(A Ciência anda na base dos tropeções ou zune como um novo sedan? Se temos uma Revolução Científica, não me parece que as coisas tenham sido assim tranquilas)
Olá!
Dizem que ninguém vai a Roma se não pediu benção ao papa.
Bom, primeiro que o Vaticano é um estado autônomo, mesmo que se constitua de um
grande quarteirão encravado na capital italiana. Mas o sentido da frase é
outra, e pode ser transposta para Curitiba da seguinte forma – ninguém veio a
Curitiba se não foi ao Jardim Botânico. E é fato, é um lugar muito bonito e bem
cuidado, embora outros locais também possam ser enquadrados como cartão postal
da cidade.
Como venho contando nos últimos textos (este e este),
vim ver meu piá mais velho, que se mudou para estas plagas ainda no começo do
ano, mas somente agora, com o ciclo vacinal completo, senti-me encorajado a dar
uma conhecida na cidade. Fiz pouco, é verdade e esperei o último momento para
dar uma corridinha aqui, porque Curitiba faz as vezes de Seattle meridional, e
chove por dias. Mas houve uma trégua e fomos lá. E eu estou aqui, para dar
impressões e filosofar.
Quem vem pela entrada principal se depara com uma bela associação de estética com ciência, porque a visão mais marcante é da estufa ao fundo, enquanto se caminha pelos jardins geométricos do caminho.
Essa mesma fonte provê de água o chafariz que fica a meio
caminho entre o portal e a estufa, onde reina uma estátua que é conhecida como Amor
Materno.
O jardim tem trinta anos de existência, mas possui algumas
instalações mais novas, como é o caso da Galeria das Quatro Estações, uma
notória simbiose de homenagens, juntando o propósito sazonal de certas coleções
com a célebre sinfonia de Vivaldi, que fica sendo executada em tempo integral
lá dentro.
Uma boa sacada foi colocar as Horas (deusas gregas que
regiam as estações do ano) e as amostras exatamente na mesma ordem da sinfonia,
embora, para variar, tenhamos percorrido o caminho na ordem inversa. Na ordem,
temos outono (Ftinoporão), inverno (Quimão), primavera (Eiar) e verão (Teros).
Obviamente que uma flora bem cuidada atrai a fauna local
para interação.
Por falar nisso, o Jardim das Sensações pretende ser
exatamente um ponto onde as pessoas podem tocar e cheirar as espécies sem
causar prejuízo à praça...
… inclusive das abelhas contidas nos diversos meliponários
espalhados no jardim.
Continuo achando imprescindível que se faça isso, porque,
como eu disse, o Jardim Botânico não é meramente um parque, onde levamos as
crianças para ver flores e passarinhos. É um espaço da ciência, que aqui
demonstra como experimentação e estética podem ser colocados em perfeita
harmonia, sem nenhuma espécie de repelência entre si, como muita gente pensa.
Às vezes vivemos os momentos históricos mais importantes da
humanidade e nem nos damos conta disso. Ainda ontem nem púnhamos na conta a
hipótese de ficar enclausurados por quase dois anos em casa e em máscaras, com
milhares e milhares de mortos. Como será que olharemos para este episódio daqui
a cem, duzentos, mil anos?
O fato é que não somente muitas vidas foram interrompidas,
mas o curso da história de muita gente também se guinou abruptamente. Hoje,
passando pela rua São Bento, vejo inúmeras portas fechadas, de lojas e bares
tradicionais, inclusive a centenária Casa Califórnia, portinha que servia
lanches de linguiça bragantina, e onde eu gostava de fazer crescer minhas discrasias
sanguíneas. Como estará cada uma das pessoas que trabalhavam em cada uma dessas
lojinhas? A São Bento voltará a ser populada ou essa será a marca do fim de sua
tradição?
Embora tudo isso nos diga a corações e mentes, porque
vivenciamos e sofremos com a situação, facilmente podemos deduzir que a História
se escreve aos tropeções, e isso diz respeito não só a pessoas, mas ao modo
como as coisas se dão. Essas guinadas repentinas são costumeiramente chamadas
de revolução, que, em sua raiz etimológica, quer dizer aquilo que gira, que dá
voltas, que é remexido. Acontece assim com a Ciência também.
