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quinta-feira, 3 de março de 2016

Cafundó e fim do mundo - Mapas e palavras para entender a Sociologia e a Filosofia das bancas do centro

Olá!

Tem um tempinho atrás, o Danillo, leitor ocasional deste espaço (talvez um detalhe importante a relatar seja o fato de ser meu filho mais velho), mandou a seguinte sugestão via Facebook:

“sugestão de post (bem inútil): ‘Uma análise filosófica do poder que os grandes mapas de São Paulo tem de aproximar pessoas’. Sim, estou falando daqueles estilo poster de parede, que o pessoal encosta, procura sua rua e diz ‘eu moro aqui’, às vezes, ‘eu moro aqui, nesse fim-de-mundo’. Kkkkkkkkkkkkkkkk”

Não sei de onde saiu o questionamento. Há algumas bancas aqui no centro que se especializaram nesse tipo de mercadoria, então deve ser isso. E como não existe assunto inútil para a Filosofia, vamos lá!


Bom... Para falar legal sobre este tema, vamos ter que aplicar duas abordagens neste texto: uma para entender o deslocamento da função das palavras e outro sobre o nascedouro da sociabilidade através da interação direta das pessoas. Adiante.

A cena do mapa faz supor uma certa insatisfação com a distância e precariedade do local onde o segundo ator habita, já que é denominado por ele mesmo de “fim-de-mundo”. Ora, sabemos que o mundo, redondo que é, não tem fim; portanto, a linguagem é aqui utilizada em sentido figurado. Mas como falar que se mora longe não tem graça, há inúmeras outras palavras e expressões que a substituem. Em todas elas, fazendo a subversão do sentido literal.

Um deles é cafundó, uma palavra de origem controversa, mas certamente de matriz africana, que significa “fundo de vale estreito”. Corresponde a um local de difícil acesso e que os negros fugidos na época da escravidão utilizavam para formar pequenos quilombos. E acreditem: o Cafundó existe! É uma pequena comunidade de remanescentes quilombolas, situada no município de Salto de Pirapora, perto de Sorocaba e distante cerca de 120 Km da Capital. Conheço a cidade (não o Cafundó) e é bem pequena. Sabendo como o pessoal do interior calcula mentalmente suas distâncias, suponho que tal comunidade esteja realmente enfurnada no meio do matagal, meio que distante de tudo.

Também é comum escutar a expressão “Cafundó-do-Judas”, que é uma mescla à brasileira com o termo “de onde o Judas perdeu as botas”. É uma expressão de origem bem mais nebulosa, como sói acontecer nestes casos, mas a historinha é mais ou menos a seguinte: Judas Iscariotes, o apóstolo traidor, ganhou um pacotinho com trinta moedas de prata, suficientes para causar uma bela tentação*. Arrependido de seu feito, devolveu as moedas e suicidou-se com um enforcamento. Até aí, relato bíblico. O que o povo acrescentou foi a história de que os soldados que removeram seu corpo perceberam duas coisas: que ele estava sem o dinheiro e descalço. Ignorando o fato de que Judas havia arremessado as moedas no templo, vincularam uma coisa à outra e passaram a especular que o infeliz havia escondido a grana em suas botas. Óbvio que a procura pelo tesouro perdido foi vã, mas foi se estendendo para locais mais e mais longínquos. A mente da galera é fértil mesmo!

Outro termo comum para idear distância é dizer que alguém mora “prá lá de onde o vento faz a curva”. É algo um pouco difícil de nós, homo urbanus, visualizar com clareza, mas quando temos planícies amplas à nossa frente, de tempos em tempos podemos observar a aterradora formação de ciclones, que nada mais são que tubos de ventos que giram em torno de um centro a altas velocidades. Nós não percebemos os ciclones se formando – sempre os vemos  chegando de longos confins, parecendo se originar de um estranho cinturão eólico que fica além do horizonte. Um lugar onde o vento reto que nos refresca se curva e se descontrola. Longe, por conseguinte.

