de fácil absorção pela patuleia,
que já concorda de pronto com aquela “verdade”. Não preciso trazer exemplos,
eles existem aos borbotões.
Assim como acontece com outras falácias, a falsa proclamação
de vitória também tem um apelido, e eu vou contar sua história. Tudo começa na
enjoativa disputa entre evolucionistas e criacionistas (vide aqui).
Como bem sabemos, a evolução é uma teoria científica, embora seu nome mais
correto seria modificação da descendência por seleção natural, muito longo para
aplicação comum. Sendo uma teoria, ela mesma, assim como os fenômenos que
descreve, evolui. Isso é próprio e típico das ciências, que, lembremos, não
pretendem SER a verdade, mas APROXIMAR-SE da verdade. O mesmo não se pode dizer
do criacionismo, que é estanque. Afinal de contas, como se baseia nos livros sagrados,
não pode flutuar ao sabor de novas descobertas. Fragmentos de pergaminhos que
são localizados em sítios arqueológicos causam alvoroço nos meios históricos
positivamente, justamente o contrário do que ocorre nos meios religiosos, que
colocam uma pilha de parênteses em descobertas contraditórias com suas
crenças*. Com isso, todo o seu fundamento é imutável. No que isso resulta?
Eternas respostas iguais, sempre iguais. A constante evolução da Evolução vem
sempre trazendo respostas cada vez melhores e mais fortemente embasadas,
enquanto o ponto de vista criacionista se baseia em releituras de mais do
mesmo. É a velha confusão que ocorre quando se acha que a teoria vem na frente
da prática. Não, não é nada disso. A teoria nada mais é do que a prática observada,
das leis e repetições que são possíveis de extrair através da atividade
empírica (leia com mais detalhes aqui).
Quando isso acontece, o que temos é uma realidade dada, e não uma teoria, e
isso acontece com as religiões, não com a ciência. É o que acontece com o
criacionismo, e não com o evolucionismo. Portanto, quando confrontado com uma
realidade incômoda, tudo o que resta é se recolher ao próprio nicho e,
eventualmente, cantar vitória.
É no contexto dessa eterna briga que a falácia da falsa
proclamação de vitória virou o complexo do pombo enxadrista. Isso brota
através de um comentário ao livro Evolution vs Creacionism: an Introduction,
de Eugenie C. Scott, no site de compras Amazon, que, acreditem, está lá
disponível até hoje (vejam este link).
Eugenie é uma antropóloga estadunidense que trabalhou intensamente durante a controversa ideia de se ensinar criacionismo em aulas de ciências. Para trazer uma espécie de manual sobre o confronto e tornar mais claros certos pontos que traziam confusão no debate, resolveu escrever o livro acima. O comentador em questão, S. D. Weitzenhoffer, ao resenhar sobre a obra, diz o seguinte, em uma tradução livre:
"Discutir com criacionistas sobre evolução é como
tentar jogar xadrez com um pombo. Ele derruba as peças, caga no tabuleiro e voa
de volta aos outros pombos para cantar vitória".
A alegoria é simples de entender. O jogo de xadrez é
bastante complexo, começando pelo fato de ser uma encenação de combate. Lá, um
rei deve ser protegido pelo seu séquito, que, cada um tendo funções
específicas, tem movimentos diferentes. Os peões são a linha de frente, de
pouco poderio, mas em grande quantidade. Formam uma barreira e são os primeiros
a dar proteção e a morrer. Na linha atrás, o rei é protegido pelos flancos
pelas torres, bispos e cavalos, além da peça mais poderosa de todas, a rainha.
Ao contrário de um jogo de damas, que acaba quando um dos oponentes
"come" todas as peças do adversário, no xadrez basta que se capture o
rei, e pode até terminar em empate. O jogo é, portanto, uma pequena reprodução
de um painel político. Como se trata de uma disputa entre reinos, podemos
antever sua antiguidade, que remonta tempos imemoriais. É um jogo de tabuleiro
que envolve tática e estratégia, tornando-se verdadeiras tempestades mentais
que podem durar dias. Os torneios internacionais consagraram enxadristas
famosos, como Bob Fischer, Anatoly Karpov e Garry Kasparov, além dos
brasileiros Jaime Sunye e Mequinho. Um dos maiores desafios do mundo da
inteligência artificial era conseguir com que um computador conseguisse vencer
um desses grandes mestres internacionais, o que somente foi acontecer em 1997,
quando o computador Deep Blue venceu Kasparov, inaugurando a era em que a
superação da mente humana pela inteligência artificial começou a se tornar
palpável.
