(Em uma fila tão paulistana, é plenamente possível ter tempo para se lançar reflexões: vacinar-se é primordialmente um ato ético?)
Olá!
No final de semana passado, fui oferecer meu braço para a
segunda dose da vacina. Em tese, daqui a duas semanas estarei devidamente
imunizado contra a malvada covid-19, muito embora a recomendação seja de manter
ainda muitos cuidados, como a manutenção do uso de máscara e distanciamento
social quando possível. Peguei uma boa fila, porque não há lá tanta
disponibilidade da marca que me cabia, e lá estava quando comecei a elaborar
mentalmente este texto, com algumas anotações feitas no próprio celular. Não
vou mentir para ninguém e afirmar que sou feliz em levar picadas, mas o fato é
que não dá nem para chamar de dor, apenas um leve incômodo. Deve ser uma
reminiscência infantil, quando as recorrentes injeções de Benzetacil povoavam
meus pesadelos e curavam minhas amigdalites. Apesar disso tudo, estava
satisfeito em estar naquela hora, naquele lugar e com aquele propósito.
Minhas reflexões na fila eram pautadas pelos comentários
desconfiados com relação à eficácia da vacina. Escuto muita gente falando que
só vai se vacinar para não ter problemas legais, e isso colide com os meus
tímpanos. Não tenham dúvidas que o medo da morte é individual e deveria embasar
a vontade de quem está lá se propondo a ser picado, mas a vacinação, na minha
humilde cabeçorra, é antes de tudo um ato social. Já andei falando sobre o tema
por
aqui.
Pois então. O ato social, pelo que dizem os filósofos, é
essencialmente ético. Desde os gregos antigos, o ethos está vinculado à areté,
a virtude. E o que é a virtude senão a propensão à prática do bem? Fico
pensando nessas coisas quase que absorto, porque a espera vai longe, e eu fiquei
lá, panguando, às vezes até mesmo deixando a fila avançar alguns metros a mais.
Até que cheguei mentalmente em Kant, dono do grande ponto de virada do
pensamento filosófico iluminista, e fiquei quase que assustado recolhendo seus
ensinamentos. Agora olhando para o chão, lembro da sua ética baseada no dever,
e trago a pauta a mim mesmo: tomar a vacina é um imperativo categórico? Vamos
desbravar.
Kant faz sua revolução copernicana com a crítica aos juízos, uma nova maneira de ver o funcionamento racional. Explicando bem superficialmente, ele observava duas vias pelas quais o conhecimento passava. Na primeira, uma cognição era obtida através da própria definição do objeto. Por exemplo: quando eu falo de uma bola, nós já sabemos que ela é redonda, sem a necessidade de que tenhamos um contato sensível com o objeto em questão. O próprio nome "bola" já traz consigo o predicado de sua esfericidade. O mesmo pode ser aplicado a inúmeros outros objetos: um triângulo já traz a ideia de figura com três lados, um gás carrega consigo as propriedades de variabilidade de forma e de volume. Todos esses conhecimentos acontecem antes do contato sensível com o objeto, e, por isso, são a priori (palavra latina que significa ”o que vem antes de”). São os famosos pressupostos que são o esqueleto do conhecimento, porque são aqueles que residem no intelecto.
A segunda via do conhecimento é aquela que exige contato com
o objeto, porque sua predicação não permite a cognição completa, demandando que
o mesmo seja visto, ouvido, tocado ou sentido de alguma forma. Se sabemos que
uma bola é esférica, não sabemos sua cor, o material do qual é feita, seu
tamanho e demais que-tais. Precisamos vê-la e tocá-la para obter tais
informações. Idem com o triângulo, que necessita ser observado para sabermos se
é escaleno e com o gás, que precisamos cheirar para saber se é perfumado. Todos
esses conhecimentos vêm depois da “carga mental” do objeto, a posteriori, e são eles que são
enriquecedores, porque trazem informações novas para tais objetos, já que os
conhecimentos a priori não carregam em si nenhuma novidade que vá além da
própria definição.