A Revolução Científica foi uma virada de chave nos princípios
gerais do conhecimento, que ocorreu no momento em que o enclausuramento da Idade
Média foi dando lugar à abertura para o mundo vinda com a Idade Moderna. Em
rápido périplo histórico, podemos dizer que a Europa vivia espalhada em feudos
cujos principais senhores eram os reis, e o conhecimento ficava guardado nos conventos,
convenientemente disponibilizado na medida em que se adequasse à fé.
Entretanto, a tomada de Constantinopla pelos turcos obrigou os europeus a se
lançar ao mar, e as novidades, sejam concretas, sejam ideológicas, vinham aos
borbotões. Tudo bem grosso modo.
Essa onda de novidades e de necessidade de desenvolvimento
de técnicas fez com que as ideias científicas saíssem do marasmo. Entretanto, a
Revolução Científica não foi um evento declarado, e, como costuma acontecer, os
"revolucionários" não sabiam que estavam participando de um movimento
histórico, que só foi ganhar esse nome bem mais tarde, quando já havia
distanciamento suficiente para bem delineá-lo. Guilherme
de Ockham, Roberto Grosseteste e Roger
Bacon, por exemplo, eram clérigos que buscavam a construção de métodos sem
desprezar os ensinamentos de sua religião. E os principais pioneiros da virada
tiveram sempre algum tipo de problema com os sacerdotes estabelecidos: Giordano
Bruno foi martirizado, Nicolau
Copérnico publicou suas obras no anonimato e Galileu Galilei precisou
voltar atrás com suas teses, para não ter o mesmo destino do pobre Bruno. Ou
seja, os dois modelos de pensamento se imbricavam de alguma forma, o que dá uma
ideia de continuidade.
Foi somente no século XX que surgiu o termo Revolução Científica
na academia, pelas mãos do historiador e filósofo da ciência franco-russo
Alexandre Koyré. Ele foi um estudioso da história medieval que se interessou
pela história das Ciências justamente quando percebeu o processo contínuo de
rupturas epistemológicas que se deu naquele momento de transição.
Esse novo olhar proposto por Koyré, que veremos mais
adiante, vem se contrapor com a filosofia de fundo em vigor até então, baseada
fortemente no Positivismo.
Apenas para fazer uma rápida remissão, essa corrente de pensamento tinha um
cunho otimista, na medida em que acreditava que a Ciência possuía um sentido
estrito, apontando para o futuro como uma longa cadeia de progressos. Mais ainda,
os positivistas sobrevalorizavam a Ciência como um método para tudo, de forma a
reputar como válido apenas os conhecimentos que se encaixassem na metodologia
científica.
De um modo geral, essa maneira de ver as ciências não era
propriamente ruim, já que, embora as descobertas de base fossem neutras em si
mesmas, a sua aplicação e transformação em tecnologias eram, sim, ferramentas
do progresso. Ocorre que o otimismo reinante no Positivismo não conseguiu resistir
à aplicação dos novos conhecimentos em máquinas de guerra, que alcançaram um poder
destrutivo jamais sonhado. Ainda mais: a transformação de conhecimentos sociais
e humanos em Ciências não foi capaz de prover previsibilidade aos teatros de
eventos onde as nações passaram a se digladiar. Com isso, a confiança na escola
positivista foi caindo por terra, e era natural que novas propostas de
descrição da história das ciências começassem a pipocar pela academia.
A primeira coisa que foi pensada foi a seguinte: quando
começou isso tudo? As mudanças de pensamento de fundo que encaramos a partir do
evento da Primeira Grande Guerra também foi sentida em outros momentos? Esse
tipo de pergunta conduziu filósofos e historiadores para o século XVII, no momento
em que transitávamos do teocentrismo medieval para o humanismo moderno.
Uma das alternativas vinha da academia francesa, onde uma
visão de continuidade histórica, liderada por Pierre Duhem, entendia serem as
mudanças na concepção científica o fruto de longos períodos e de fenômenos em
camadas sobrepostas, que faziam as transições serem mais ou menos suaves.
