Olá!
Tem um
tempinho atrás, o Danillo, leitor ocasional deste espaço (talvez um detalhe
importante a relatar seja o fato de ser meu filho mais velho), mandou a
seguinte sugestão via Facebook:
“sugestão
de post (bem inútil): ‘Uma análise filosófica do poder que os grandes mapas de
São Paulo tem de aproximar pessoas’. Sim, estou falando daqueles estilo poster
de parede, que o pessoal encosta, procura sua rua e diz ‘eu moro aqui’, às
vezes, ‘eu moro aqui, nesse fim-de-mundo’. Kkkkkkkkkkkkkkkk”
Não sei
de onde saiu o questionamento. Há algumas bancas aqui no centro que se
especializaram nesse tipo de mercadoria, então deve ser isso. E como não existe
assunto inútil para a Filosofia, vamos lá!
Bom... Para falar legal sobre este tema, vamos ter que
aplicar duas abordagens neste texto: uma para entender o deslocamento da função
das palavras e outro sobre o nascedouro da sociabilidade através da interação
direta das pessoas. Adiante.
A cena do mapa faz supor uma certa insatisfação com a
distância e precariedade do local onde o segundo ator habita, já que é
denominado por ele mesmo de “fim-de-mundo”. Ora, sabemos que o mundo, redondo
que é, não tem fim; portanto, a linguagem é aqui utilizada em sentido figurado.
Mas como falar que se mora longe não tem graça, há inúmeras outras palavras e
expressões que a substituem. Em todas elas, fazendo a subversão do sentido
literal.
Um deles é cafundó, uma palavra de origem controversa,
mas certamente de matriz africana, que significa “fundo de vale estreito”.
Corresponde a um local de difícil acesso e que os negros fugidos na época da
escravidão utilizavam para formar pequenos quilombos. E acreditem: o Cafundó
existe! É uma pequena comunidade de remanescentes quilombolas, situada no
município de Salto de Pirapora, perto de Sorocaba e distante cerca de 120 Km da
Capital. Conheço a cidade (não o Cafundó) e é bem pequena. Sabendo como o
pessoal do interior calcula mentalmente suas distâncias, suponho que tal
comunidade esteja realmente enfurnada no meio do matagal, meio que distante de
tudo.
Também é comum escutar a expressão “Cafundó-do-Judas”,
que é uma mescla à brasileira com o termo “de onde o Judas perdeu as botas”. É
uma expressão de origem bem mais nebulosa, como sói acontecer nestes casos, mas
a historinha é mais ou menos a seguinte: Judas Iscariotes, o apóstolo traidor,
ganhou um pacotinho com trinta moedas de prata, suficientes para causar uma
bela tentação*. Arrependido de seu feito, devolveu as moedas e suicidou-se com
um enforcamento. Até aí, relato bíblico. O que o povo acrescentou foi a
história de que os soldados que removeram seu corpo perceberam duas coisas: que
ele estava sem o dinheiro e descalço. Ignorando o fato de que Judas havia
arremessado as moedas no templo, vincularam uma coisa à outra e passaram a especular
que o infeliz havia escondido a grana em suas botas. Óbvio que a procura pelo
tesouro perdido foi vã, mas foi se estendendo para locais mais e mais
longínquos. A mente da galera é fértil mesmo!
Outro termo comum para idear distância é dizer que alguém
mora “prá lá de onde o vento faz a curva”. É algo um pouco difícil de nós, homo urbanus, visualizar com clareza,
mas quando temos planícies amplas à nossa frente, de tempos em tempos podemos
observar a aterradora formação de ciclones, que nada mais são que tubos de
ventos que giram em torno de um centro a altas velocidades. Nós não percebemos
os ciclones se formando – sempre os vemos
chegando de longos confins, parecendo se originar de um estranho
cinturão eólico que fica além do horizonte. Um lugar onde o vento reto que nos
refresca se curva e se descontrola. Longe, por conseguinte.
Já para outro termo comum, a “casa do chapéu”, não
consegui encontrar uma explicação convincente, muito embora ser originada do
fato de que antigamente era hábito usar chapéu e que o vento marotamente
arrastava-os para longas distâncias possa ser plausível.