Já para outro termo comum, a “casa do chapéu”, não consegui encontrar uma explicação convincente, muito embora ser originada do fato de que antigamente era hábito usar chapéu e que o vento marotamente arrastava-os para longas distâncias possa ser plausível.

De qualquer forma, é fácil perceber como as funções da palavra dentro da linguagem são variáveis. Há uma mobilidade de sentido de acordo com o uso que se faz, como se as montássemos em um jogo. E quem diz isso não sou eu, mas um sujeito pouquinha coisa mais importante – Ludwig Wittgenstein.

Wittgenstein é um filósofo incomum. Produziu apenas duas obras – mas que obras! A primeira é o célebre Tractatus Logico-Philosophicus, do qual tratei neste texto, e onde ele expõe a sua teoria pictórica da frase, que diz que a lógica embutida na linguagem é rigorosamente a mesma da realidade que busca retratar, como se fosse um mapeamento. Nesse caso, somente importa a proposição, ou seja, uma construção linguística que afirma ou nega algo, podendo receber um valor de verdade ou falsidade. O restante era composto por penduricalhos linguísticos, que não tinham importância real. Concluiu que, com isso, estavam resolvidos todos os problemas da Filosofia e foi dar aulas para crianças, não se preocupando em construir carreira intelectual.

E é da revisão das teses do Tractatus que nasce sua segunda filosofia da linguagem, o que ocorreu um bom tempo depois. Eram as Investigações Filosóficas, publicadas postumamente. Aqui, ela percebia a linguagem como estrutura muito mais ampla, muito mais viva, onde aquilo que ele considerava inútil anteriormente era agora prenhe de significado, dependendo unicamente do contexto do seu uso.

Sim, o linguista muda seu enfoque e, mais uma vez, o faz de forma brilhante. Sem necessariamente invalidar as teses do Tractatus, Wittgenstein olha para fora da linguagem que traduz a lógica proposicional e descobre os jogos de linguagem. Vamos ver como funciona isso.

Nosso ilustre austríaco utiliza o jogo de xadrez para traçar uma alegoria dos jogos de linguagem em seus estudos. Como não se trata de prática muito difundida no Brasil, deixarei os reis e cavalos parados no tabuleiro e utilizarei algo mais prosaico para metaforizar.

Imaginem uma bola. Quantos esportes e brincadeiras são possíveis de praticar com uma destas? Inúmeros, sem dúvida. Futebol, basquete, vôlei, polo, beisebol, maçaneta, críquete, golfe, bocha, bilhar, pebolim, gude, queimada, handebol, pilates, tênis, ping-pong, pelota basca, squash, hóquei, até mesmo ginástica rítmica. Com um pouco de boa vontade, podemos citar os pesos usados nos arremessos de atletismo e as bolas ovais do rugby.

Olhamos para uma bola e sabemos que ela é uma bola, assim como falamos e ouvimos uma palavra e sabemos que é uma palavra. Mas a bola não subsiste por si só. Isoladamente, ela não tem sentido. A cada um dos esportes mencionados anteriormente, ela tem uma forma de uso: no futebol é chutada, no basquete é arremessada, no vôlei é tocada, na sinuca é batida com um taco, na queimada é atirada. E também há diversidade de objetivos – no futebol é o gol, no basquete é a cesta, no vôlei é o chão, na sinuca é a caçapa, na queimada é o adversário. Vejam que, sem deixar de ser bola, o objeto esférico muda de função em cada um dos jogos. Percebam que a bola, seu uso, seu objetivo e suas funções estão subordinados a regras, algo típico de jogos. E o que são as regras? Consensos, nada mais que isso.

Simplifiquei muito, porque sem esse consenso não é possível jogar. As regras existem para definir o que é válido e o que não é dentro de um jogo. Imaginem que, em um jogo de futebol, o quarto-zagueiro vire um quarterback, pegue a bola com as mãos e saia correndo pelo campo, desviando de seus atônitos adversários, até chegar ao gol, onde fará um touchdown extraordinário. O que acontecerá? Bem, o árbitro não validará o gol, marcará uma falta no local onde começou a infração e dará cartão vermelho para o louco, expulsando-o de campo. As regras estabelecidas são as do futebol, e não as do rugby.

