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sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Navegações de cabotagem – o Museu de História Natural de Atibaia e os humanos como síntese da História

Olá!


(Enquanto escrevo este texto, tenho nos ouvidos o álbum “Of Natural History”, da banda vanguardista Sleepytime Gorilla Museum. Pura maluquice sonora, misturando muita teatralidade com construções musicais insólitas. Seus componentes são multi-instrumentistas que tocam qualquer tipo de coisa – desde instrumentos muito antigos até objetos encontrados em casa, à moda de Hermeto Paschoal. Não é para qualquer um, mas vale a pena conhecer. Dados de recomendação lá embaixo).

Pouco antes da eclosão desta inaudita pandemia que já nos grassa e desgraça há cerca de seis meses, ou melhor, quando ainda tínhamos a expectativa de que 2020 seria um ano como outro qualquer, dei um pulinho aqui e outro ali para ajudar a filha caçula na sua missão de prestar concursos públicos. A indigitada descendente estuda na área de humanas e, como bem sabemos sem nenhum demérito, o destino-base desta formação é atuar na Educação. Sendo assim, às vezes é melhor procurar alguma coisa pelo interior próximo, enquanto não se consegue nada de muito proveitoso em Pauliceia Desvairada.

Vou reabrir a série das Navegações de Cabotagem e, como eu já disse, os quatro textos que se seguirão descrevem fatos que ocorreram todos antes da segunda quinzena de março. Por esta razão, não serão vistas luvas, máscaras ou escudos faciais nas pessoas, assim como não havia de se falar em imprudência ou negligência. Os quatro quilos que eu ganhei desde então são prova de meu bom comportamento epidêmico, embora não o seja no plano estético e lipídico.

Neste episódio, vou para a cidade de Atibaia. Ela não fica longe de SP/SP, algo como 70 km, o que dá para cobrir em cerca de uma hora, e fica na mesma região bragantina que relatei em minha série Para lá da serra que eu vejo na janela, de quem recomendo a leitura. Precisei levantar bem cedo, porque a prova da garota era às 08:00, mas o domingão estava um bocado agradável, naquele meio termo entre céu claro e brisa fresca, e fui procurar o que fazer ao ar livre. Atibaia por si só já é uma cidade linda, mas fiquei sabendo da existência de um parque com coisas legais, então me mandei para lá.


O nome do tal parque é Edmundo Zanoni. Este cidadão foi prefeito da cidade na década de 60 do século passado.  Há tempos atrás, aqui ficava localizado um clube de campo que pertencia à municipalidade, mas que, com fins de democratizar o seu acesso, foi aberto para o público em geral. Tem um relevo em declive, acompanhando o desenho do morro que lhe guarnece. Em seus vários canteiros, há uma bela profusão de flores.


O projeto de paisagística é bastante delicado, em uma área relativamente ampla (cerca de 40 mil m²), e para os moradores dos meios urbanos tem novidades pouco conhecidas, que possuem um fundo estético que explica bem a diferença entre arte e natureza: a beleza está nas duas, mas não são a mesma coisa.


A cidade de Atibaia historicamente faz parte do circuito que foi colonizado por populações nipônicas, como acontece no contexto do Cinturão Verde da metrópole da garoa. Por conta disso, é razoavelmente comum encontrar referências a essa cultura, incluindo um Jardim Japonês no parque, com sua inconfundível carpa, uma espécie de peixe-símbolo da longevidade e fertilidade.


Uma tradição daqui, trazida justamente pelos orientais, é a festa de morangos e flores, realizada todo ano na entrada da primavera. Vi que desta vez não vai ter. Paciência. Com o dia em franca ascensão da temperatura, fui com a patroa matar saudades dos pedalinhos no lago do parque.


Há uma torre de pedra fazendo as vezes de farol na ilhota acessível  por ponte. Fiquei sabendo que toda a área fica enfeitada de cima a baixo por ocasião da festa citada. Nas fotos que vi, fica lindo de verdade.


Para além das sutilezas do sol nascente, há também uma casa de artesanatos, estes expostos de forma permanente, para a apreciação de quem curte um chaveiro. Os carros-chefes são os vasos pintados à mão e os artigos que remetem à própria cidade: morangos, corujas e a Pedra Grande, monumento natural localizado na parte rural.