Quando falamos sobre todas essas características da razão,
vemos que elas têm cara, cheiro e gosto de Ciências, e é verdade mesmo. Só que
a racionalidade, no entender de Kant, não se aplica única e exclusivamente aos
laboratórios, mas também à ética. E por quê? Porque a razão pura salta do
intelectual para o mundo, formando uma razão prática, e a ética é uma
contingência das ações.
Kant vive em um tempo de transição entre as antigas
monarquias e os projetos iluministas, que viam a necessidade do uso da razão na
administração da coisa pública. Essa base racional, no entender de Kant, para
que pudesse ser aplicada com perfeição, não poderia ser utilizada somente na
casca superior das relações, representada pela política, mas na miudeza proporcionada
pelas predisposições morais. Em suma, também a ética deveria se servir dos
atributos da racionalidade: a universalidade e a necessidade.
O que significa isso? Toda Ciência deve estar circunscrita a
esses dois critérios. Universal é qualquer coisa que tenha o mesmo valor em
qualquer tempo e em qualquer lugar, e necessário é aquilo que possui um nexo
causal na cadeia de causas e consequências, sem o qual algo não pode acontecer.
A ética deve seguir estes mesmos critérios.
Entretanto, enquanto a natureza segue leis universais e
necessárias de maneira, digamos, automática, como acontece com os corpos que
caem obedecendo a lei da gravidade, com as relações humanas a coisa muda de
figura. Nossa razão nos permite distinguir o certo e o errado, de modo a seguir
uma lei como se fosse a norma natural. Mas é que nós temos uma tal de vontade e
um tal de livre-arbítrio, que põem tudo isso por água abaixo. Sendo assim,
a racionalidade pode e deve reconhecer a moralidade, ainda que não a aplique.
Isso implica em dizer que devem existir princípios morais
válidos para toda a humanidade. Com isso em mente, precisamos analisar com
bastante cuidado a formação do pensamento kantiano. Como eu já disse, todos nós
possuímos uma capacidade de conhecer, que Kant chama de razão pura, que, em
tese, seria como se nosso cérebro fosse capaz de guardar as teorias que regem
as coisas. Entretanto, essa razão também possui a propriedade de colocar em
prática essas teorias. Seria como pegar um projeto qualquer armazenado na mente
e colocá-lo em funcionamento. Uma das aplicações dessa razão prática é
determinar a vontade e as ações éticas, e elas se dão na forma de regras.
Pensando em termos de teorias científicas, vemos que estas
sempre são expressas em forma de proposições, aquelas velhas frases que podem
ou não ganhar valor de verdade. Por exemplo, da observação de que nenhum tipo
de massa se perde pela reação de duas ou mais substâncias em um sistema fechado
(lei de Lavoisier), podemos deduzir um enunciado: “Na natureza, a matéria não
se cria nem se destrói, apenas se transforma”. No âmbito científico, isso é
aquilo que podemos chamar de Lei (leia mais neste
texto).
Kant não fala em leis voltadas para a ética, justamente
porque o livre-arbítrio faz com que não sejamos como pianos
que caem e obedecem a lei da gravidade. Ele as substitui por princípios
práticos para que, da mesma forma que reduzimos os fenômenos naturais a
teorias, reduzamos qualquer tipo de ato em sentenças, o que, pensemos aqui,
facilitariam sua racionalização, e estes atos, assim transformados em
princípios, poderiam ser sentenciados e, então, fazer o papel semelhante ao que
uma lei natural teria. Estes princípios são divididos então em máximas e
imperativos. Os primeiros são amplamente subjetivos e individuais, que valem
somente no âmbito pessoal de quem os constrói.
