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segunda-feira, 15 de maio de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 69º tomo: a falsa proclamação de vitória (complexo do pombo enxadrista)

(Falácias não se fazem somente com palavras)

Olá!

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Eu juro para vocês que não tive estômago para acompanhar de perto as últimas eleições. Havia uma combinação de descrédito com a classe política, de cansaço com o turbilhão social dos últimos quatro anos e com a séria ameaça de que tudo iria se repetir. Sendo assim, fixei meus candidatos e desliguei o botãozinho, o que significa nem sonhar em acompanhar a propaganda eleitoral e desprezar de pleno efeito os debates televisivos, a grande vedete de todo o processo. Só não tive como evitar a apuração, tensa ao cubo, principalmente no segundo turno. O prédio em que habito normalmente é de calma redobrada nos domingos à noite, mas o desassossego estava vibrando em cada um dos velhos tijolos, para um lado ou para o outro.

Os debates que citei mudaram muito nos últimos tempos. Por conta dos quebra-paus das décadas de 80/90, foram estabelecidas tantas regras que dificilmente não se resulta em um negócio insosso, só marcado pela inverossimilhança das propostas (quando existem). Caras como Maluf, Brizola e Quércia podiam não ser melhores como portadores da verdade, mas ao menos garantiam a noite no quesito diversão. São bastantes os acontecimentos desses tempos que viraram memes até os dias de hoje. Só que no fundo, o resultado é o mesmo: todos eles, indefectivelmente, saíam dos debates com a cara amassada de quem vai ao corner do ringue, mas cantando vitória como se fossem galos de briga. Fiquei velho e cansei desse tipo de coisa.

Como bem sabemos, o intuito sempre é um só: sair vencedor de um debate. Esse conceito, entretanto, é muito maleável. O que é a vitória em si? É um compilado de argumentos devidamente sequenciados e com itens objetivos avaliados? Ou é aquilo que faz a audiência gritar mais? Ao menos para o voto, parece claro ser a segunda. E para muitos dos debates de YouTube também.

É dessa forma que agem aqueles que compreenderam que a guerra de argumentos também se vence sem eles. É fato que nem sempre e nem todos têm a correta compreensão do que se discute, então busca-se por certos sinais de que alguém está em posição favorável ou não. Se alguém gagueja, por exemplo, pode estar se demonstrando inseguro, e se isso acontece temos uma amostra de se estar acuado. Por isso a fala firme e as demonstrações de se estar por cima da carne seca enganam muito. Não importa o que se diz, mas a sensação de superioridade que se passa. E isso passa mais pela agudeza do emocional do que pela correção da lógica aplicada.

Quando falamos em falácias, normalmente estamos nos dirigindo a construções lógicas (ou nem tanto) que desvirtuam o objetivo de um argumento. São inúmeras as formas de fazer isso, como temos visto neste pequeno guia. Há os apelos, que buscam enfatizar o aspecto emocional em detrimento da lógica, há os erros categoriais, para misturar as bolas sobre o que estamos falando, os erros formais, que torcem a propositura dos silogismos e muitos outros. Mas não é só daquilo que está manifesto na linguagem que vivem as falhas argumentativas. Elas também residem em atitudes e gestuais, que tentam causar a mesma dispersão produzida pelas palavras. É nisso que consiste a falácia da falsa proclamação de vitória, um tanto semelhante ao argumentum ad lapidem, porque procura dar uma terminação ao debate, mas, ao invés de utilizar da peremptoriedade verbal, vai na mão da persuasão pela forma, e não pelo conteúdo.

Uma forma de se entender a falsa proclamação de vitória são as chamadas mitadas, termo do qual peguei um ranço desmedido, por motivos óbvios. Uma mitada (ou uma lacração, se vindo da esquerda) é uma frase de efeito que, supostamente, humilha um adversário e define o debate. Geralmente são frases feitas, algumas vezes desencaixadas do conceito que se discute, mas, exatamente por se apresentarem prontas, são de fácil absorção pela patuleia, que já concorda de pronto com aquela “verdade”. Não preciso trazer exemplos, eles existem aos borbotões.