O parque ainda é sede do Instituto Pró-Carnívoros, uma daquelas entidades que martela em cima de ferro frio para defender uma causa que tem pouca visibilidade. É uma ONG cujo objetivo é a proposta de estratégias para a manutenção da vida dos carnívoros nativos a longo prazo.


Mas vamos ao tema que pretendo abordar com mais detalhe. No miolo do parque, existe um Museu de História Natural cujo nome homenageia o professor Antonio Pérgola, dito Toninho, cuja grande especialidade era a taxidermia, um conjunto de técnicas destinado a preservar, o mais proximamente possível, a forma dos animais quando ainda eram vivos.


Estruturalmente, o espaço é composto por painéis, gaveteiros e dioramas, uma espécie de armário envidraçado em que as peças podem ser dispostas de maneira a reproduzir um certo ambiente. No nosso caso, o ambiente a ser retratado é o habitat das espécies que compõem a região, de modo que os bichos não sejam simplesmente expostos, mas que formem um contexto compreensível.


É preciso elucidar o que é um museu de história natural. Da mesma forma que acontece com as universidades (como já escrevi aqui e aqui), há muita confusão com relação ao seu propósito. A um primeiro olhar, imagina-se que seja um lugar onde as crianças podem ver um monte de bichinhos empalhados, e nada mais que isso. Idem ocorre com os jardins botânicos, que pensamos parecer um imenso jardim, cheio de plantinhas. Não, o que temos nesses espaços são coleções, que possuem um sentido científico que vai além do mero entretenimento.


Claro que não há nada de mau em simplesmente se distrair. E também é claro que a quantidade de recursos disponíveis vai influenciar muito até onde os administradores podem chegar. Museus como os de Viena ou de Nova York têm coleções imensas e caríssimas, que são expandidas através de um círculo de empréstimos entre essas instituições de grande porte. Mas, mesmo em lugares menores, o propósito é basicamente o mesmo: confluir história e natureza para que seja possível compreender como a vida se desenrola no planetinha azul. Por isso, os acervos dos museus de história natural se deslocam em dois eixos: um vertical e diacrônico, em que se procura entender como surgiram as diferentes espécies, e que são sintetizados por ossadas milenares e fósseis...


... e num eixo horizontal e sincrônico, que busca evidenciar como as espécies de determinados locais estão espalhadas pelo espaço geográfico, desde sua origem mais remota, como é o processo de fecundação representados pelos ovos...


... passando pelos primeiros desenvolvimentos do novo ser, que, em condições normais, são pouco visíveis para nós, como pode ser observado através dos embriões e fetos...


 ... passando pelos animais em suas formas adultas...


... até chegar aos seus despojos mortais, onde podemos aprender um pouco mais sobre sua morfologia óssea. Neste caso, a linha do tempo somente é percorrida pelo tempo de vida das espécies atuais, e não no longo tempo histórico das espécies pré-históricas.


Por conta da expectativa da formação de contextos, um museu destes não se limita apenas às espécies animais, mas faz considerações de ordem territorial, podendo lançar mão de amostras da vegetação e dos aspectos minerais também.


O resumo da ópera é: essa modalidade de instituição visa fundir história, biologia e geografia para que seu usuário tenha ferramentas para entender como funciona a interação entre seres e meio físico, que tanto pode ser o do próprio local...


... como de terras mais distantes...


... ou agrupamentos de animais com similaridades, para que se comparem elementos evolutivos...


... ou amostras de elementos isolados, geralmente excêntricas ou em risco de extinção, no que os museus prestam mais de um tipo de serviço.


Enfim, museus são espaços de estudo. E, neste caso específico, o plano temporal tem muito mais importância do que parece em um primeiro olhar. Às vezes não nos damos conta de como a História é tão presente em nossas vidas, e só quando nos deparamos com alguma coisa que nos obriga a nos situarmos no tempo é que passamos a reconhecer nosso lugar na História.
Entretanto, o que somos quando observados no tempo? Segundo Benedetto Croce, filósofo italiano que viveu na virada do século XIX para o XX, somos um processo em curso. Vamos entender melhor essa proposta, e se concordamos ou não com ela.