Mesma coisa com a linguagem. Ela precisa se encaixar em um determinado contexto e obedecer a regras que são consensuais entre o falante e o ouvinte, entre o emissor e o receptor. A palavra “bravo”, por exemplo, pode ser um adjetivo que significa “valente”, ou que qualifique alguém como “severo”. Pode ser gritado como uma interjeição ao ator que nos agrada. Pode ser um sobrenome, ou uma marca de carro. Da mesma forma que faz sentido usar uma bola para jogar futebol, faz sentido usar a palavra “bravo” em seus contextos aplicáveis; assim como não faz sentido jogar futebol com halteres, não há significado em dizer: “Estarei em sua casa às bravo horas”. Tudo depende da regra comunicativa que estivermos adotando no momento. Todos são modos válidos de expressão, ao contrário do que dizia a teoria pictorial. Mas por que os jogos de linguagem não a invalidam? Porque a frase proposicional é exatamente uma das maneiras de jogar, com suas regras próprias. A proposição não é o jogo inteiro, mas uma parte dele, um modo específico do jogo. E, dentro do que ela se propõe, é plenamente válida.

Bom... Tudo muito legal e instrutivo, mas o que exatamente tem a ver com nossos mapas e locais distantes, e o quanto as pessoas gostam de expor o quão longe habitam? Caminhemos aos poucos.

A Sociologia, como qualquer ciência, possui uma série de metodologias com as quais procura formar caminhos para atingir suas conclusões. É prática comum, desde o seu nascedouro, estudar um determinado grupo como um organismo autônomo, com vida própria, sem levar muito em consideração seus componentes, os indivíduos. Desta forma, acaba-se por detectar aquilo que os membros do grupo tem de igual ou aproximado, e não de diferente ou distante. Para fazer isso, os sociólogos aplicam modelos teóricos de sociedade para analisar um determinado grupo, uma prática que nasceu da tese de tipo ideal de Max Weber (que teremos a oportunidade de analisar em outro momento).

Ocorre que tal prática tem um vício subjacente. Para formar os exemplos e modelos sociais, é preciso que um determinado grupo seja estudado, e para que um grupo seja estudado , é preciso que existam exemplos e modelos. Ou seja, temos aqui um belíssimo exemplo de circulus in demonstrando (o raciocínio circular do qual falei no Pequeno Guia das Grandes Falácias), o que é um enorme problema. Uma das soluções possíveis é a etnometodologia de Harold Garfinkel, sociólogo estadunidense que procurou deslocar o foco da análise social do grupo para os indivíduos.

Garfinkel tinha como principal crítica aos métodos sociológicos tradicionais o fato de que o homem real não existia para os mesmos, a não ser para comprovar a validade de um modelo. Estes métodos tinham mais a ver com o velho Positivismo de Comte e com o Determinismo de Taine (se você quiser saber mais sobre estes autores, leia aqui e aqui) do que com uma abordagem fenomenológica, que pretendesse investigar a realidade a partir de seus elementos constitutivos, e que estudasse como a consciência das pessoas funciona na dinâmica social. Desta forma, a Sociologia teria um método que permitiria fazer estudos não só partindo do geral para o específico, mas também no sentido inverso.

Garfinkel preconizou que a análise sociológica deveria partir da ação dos indivíduos e do significado de suas interações, ou seja, uma relação social sempre parte do quotidiano e é intersubjetiva, o que implica, de certa forma, em um acordo no que diz respeito às significações da ação social. Por exemplo: se eu cedo meu lugar para um idoso no ônibus, ambos conhecemos o código, mas nossas motivações podem ser diferentes. Posso ceder o lugar por gentileza ou medo de passar vergonha, e o velhinho pode achar que o fiz com pavor de tomar multa ou para dar exemplo aos jovens que nos veem. São componentes que se adaptam de acordo com as circunstâncias, com o jogo que se joga. A ligação com Wittgenstein já está clara, não é mesmo?