Assim como acontece com outras falácias, a falsa proclamação de vitória também tem um apelido, e eu vou contar sua história. Tudo começa na enjoativa disputa entre evolucionistas e criacionistas (vide aqui). Como bem sabemos, a evolução é uma teoria científica, embora seu nome mais correto seria modificação da descendência por seleção natural, muito longo para aplicação comum. Sendo uma teoria, ela mesma, assim como os fenômenos que descreve, evolui. Isso é próprio e típico das ciências, que, lembremos, não pretendem SER a verdade, mas APROXIMAR-SE da verdade. O mesmo não se pode dizer do criacionismo, que é estanque. Afinal de contas, como se baseia nos livros sagrados, não pode flutuar ao sabor de novas descobertas. Fragmentos de pergaminhos que são localizados em sítios arqueológicos causam alvoroço nos meios históricos positivamente, justamente o contrário do que ocorre nos meios religiosos, que colocam uma pilha de parênteses em descobertas contraditórias com suas crenças*. Com isso, todo o seu fundamento é imutável. No que isso resulta? Eternas respostas iguais, sempre iguais. A constante evolução da Evolução vem sempre trazendo respostas cada vez melhores e mais fortemente embasadas, enquanto o ponto de vista criacionista se baseia em releituras de mais do mesmo. É a velha confusão que ocorre quando se acha que a teoria vem na frente da prática. Não, não é nada disso. A teoria nada mais é do que a prática observada, das leis e repetições que são possíveis de extrair através da atividade empírica (leia com mais detalhes aqui). Quando isso acontece, o que temos é uma realidade dada, e não uma teoria, e isso acontece com as religiões, não com a ciência. É o que acontece com o criacionismo, e não com o evolucionismo. Portanto, quando confrontado com uma realidade incômoda, tudo o que resta é se recolher ao próprio nicho e, eventualmente, cantar vitória.

É no contexto dessa eterna briga que a falácia da falsa proclamação de vitória virou o complexo do pombo enxadrista. Isso brota através de um comentário ao livro Evolution vs Creacionism: an Introduction, de Eugenie C. Scott, no site de compras Amazon, que, acreditem, está lá disponível até hoje (vejam este link).


Eugenie é uma antropóloga estadunidense que trabalhou intensamente durante a controversa ideia de se ensinar criacionismo em aulas de ciências. Para trazer uma espécie de manual sobre o confronto e tornar mais claros certos pontos que traziam confusão no debate, resolveu escrever o livro acima. O comentador em questão, S. D. Weitzenhoffer, ao resenhar sobre a obra, diz o seguinte, em uma tradução livre:

"Discutir com criacionistas sobre evolução é como tentar jogar xadrez com um pombo. Ele derruba as peças, caga no tabuleiro e voa de volta aos outros pombos para cantar vitória".

A alegoria é simples de entender. O jogo de xadrez é bastante complexo, começando pelo fato de ser uma encenação de combate. Lá, um rei deve ser protegido pelo seu séquito, que, cada um tendo funções específicas, tem movimentos diferentes. Os peões são a linha de frente, de pouco poderio, mas em grande quantidade. Formam uma barreira e são os primeiros a dar proteção e a morrer. Na linha atrás, o rei é protegido pelos flancos pelas torres, bispos e cavalos, além da peça mais poderosa de todas, a rainha. Ao contrário de um jogo de damas, que acaba quando um dos oponentes "come" todas as peças do adversário, no xadrez basta que se capture o rei, e pode até terminar em empate. O jogo é, portanto, uma pequena reprodução de um painel político. Como se trata de uma disputa entre reinos, podemos antever sua antiguidade, que remonta tempos imemoriais. É um jogo de tabuleiro que envolve tática e estratégia, tornando-se verdadeiras tempestades mentais que podem durar dias. Os torneios internacionais consagraram enxadristas famosos, como Bob Fischer, Anatoly Karpov e Garry Kasparov, além dos brasileiros Jaime Sunye e Mequinho. Um dos maiores desafios do mundo da inteligência artificial era conseguir com que um computador conseguisse vencer um desses grandes mestres internacionais, o que somente foi acontecer em 1997, quando o computador Deep Blue venceu Kasparov, inaugurando a era em que a superação da mente humana pela inteligência artificial começou a se tornar palpável.