De qualquer forma, é fácil perceber como as funções da
palavra dentro da linguagem são variáveis. Há uma mobilidade de sentido de
acordo com o uso que se faz, como se as montássemos em um jogo. E quem diz isso
não sou eu, mas um sujeito pouquinha coisa mais importante – Ludwig
Wittgenstein.
Wittgenstein é um filósofo incomum. Produziu apenas
duas obras – mas que obras! A primeira é o célebre Tractatus Logico-Philosophicus, do qual tratei neste texto,
e onde ele expõe a sua teoria pictórica da frase, que diz que a lógica embutida
na linguagem é rigorosamente a mesma da realidade que busca retratar, como se
fosse um mapeamento. Nesse caso, somente importa a proposição, ou seja, uma
construção linguística que afirma ou nega algo, podendo receber um valor de
verdade ou falsidade. O restante era composto por penduricalhos linguísticos,
que não tinham importância real. Concluiu que, com isso, estavam resolvidos
todos os problemas da Filosofia e foi dar aulas para crianças, não se
preocupando em construir carreira intelectual.
E é da revisão das teses do Tractatus que nasce sua segunda filosofia da linguagem, o que
ocorreu um bom tempo depois. Eram as Investigações
Filosóficas, publicadas postumamente. Aqui, ela percebia a linguagem como
estrutura muito mais ampla, muito mais viva, onde aquilo que ele considerava
inútil anteriormente era agora prenhe de significado, dependendo unicamente do
contexto do seu uso.
Sim, o linguista muda seu enfoque e, mais uma vez, o
faz de forma brilhante. Sem necessariamente invalidar as teses do Tractatus, Wittgenstein olha para fora
da linguagem que traduz a lógica proposicional e descobre os jogos de linguagem. Vamos ver como
funciona isso.
Nosso ilustre austríaco utiliza o jogo de xadrez para
traçar uma alegoria dos jogos de linguagem em seus estudos. Como não se trata
de prática muito difundida no Brasil, deixarei os reis e cavalos parados no
tabuleiro e utilizarei algo mais prosaico para metaforizar.
Imaginem uma bola. Quantos esportes e brincadeiras são
possíveis de praticar com uma destas? Inúmeros, sem dúvida. Futebol, basquete,
vôlei, polo, beisebol, maçaneta, críquete, golfe, bocha, bilhar, pebolim, gude,
queimada, handebol, pilates, tênis, ping-pong, pelota basca, squash, hóquei,
até mesmo ginástica rítmica. Com um pouco de boa vontade, podemos citar os
pesos usados nos arremessos de atletismo e as bolas ovais do rugby.
Olhamos para uma bola e sabemos que ela é uma bola,
assim como falamos e ouvimos uma palavra e sabemos que é uma palavra. Mas a
bola não subsiste por si só. Isoladamente, ela não tem sentido. A cada um dos
esportes mencionados anteriormente, ela tem uma forma de uso: no futebol é
chutada, no basquete é arremessada, no vôlei é tocada, na sinuca é batida com
um taco, na queimada é atirada. E também há diversidade de objetivos – no
futebol é o gol, no basquete é a cesta, no vôlei é o chão, na sinuca é a
caçapa, na queimada é o adversário. Vejam que, sem deixar de ser bola, o objeto
esférico muda de função em cada um dos jogos. Percebam que a bola, seu uso, seu
objetivo e suas funções estão subordinados a regras, algo típico de jogos. E o
que são as regras? Consensos, nada mais que isso.
Simplifiquei muito, porque sem esse consenso não é
possível jogar. As regras existem para definir o que é válido e o que não é
dentro de um jogo. Imaginem que, em um jogo de futebol, o quarto-zagueiro vire
um quarterback, pegue a bola com as
mãos e saia correndo pelo campo, desviando de seus atônitos adversários, até
chegar ao gol, onde fará um touchdown
extraordinário. O que acontecerá? Bem, o árbitro não validará o gol, marcará
uma falta no local onde começou a infração e dará cartão vermelho para o louco,
expulsando-o de campo. As regras estabelecidas são as do futebol, e não as do
rugby.