Nada disso tem significado algum para um pombo, nem a
alegoria da guerra, nem o desenho tático, nem o aspecto histórico, nem a origem
do jogo, nem a conquista da inteligência artificial, nada. Para ele, é um
amontoado de peças em um tabuleiro que não compreende. A única coisa que ele
depreende é que o conjunto não lhe serve para nada. Defecar em cima do tabuleiro
é-lhe um ato natural, como faz sobre nossas cabeças quando encostamos
inadvertidamente em um ponto de ônibus, sem perceber sua presença no fio
elétrico correndo sobre nós. Não servindo de alimento ou pouso, afasta-se com
estrépito para ir ao encontro de seus semelhantes, o que é, para ele, mais
seguro e reconfortante do que ficar diante daquilo que não entende.
Esse formato de jogada para a torcida parece tola, mas é de
uma eficiência surpreendente. Mas um pouco de raciocínio permite entender o porquê
disso acontecer. Embora nós, seres humanos, sejamos muitos em aspectos e
formações, o fato é que somos pouco originais. Seja pelo conforto de pegar
coisas prontas, seja pela característica gregária da espécie, temos uma
predisposição a nos acomodar a posições preexistentes e a ter conformidade com
um grupo que nos identifiquemos (tratei do tema aqui).
Essa identificação é multifatorial, geralmente associada ao ambiente onde se
vive, e influencia diretamente nosso modo de pensar. Quando somos confrontados
com uma posição antagônica, é tendência que procuremos a posição geral do
grupo, e quanto mais forte for a sua reação, maior será a maneira com a qual
nós mesmos reagiremos ao fenômeno. São raros os momentos em que prevalecerá uma
posição pessoal. Se alguém o grupo está em discussão, é como se todo o grupo
lhe passasse uma procuração para falar em seu nome, e a atitude desse representante
é um sinalizador de bom sucesso, o que faz com que todo o grupo se impulsione
em seu favor, independentemente da validade de seus argumentos.
Isso quer dizer que de nada vale o debate? Quase isso. Mas
as palavras são sementes no vento. Metaforicamente, quando eu era pequeno,
minha mãe insistia em me dar remédio quando eu tinha ânsia de vômito. "Eu
vou botar prá fora, não adianta tomar isso", falava eu, já em desespero.
"Um pouquinho sempre fica", dizia a genitora, na esperança de que as
poucas gotas restantes fossem suficientes para dar uma amainada nos engulhos. A
coisa é mais ou menos assim. Pode ser que, a custo, algum dos bons argumentos
chegue a ouvidos um pouco menos moucos, e se instale em sua memória, de modo a
fazer, em algum momento, brotar a linda flor da dúvida, a grande geratriz do
questionamento. Ele nunca é ruim, porque qualquer argumento pode ser confirmado
e sair mais forte do que era, por isso não há motivos para medos. Haverá
pessoas que passarão a vida inteira atoladas em uma mesma dimensão da realidade,
mas também haverá aquelas que estão somente esperando essa sementinha racional,
uma proposição que lhe dê respostas melhores das que já tem, e é assim que
funciona a transformação das cabeças.
Por fim, existe falsa proclamação de vitória não falaciosa?
Bem, se é falsa, é falaciosa. Mas se o argumento bem defendido é acompanhado
por boa concatenação lógica, as manifestações de agrado da camarilha não tornam
o argumento falso. Só deixam o debate pobre e afastam quem gosta mais da lógica
do que do espetáculo. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
É uma recomendação para ser seguida com cuidado. Com a
proliferação dos debates de internet, surgiram alguns manuais que pretensamente
ensinam a vencê-los, ainda que de modo pouco honesto, mais apelando a truques
do que a técnicas reais de construção de argumentos. Nada melhor, neste caso,
do que ter um nome consagrado para dar base a algumas barbaridades. Portanto,
indico esta obra menor e inacabada de Schopenhauer mais como curiosidade, que
hoje em dia é citada por um monte de gente como se fosse uma bíblia das
discussões.
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Ter Razão. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
* É óbvio que existem teólogos sérios, que possuem um espírito de autêntico estudioso, e que ficam felizes quando surgem descobertas dessa natureza.
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