Imagine, por exemplo, o que você faz nas arquibancadas da
vida. Você fica pulando e cantando junto com a torcida ou prefere se
compenetrar no jogo? "É preferível assistir atentamente a partida" é
sua atitude transformada em máxima. Note que esta frase diz respeito a uma
predileção sua, repleta de subjetividade, sem que se possa sentenciá-la como
válida para qualquer pessoa, já que não há nada de errado em transformar a
torcida em uma festa.
Ocorre que uma máxima pode, sim, ganhar em termos de
objetividade, saindo do campo meramente pessoal para ganhar contornos
universais e carga deontológica, ou seja, são obrigações morais devidas por
todos os seres humanos. Quando uma máxima leva esse status, passa a se chamar imperativo. Sendo mais objetivos, os
imperativos podem ser aplicados a qualquer circunstância. Isso porque, se a
ação moral fosse completamente gerida pela razão, necessariamente ela se
desenrolaria da forma como o imperativo determina. Afinal, a própria palavra
denota a ideia de dever, de obediência a uma ordem, não a um imperador, mas à
ética.
Há duas formas de imperativo segundo Kant: o hipotético e o
categórico. No primeiro, temos uma condição - se queremos um objetivo, devemos
agir de tal modo; no segundo, o encadeamento é incondicional, levando a uma
regra determinada.
Vou usar mais um daqueles meus famosos exemplos
futebolístico para explicar o que é o imperativo
hipotético. Imagine que você é um quarto-zagueiro que está protegendo a
cabeça de área de seu time. Você está pendurado com dois cartões amarelos e, se
tomar o terceiro, não jogará a próxima partida. Isso lhe trará algumas
desvantagens, como tirar sua visibilidade, marcá-lo como violento, desagradar
seu treinador e via discorrendo. Isso
fará com que sua cabeça seja preenchida por um pensamento condicional, do tipo:
"para que eu não seja suspenso, é preciso que eu não seja violento",
ou "se eu não quiser ser suspenso, não posso ser violento". O que
temos aqui é uma regra completa, que descreve como atingir um determinado
objetivo. Se eu não me importar com a bronca do técnico, nem em carregar a
pecha de açougueiro, não tenho porque mover minha vontade no sentido de não
tomar cartões.
Em resumo, a questão é a seguinte. O imperativo hipotético
leva em conta um desejo que move determinada pessoa e lhe dá o caminho
obrigatório pelo qual ela deverá seguir para chegar em sua meta, e por isso é
um imperativo: não existe médico sem faculdade, não existe padre sem seminário.
Agora, se você não quer ser médico nem padre, é um imperativo que não cabe a
você, simples assim. O imperativo hipotético dá regras objetivas e bem
definidas, mas não se aplica a qualquer pessoa indistintamente, apenas àquelas
que enfrentem a condição.
Já o imperativo
categórico é a grande pedra de toque da ética kantiana. Prossigamos no
campo futebolístico, não esquecendo de nossa posição na quarta-zaga. O lépido
atacante adversário aproveitou uma sobra e está vindo a mil na direção de sua área.
Qual seria a regra ética universal aplicável à situação? Se você disser que é
cercar o cidadão e tentar roubar-lhe a bola sem fazer falta, teremos um
imperativo categórico. Se disser que é cometer a falta, estará indo na direção
absolutamente oposta. E por que isso? Porque a regra ética aplicável é jogar e
deixar jogar. Se fincar as travas da chuteira na canela do pobre não fosse uma
ação antiética, não seria punida com a anotação de uma infração. Como não temos
nenhuma garantia de que a regra ética será cumprida, estipula-se a falta. A
ação racional continua sendo aquela que é certa, mas a vontade e o livre-arbítrio
permitem que se tome uma ação que a contradiga.
A regra dos imperativos é o substituto ético às leis
naturais. Repetindo: você não tem como afirmar a uma pedra que não caia se for
solta no ar, nem tem como impedir que o oxigênio se consuma em uma queima, mas,
por mais perfeita que seja uma lei moral, é perfeitamente sabido que ela pode
não ser atendida, diante dos critérios volitivos de quem ela se aplica. E por
isso elas são imperativos, que devem
ser cumpridos, mas que não podem ser impostos.