Croce imagina um conceito de historicismo absoluto, fortemente calcado no Idealismo hegeliano e em seu Geist, mas não vou abordá-lo aqui, para não o tornar aborrecido (leia um pouco melhor sobre isso neste texto). Isso equivale a dizer que qualquer juízo que se faça acerca de tudo, seja algo físico como uma pedra ou abstrato como a própria Filosofia, não pode ser colocado fora da História, e, de certa forma, equivaler-se a ela. Isso acontece porque, por mais que algo possa parecer fortemente preso em um determinado momento distante, absolutamente tudo está ligado pelos liames do tecido histórico, e o momento atual nada mais é do que uma fotografia de um processo em curso permanente. Dessa forma, toda História é História Contemporânea, porque nada é como é sem que tenha sido o que foi.

(Isso me lembrou duma situação que ocorreu quando eu ainda tentava ganhar o mundo com minhas bandas e minhas músicas. Trata-se de uma música chamada Filhos do Passado, que reescrevo agora com um pequeno realce.

Gira o mundo, grande mundo
Ordem e progresso ou poço sem fundo
Um grande fato da nossa história
Ou apenas mais uma escória

Sinas mil do meu Brasil
É tudo belo ou é tudo hostil
Maior derrota ou menor vitória
Longa tragédia ou fútil gloria

Se hoje somos o que somos
Foi porque fomos o que fomos
O bem e o mal foram consumados
Na vida dos filhos do passado

Acorda e vive, grande cidade
Diz a mentira ou a verdade
Seu presente é vil ou é sagrado
Não sabe o futuro ou não lembra o passado

Esse trechinho fazia parte do refrão. Era um rock no estilo hard setentista, apesar de estarmos extemporaneamente na década de 80. Não tínhamos grana, mas tínhamos uma caixa acústica com o alto-falante rasgado, e a usávamos quando queríamos – rá rá rá – simular um Marshall com as válvulas sobrecarregadas. É... Não tinha como dar certo. Mas o ponto é outro – a parte destacada parecia-me ingênua demais, mas era exatamente o que eu queria dizer e se desenvolvia bem harmonicamente. Relendo o presente filósofo, pergunto-me se eu não era croceano antes mesmo de conhecê-lo. Sim, eu sei que é só uma coincidência, mas notem como, de maneira quase infantil, eu consigo exemplificar a tese de nosso caro abruzês).

Segundo pensava Croce, por mais remotos que fossem os fatos passados, eles continuavam reverberando seus efeitos até os dias presentes. Ele utiliza o exemplo do bode expiatório para explicar isso. Se alguma pessoa, seja por princípio religioso, seja por comiseração humana, seja por mero arrependimento, aplica a si mesmo um rito de expiação, ela reproduzirá, ainda que inconscientemente, toda a estrutura estabelecida por um rito das tribos judaicas milenares e de outros povos primitivos, com práticas semelhantes. Dessa forma, todo esse amálgama de passado é tornado presente no momento em que alguém repete o ato, como já faziam os antepassados.

Dessa forma, toda pessoa carrega consigo uma espécie de coletânea de documentos de juízo histórico, que lhe foi imputada por irradiação dos conhecimentos da espécie humana, transmitidas e integradas através dos tempos, e que nos fazem efeito modificador de caráter quando nos defrontamos a um objeto do passado. Reconhecemos um bichinho exposto em um armário e deste confronto com a História contida em nós reagimos particularmente e damos carga novamente a esta mesma História. Um homem é o universo inteiro no sentido histórico. Somos, todos nós, um compêndio de História universal.

Sendo assim, quando estamos em um museu de história natural, não estamos apenas presenciando um pacote de elementos antigos, mas estamos diante de nós mesmos. Cada reação, que se desdobra em curiosidade em conhecer, ou em aflição pela fragilidade, ou em admiração pelo trabalho detalhado, ou até mesmo em indiferença, é uma pequena parte da nossa característica de sermos humanos, que nos foi transmitida através de nossa inserção na História. Não somos humanos sem nossa história. Não é legal isso?

Recomendações:

Começo pela obra de Croce voltada à Filosofia da História. Ele é muito mais amplo do que esse livro, e posso voltar a ele mais vezes, conforme for conveniente.

CROCE, Benedetto. A História como Pensamento e Ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

Vai também a recomendação de visita ao Parque Edmundo Zanoni e seu respectivo museu, ainda mais quando a chatíssima pandemia atual permitir. Este é seu endereço:

Parque Edmundo Zanoni
Avenida Horácio Netto, 1030
Vila Loanda
Atibaia/SP
Aproximadamente 70 Km a partir do centro de São Paulo

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