Mesma coisa com a linguagem. Ela precisa se encaixar em
um determinado contexto e obedecer a regras que são consensuais entre o falante
e o ouvinte, entre o emissor e o receptor. A palavra “bravo”, por exemplo, pode
ser um adjetivo que significa “valente”, ou que qualifique alguém como
“severo”. Pode ser gritado como uma interjeição ao ator que nos agrada. Pode
ser um sobrenome, ou uma marca de carro. Da mesma forma que faz sentido usar
uma bola para jogar futebol, faz sentido usar a palavra “bravo” em seus
contextos aplicáveis; assim como não faz sentido jogar futebol com halteres,
não há significado em dizer: “Estarei em sua casa às bravo horas”. Tudo depende
da regra comunicativa que estivermos adotando no momento. Todos são modos
válidos de expressão, ao contrário do que dizia a teoria pictorial. Mas por que
os jogos de linguagem não a invalidam? Porque a frase proposicional é
exatamente uma das maneiras de jogar, com suas regras próprias. A proposição
não é o jogo inteiro, mas uma parte dele, um modo específico do jogo. E, dentro
do que ela se propõe, é plenamente válida.
Bom... Tudo muito legal e instrutivo, mas o que
exatamente tem a ver com nossos mapas e locais distantes, e o quanto as pessoas
gostam de expor o quão longe habitam? Caminhemos aos poucos.
A Sociologia, como qualquer ciência, possui uma série
de metodologias com as quais procura formar caminhos para atingir suas
conclusões. É prática comum, desde o seu nascedouro, estudar um determinado
grupo como um organismo autônomo, com vida própria, sem levar muito em
consideração seus componentes, os indivíduos. Desta forma, acaba-se por
detectar aquilo que os membros do grupo tem de igual ou aproximado, e não de
diferente ou distante. Para fazer isso, os sociólogos aplicam modelos teóricos
de sociedade para analisar um determinado grupo, uma prática que nasceu da tese
de tipo ideal de Max Weber (que
teremos a oportunidade de analisar em outro momento).
Ocorre que tal prática tem um vício subjacente. Para
formar os exemplos e modelos sociais, é preciso que um determinado grupo seja
estudado, e para que um grupo seja estudado , é preciso que existam exemplos e
modelos. Ou seja, temos aqui um belíssimo exemplo de circulus in demonstrando (o raciocínio circular do qual falei no
Pequeno Guia das Grandes Falácias), o que é um enorme problema. Uma das
soluções possíveis é a etnometodologia
de Harold Garfinkel, sociólogo estadunidense que procurou deslocar o foco da
análise social do grupo para os indivíduos.
Garfinkel tinha como principal crítica aos métodos
sociológicos tradicionais o fato de que o homem real não existia para os
mesmos, a não ser para comprovar a validade de um modelo. Estes métodos tinham
mais a ver com o velho Positivismo de Comte e com o Determinismo de Taine (se
você quiser saber mais sobre estes autores, leia aqui e aqui) do
que com uma abordagem fenomenológica, que pretendesse investigar a realidade a
partir de seus elementos constitutivos, e que estudasse como a consciência das
pessoas funciona na dinâmica social. Desta forma, a Sociologia teria um método
que permitiria fazer estudos não só partindo do geral para o específico, mas
também no sentido inverso.
Garfinkel preconizou que a análise sociológica deveria
partir da ação dos indivíduos e do significado de suas interações, ou seja, uma
relação social sempre parte do quotidiano e é intersubjetiva, o que implica, de
certa forma, em um acordo no que diz respeito às significações da ação social.
Por exemplo: se eu cedo meu lugar para um idoso no ônibus, ambos conhecemos o
código, mas nossas motivações podem ser diferentes. Posso ceder o lugar por
gentileza ou medo de passar vergonha, e o velhinho pode achar que o fiz com
pavor de tomar multa ou para dar exemplo aos jovens que nos veem. São
componentes que se adaptam de acordo com as circunstâncias, com o jogo que se
joga. A ligação com Wittgenstein já está clara, não é mesmo?