Koyré toma outra linha, muito influenciado por seus estudos
anteriores. Ele havia se debruçado sobre a história do pensamento religioso
medieval e havia percebido que não existem dissociações entre filosofia,
religião e ciência, formando uma espécie de unidade onde uma vertente
influencia na outra. Isso significa que mudanças em cada uma dessas linhas vai
influenciar nas demais, porque o pensamento é um grande sistema.
Como sabemos, a Idade Média era caracterizada pelo
pensamento teocêntrico, que se baseava em grande parte no ideário aristotélico,
com as reformas e adaptações realizadas pelo tomismo,
muito em voga na filosofia cristã. A partir do momento em que a visão
metafísica vai se deslocando de foco, vai junto também as demais maneiras de
pensar o mundo. Copérnico é um bom exemplo disso.
O astrônomo polonês, com a mudança de ares filosóficos,
retira a Terra do centro do universo e vai colocar o Sol em seu lugar. Para
além das observações empíricas, há um pano de fundo metafísico na atitude.
Copérnico surfava no resgate das tradições clássicas, que cotejavam o Sol como
uma espécie de divindade, e é exatamente o que o heliocentrismo faz. Eis que, portanto,
a solução dos problemas aristotélicos-ptolomaicos é dada com um substrato religioso:
o deslocamento do Sol para o centro não é só fruto da observação, como diria a
Ciência, mas uma nova promoção de ordem metafísica. Por isso o pensamento é
todo ele encadeado entre si.
Quando Koyré olha para o século XVII, o que ele vê não é uma
escalada cheia de degradés no pensamento, mas uma coleção de rupturas. Copérnico
tira a Terra do centro do universo, Lavoisier
elimina o flogisto* e descobre que não se cria nem se perde energia, Newton
descarta a imobilidade do universo e Darwin
remove a imutabilidade das espécies. A Ciência não evolui de modo suave, mas em
quebras de estrutura, o que se estende à própria maneira de pensá-la. Portanto,
não são os avanços técnicos que caracterizam a Revolução Científica, mas uma
mudança de paradigmas que começa no campo das ideias. Há mais revolução na
ideia de produzir uma bomba atômica do que em sua efetiva produção.
As ideias de Koyré influenciaram bastante gente, principalmente
o teórico estadunidense Thomas Kuhn, que passou a desenvolver uma teoria de
crise na história das Ciências baseada na troca de paradigmas, ou seja, uma
teoria preponderante começa a perder força na medida em que lhe são
confrontadas teorias opostas, até que seu próprio paradigma implode, para dar
lugar à nova maneira de se pensar, e é desta forma que a Ciência evolui. Tratei
desta questão neste
texto.
Nossa... Fiquei meio longe do Jardim Botânico, mas isso não
é um problema. Vejam que na botânica também tivemos importantes quebras de
paradigma, como aquela que deu origem ao conhecimento sobre genética, nascida
de Mendel.
Então por aqui também podemos observar e nos surpreender com os rumos que a
Ciência tomou desde sua Revolução, inclusive em um lugar que é uma celebração
não somente da Ciência, mas da Filosofia como um todo. Mas os rostos mascarados
de fora a fora neste jardim me faz pensar se por trás dos fatos históricos
atuais também não teremos uma nova maneira de ver a Ciência. Será que desde
agora ela passará a fazer parte mais próxima de nossas vidas? Será que o modelo
de verdade que ela defende será considerado ultrapassado? Será que um “bichinho”
invisível será o divisor de águas em que o senso comum tomará as rédeas? Credo!
Bons ventos a todos!
Recomendações:
Apesar de muito circunscrito aos meios acadêmicos, os
estudos de Koyré podem ser lidos com boa dose de compreensão. Segue uma fonte:
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento
Científico. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
E o Jardim Botânico de Curitiba merece a fama que tem. Não
deixem de passar nele quando forem a Curitiba.
Jardim Botânico de Curitiba
Rua Engenheiro Ostoja Roguski, sem nº
Jardim Botânico
Curitiba/PR
A aproximadamente 420km do centro de São Paulo
* Flogisto seria um elemento que proporcionaria a possibilidade de um material qualquer, e quanto maior a quantidade desse hipotético elemento, maior a capacidade de queima. Dessa forma, uma madeira seria muito mais rica em flogisto do que um granito, para citar um exemplo.
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