Mas não é só. As pessoas são gregárias, e com isso buscam a identificação de pontos comuns, utilizando largamente a linguagem para tanto. Da mesma forma que estamos habituados a utilizar a função fática da linguagem para estabelecer contato com uma pessoa dentro do elevador (caso clássico: falar sobre o clima), também diante do mapa temos a tendência de fechar um circuito comunicacional. E o que há de disponível em um mapa para que possamos exercer essa tendência atávica? Ruas! Milhares de ruas da intrincadíssima teia urbana paulistana, favorecida pela falta de planejamento que sempre permeou nossa urbe. O bate-papo nasce da necessidade de nos comunicar, exponencializado pelo desafio de se encontrar o logradouro de nossa casa em quebra-cabeça geometrizado que faria um Wally ficar simplesmente maluco. E o lugar onde se habita é um elemento de identificação muito forte. Além disso, a ironia aplicada ao lugar que se mora é um ponto de alívio ao próprio sofrimento que se tem ao trafegar tanto e com tanta morosidade.

Um estudo sociológico clássico não nos permitiria chegar a conclusão nenhuma a partir da cena acima. Mas a etnometodologia sim. Como se analisa a cena da banca? Todos os componentes da etnometodologia estão lá: prática e realização, indicialidade, reflexividade, relatabilidade. 

Trocando em miúdos:

1. A etnometodologia é eminentemente empírica, e, para isso, precisa assistir à ação dos atores sociais. É isso o que ocorre quando vemos as pessoas que interagem à frente do mapa. ESTE é o objeto de estudo. Não são modelos dos quais se busca uma pertinência, mas o ato da prática de uma interação que ocorre na realidade.

2. As palavras e os objetos utilizados na interação pertencem a um “índice” que os correlacionam, e esta indexação é de conhecimento de todos os agentes presentes na dinâmica do mapa. Essa característica é chamada de indicialidade, e significa que todos sabem o que são os mapas, as ruas, a banca em que são expostos, o significado de moradia, o significado de fim-do-mundo. Ou seja, conhece-se a correspondência entre palavra e objeto, que é de domínio dos participantes internos e externos.

3. As próprias práticas refletem e constituem a consciência de quem está vivendo a experiência de observar e conversar sobre os mapas. Isso significa que, ainda que não se deem conta disso, os atores sabem o que estão fazendo naquele ato. É a reflexividade, termo importado da fenomenologia.

4. As ações dos indivíduos são relatáveis, ou seja, estão expostas ao mundo que rodeia a banca de jornal e observa os “pescoções” discutindo sobre o mapa. Ser relatável significa a capacidade de transmitir sentido em suas ações sociais, à sociedade como um todo, e não apenas aos partícipes presentes.

Vejam como essa metodologia considera muito mais o ser humano em sua introspecção, em seus caracteres psicológicos e em sua individualidade. É desse veio que se extrai uma sociologia menos impessoal, menos numérica e estatística. Digamos que é uma “sociologia do varejo”, mas que não deixa de ser interessante para estudar os pequenos grupos e as relações miúdas, que, no final das contas, são exatamente aquelas que formam a tessitura social. Não há grandes mecanismos sem pequenas peças, esse é o pensamento de Garfinkel. A etnometodologia pode ser falha na análise de grandes populações, mas creio que nem é isso que a mesma pretende. Portanto, para que a cena do mapa seja minimamente analisada, é preciso considerar não somente o que as pessoas fazem, mas o que sentem e de que modo expõe essa realidade interna ao mundo.

Recomendações de leitura:

Primeiro, o segundo Wittgenstein: 

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Col. Os Pensadores.

Após, as ideias de Garfinkel. Como não há uma tradução em português, recomendo seu principal comentador:

COULON, Alan. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995.

* Em rápida pesquisa, o site “Mundo Estranho” especula que as trinta moedas corresponderiam a algo entre vinte mil e cinquenta mil reais. Vide http://mundoestranho.abril.com.br/materia/se-jesus-fosse-vendido-hoje-quanto-judas-teria-recebido-em-reais

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