Mas não é só. As pessoas são gregárias, e com isso
buscam a identificação de pontos comuns, utilizando largamente a linguagem para
tanto. Da mesma forma que estamos habituados a utilizar a função fática da
linguagem para estabelecer contato com uma pessoa dentro do elevador (caso
clássico: falar sobre o clima), também diante do mapa temos a tendência de
fechar um circuito comunicacional. E o que há de disponível em um mapa para que
possamos exercer essa tendência atávica? Ruas! Milhares de ruas da
intrincadíssima teia urbana paulistana, favorecida pela falta de planejamento
que sempre permeou nossa urbe. O bate-papo nasce da necessidade de nos
comunicar, exponencializado pelo desafio de se encontrar o logradouro de nossa
casa em quebra-cabeça geometrizado que faria um Wally ficar simplesmente
maluco. E o lugar onde se habita é um elemento de identificação muito forte. Além
disso, a ironia aplicada ao lugar que se mora é um ponto de alívio ao próprio
sofrimento que se tem ao trafegar tanto e com tanta morosidade.
Um estudo sociológico clássico não nos permitiria
chegar a conclusão nenhuma a partir da cena acima. Mas a etnometodologia sim.
Como se analisa a cena da banca? Todos os componentes da etnometodologia estão
lá: prática e realização, indicialidade, reflexividade, relatabilidade.
Trocando em miúdos:
1. A
etnometodologia é eminentemente empírica, e, para isso, precisa assistir à ação
dos atores sociais. É isso o que ocorre quando vemos as pessoas que interagem à frente do
mapa. ESTE é o objeto de estudo. Não são modelos dos quais se busca uma pertinência, mas o ato da prática
de uma interação que ocorre na realidade.
2. As palavras e os objetos utilizados na interação
pertencem a um “índice” que os correlacionam, e esta indexação é de
conhecimento de todos os agentes presentes na dinâmica do mapa. Essa característica
é chamada de indicialidade, e significa que todos sabem o que são os mapas, as
ruas, a banca em que são expostos, o significado de moradia, o significado de
fim-do-mundo. Ou seja, conhece-se a correspondência entre palavra e objeto, que é de domínio dos participantes internos e externos.
3. As próprias práticas refletem e constituem a
consciência de quem está vivendo a experiência de observar e conversar sobre os
mapas. Isso significa que, ainda que não se deem conta disso, os atores sabem o que estão fazendo naquele ato. É
a reflexividade, termo importado da fenomenologia.
4. As ações dos indivíduos são relatáveis, ou seja,
estão expostas ao mundo que rodeia a banca de jornal e observa os “pescoções”
discutindo sobre o mapa. Ser relatável significa a capacidade de transmitir
sentido em suas ações sociais, à sociedade como um todo, e não apenas aos
partícipes presentes.
Vejam como essa metodologia considera muito mais o ser
humano em sua introspecção, em seus caracteres psicológicos e em sua
individualidade. É desse veio que se extrai uma sociologia menos impessoal,
menos numérica e estatística. Digamos que é uma “sociologia do varejo”, mas que não deixa de ser interessante para estudar os pequenos grupos e as relações
miúdas, que, no final das contas, são exatamente aquelas que formam a tessitura
social. Não há grandes mecanismos sem pequenas peças, esse é o pensamento de
Garfinkel. A etnometodologia pode ser falha na análise de grandes populações,
mas creio que nem é isso que a mesma pretende. Portanto, para que a cena do
mapa seja minimamente analisada, é preciso considerar não somente o que as pessoas fazem, mas o que sentem e de que modo expõe essa realidade interna ao mundo.
Recomendações de leitura:
Primeiro, o segundo Wittgenstein:
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São
Paulo: Nova Cultural, 2000. Col. Os Pensadores.
Após, as ideias de Garfinkel. Como não há uma tradução em português, recomendo seu principal comentador:
COULON, Alan. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995.
* Em rápida pesquisa, o site “Mundo Estranho” especula
que as trinta moedas corresponderiam a algo entre vinte mil e cinquenta mil
reais. Vide http://mundoestranho.abril.com.br/materia/se-jesus-fosse-vendido-hoje-quanto-judas-teria-recebido-em-reais
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