Nada disso tem significado algum para um pombo, nem a alegoria da guerra, nem o desenho tático, nem o aspecto histórico, nem a origem do jogo, nem a conquista da inteligência artificial, nada. Para ele, é um amontoado de peças em um tabuleiro que não compreende. A única coisa que ele depreende é que o conjunto não lhe serve para nada. Defecar em cima do tabuleiro é-lhe um ato natural, como faz sobre nossas cabeças quando encostamos inadvertidamente em um ponto de ônibus, sem perceber sua presença no fio elétrico correndo sobre nós. Não servindo de alimento ou pouso, afasta-se com estrépito para ir ao encontro de seus semelhantes, o que é, para ele, mais seguro e reconfortante do que ficar diante daquilo que não entende.

Esse formato de jogada para a torcida parece tola, mas é de uma eficiência surpreendente. Mas um pouco de raciocínio permite entender o porquê disso acontecer. Embora nós, seres humanos, sejamos muitos em aspectos e formações, o fato é que somos pouco originais. Seja pelo conforto de pegar coisas prontas, seja pela característica gregária da espécie, temos uma predisposição a nos acomodar a posições preexistentes e a ter conformidade com um grupo que nos identifiquemos (tratei do tema aqui). Essa identificação é multifatorial, geralmente associada ao ambiente onde se vive, e influencia diretamente nosso modo de pensar. Quando somos confrontados com uma posição antagônica, é tendência que procuremos a posição geral do grupo, e quanto mais forte for a sua reação, maior será a maneira com a qual nós mesmos reagiremos ao fenômeno. São raros os momentos em que prevalecerá uma posição pessoal. Se alguém o grupo está em discussão, é como se todo o grupo lhe passasse uma procuração para falar em seu nome, e a atitude desse representante é um sinalizador de bom sucesso, o que faz com que todo o grupo se impulsione em seu favor, independentemente da validade de seus argumentos.

Isso quer dizer que de nada vale o debate? Quase isso. Mas as palavras são sementes no vento. Metaforicamente, quando eu era pequeno, minha mãe insistia em me dar remédio quando eu tinha ânsia de vômito. "Eu vou botar prá fora, não adianta tomar isso", falava eu, já em desespero. "Um pouquinho sempre fica", dizia a genitora, na esperança de que as poucas gotas restantes fossem suficientes para dar uma amainada nos engulhos. A coisa é mais ou menos assim. Pode ser que, a custo, algum dos bons argumentos chegue a ouvidos um pouco menos moucos, e se instale em sua memória, de modo a fazer, em algum momento, brotar a linda flor da dúvida, a grande geratriz do questionamento. Ele nunca é ruim, porque qualquer argumento pode ser confirmado e sair mais forte do que era, por isso não há motivos para medos. Haverá pessoas que passarão a vida inteira atoladas em uma mesma dimensão da realidade, mas também haverá aquelas que estão somente esperando essa sementinha racional, uma proposição que lhe dê respostas melhores das que já tem, e é assim que funciona a transformação das cabeças.

Por fim, existe falsa proclamação de vitória não falaciosa? Bem, se é falsa, é falaciosa. Mas se o argumento bem defendido é acompanhado por boa concatenação lógica, as manifestações de agrado da camarilha não tornam o argumento falso. Só deixam o debate pobre e afastam quem gosta mais da lógica do que do espetáculo. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É uma recomendação para ser seguida com cuidado. Com a proliferação dos debates de internet, surgiram alguns manuais que pretensamente ensinam a vencê-los, ainda que de modo pouco honesto, mais apelando a truques do que a técnicas reais de construção de argumentos. Nada melhor, neste caso, do que ter um nome consagrado para dar base a algumas barbaridades. Portanto, indico esta obra menor e inacabada de Schopenhauer mais como curiosidade, que hoje em dia é citada por um monte de gente como se fosse uma bíblia das discussões.

SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Ter Razão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

* É óbvio que existem teólogos sérios, que possuem um espírito de autêntico estudioso, e que ficam felizes quando surgem descobertas dessa natureza.

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