Então, como podemos fazer aplicações do imperativo
categórico? Kant retroalimenta a lógica de se reduzir a ação a sentenças e usa
de seus próprios princípios, estabelecendo três máximas que podem ser
direcionadas à construção dessas regras morais. Vamos a elas.
“Age de modo que a
máxima de sua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de
legislação universal”.
Aqui é bastante simples. Como já dissemos anteriormente, uma
máxima é plena de conteúdo subjetivo, e somente na medida em que se torna
objetiva passa a ganhar os atributos de universalidade e necessidade. O
exercício para isso é o seguinte: você deve pensar no que aconteceria se todas
as pessoas do mundo praticassem exatamente a mesma coisa que você pratica. Se
essa ação for ética para qualquer pessoa que a aplique, poderá ser dotada como
se fosse uma lei universal.
“Age de modo a
considerar a humanidade, seja na tua pessoa, seja na pessoa de qualquer outro,
sempre também como fim e nunca como simples meio”.
Kant coloca o ser humano como centro da questão ética, e dá
uma dimensão que nos conduz ao conceito de direitos humanos. Ter as pessoas
como fim remove do imperativo qualquer asserção que remeta ao uso instrumental
do ser humano, ou seja, seu uso como ferramenta. Vejam-se as normas jurídicas
dos países com democracia avançada. Estes Estados são constituídos e seguem
legislações cujo fim sempre está voltado para a harmonização entre todos os
seus tutelados, de modo a reduzir ou eliminar exclusões e privilégios.
“Age de modo que a
vontade, com a sua máxima, possa ser considerada como universalmente
legisladora em relação a si mesma”.
As expressões da vontade humana devem ser vistas sempre como
leis que todos devem aceitar. Isso significa que é da própria humanidade que
parte a capacidade de julgar e agir, ao contrário do determinismo natural das
outras espécies.
O que ocorre é que Kant, com sua regra dos imperativos,
quebra duas tradições muito antigas na aplicação da ética. Em primeiro lugar, o
objetivo da ética reside em si mesmo, e não em nada externa a ela. Não somos
éticos para sermos felizes, como queria Aristóteles, ou para evitarmos o
sofrimento, como diziam os estóicos. Somos éticos porque isso é racional. Em
suma, a ética não tem metas, não é teleológica. Também não pode ser encaixada
em uma lógica consequencialista, do tipo "faço isso para obter
aquilo". Como exemplo, podemos mencionar os utilitaristas, que entendiam
ser a ética um caminho para obtenção de um melhor benefício para o maior número
possível de pessoas. A ética em Kant, como pudemos ver, é uma deontologia, ou seja, existe em função
do dever, e é com ele que obtemos a maior racionalidade possível na construção
de uma moralidade justa.
Esses são os subsídios que giraram na minha cabeça no
momento em que a tinhosa e imprescindível agulhinha entrou no meu braço. Ainda
dois dias depois da picada, tive um pouco de reações, mais especificamente uma
dor de cabeça, nada que me impedisse de prosseguir com meus devaneios. E
concluo que é uma pena que as ideias de Kant não povoem a responsabilidade das
pessoas, que acabam por priorizar seus sentimentos pessoais (muitas vezem
incutidos por outrem) em detrimento da melhor oportunidade que temos de nos ver
livres dessa chatíssima pandemia. Afinal de contas, como não podemos ver como um dever a atitude de conter o vírus, ainda mais com as poucas armas que temos... Bons ventos a todos!!!
Recomendação de leitura:
Kant é muito solicitado em exames e vestibulares, mas não é
tão simples de entender. Mesmo assim, sugiro que meus leitores façam uma tour
de force e enfrentem sua obra. O livro abaixo é seu principal tratado sobre
ética.
KANT, Immanuel. Fundamentação
da Metafísica dos Costumes. Coimbra: Edições 70, 2009.
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