(Pedras tem memórias? Religiões evoluem sempre no mesmo sentido?)
“Um evento é sempre filho de outro, e não devemos nunca esquecer o parentesco” – esse foi o comentário feito por um chefe banto a Casalis, o missionário africano. Assim, em todos os tempos, os historiadores, na medida em que pretenderam ser mais que meros cronistas, fizeram o melhor possível para mostrar não meramente a sucessão, mas sim a conexão entre os eventos que registravam.
Tylor
Olá!
A pandemia teve dessas coisas. Durante o transcurso dela,
aprendemos a utilizar os meios digitais para tarefas que habitualmente faríamos
em carne e osso. Isso incluiu muitas coisas, como reuniões de família, por
exemplo. Em um aniversário, bem no momento mais crítico das indefinições,
compramos um pedaço de bolo em cada casa e cantamos a famosa trovinha via Skype©,
em um exercício de afeto que procurava resolver a distância pela tecnologia
possível. Fosse a vinte anos atrás, não seria possível tanta sofisticação.
Outras coisas foram andando pelo mesmo caminho, o que nos
colocou diante de médicos pela telinha do celular, o que tornava pouco
importante o ponto geográfico que o doutor se encontrava, e outros quesitos
passaram a significar mais, como disponibilidade e preço.
As coisas foram se normalizando paulatinamente, demorando
muito mais do que os quinze dias previstos para a duração do primeiríssimo
lockdown, a ponto de nos acostumarmos com os médicos com os quais nos tratamos,
e, uns mais, outros menos, passamos a frequentar presencialmente.
Acontece que há o critério da distância, como falei.
Consultava uma endocrinologista de Pouso Alegre que, alvíssaras, se mudou
recentemente para São Paulo. Não fosse isso, teria que baixar minha ficha. Mas
há um médico de Sorocaba que gostaria de receber a visita da patroa, um
neurologista, para um exame físico presencial. Ora, Sorocaba está a 100 km,
factível a consulta, portanto.
Peguei uma folga e fomos até lá em uma quinta-feira, tempo
ameno e trânsito razoável. Nessas coisas de horário certo, é bom usar a teoria
mineira e chegar às 06h da manhã para o compromisso às 06h da tarde. Exageros à
parte, chegamos com antecedência de duas horas, já prevendo um almoço antes. Só
que, por mais que pegasse a comida de grão em grão, não dava para demorar todo
esse tempo na mesa. O jeito era dar um passeio pelas ruas, por algum shopping,
ou até em um parque, por que não? É o que fizemos. Fomos gastar os solados e
fazer o quilo por uma horinha no Parque Carlos Alberto de Souza, mais conhecido
como Campolim, localizado no bairro de mesmo nome.
A pessoa que denomina o parque foi um cidadão emérito da
cidade de Sorocaba que viveu entre 1933 e 1997, o que nos faz deduzir que ele
não era nascido por aqueles lados. Não consegui maiores informações sobre sua
importância histórica. Se alguém souber, por favor, mande notícias nos
comentários.
O bairro do Campolim é de classe social privilegiada, com belas casas e cercado de clínicas estéticas e consultórios médicos, que se encontra em amplo processo de verticalização, como ocorre com o paulistano Pinheiros.
O parque foi construído nas margens de um córrego, de forma a produzir uma bacia de contenção à moda dos parques de Curitiba (vide), o que diminui muito os problemas de enchentes e ainda dá aproveitamento social à área.
Os lagos formados pelas barreiras têm também a função de
manter alguma fauna na região altamente urbanizada, o que é representado pela
quantidade de aves nas ilhotas, especialmente biguás…
… e nas encostas, onde havia muitas galinhas d'água e corós.
Bem na entrada do parque, há um Marco da Paz, semelhante ao
que temos no Pátio do Colégio, em Sampa. Criado pelo italiano Gaetano Brancati
Luigi, é um monumento que possui um sino e uma pomba, sendo que aqui é composta
por duas mãos com os dedos entrelaçados, dando um ar diferenciado à obra. Está
espalhado por vários lugares do Brasil e do mundo, e tem o intento de lembrar
as agruras da guerra e a importância da paz entre os povos.
O parque em si é simples, funcional, ocupando uma área que
seria pouco aproveitada de outra forma, principalmente com trilhas para
caminhada em saibro e areia, seguindo o curso natural do córrego.
Há os espaços de brinquedos para as crianças, um
cachorródromo e um paço para feiras e eventos artísticos. A própria prefeitura
aproveita o parque para fazer festas diversas.
E há pedras, muitas pedras. Elas estão ali desde muito antes
dos primeiros indígenas que aqui chegaram e deram a este lugar o nome de “terra
fendida" (o significado de Sorocaba em Tupi-Guarani).
Aliás, antes mesmo de qualquer animal ou outra forma de
vida, essas pedras são testemunhas da própria formação do território, e o viram
sendo tomado e transformado no que é hoje, uma cidade de grande porte, com
todas as suas glórias e escórias. São donas da história, ainda que
incomunicáveis conosco.
São mesmo? Em uma visão puramente material, as pedras são
somente pedras, nada mais. A atribuição de características espirituais não faz
parte desse universo. Mas se observarmos as culturas e as estatísticas, veremos
que esse materialismo é bem mais raro do que a proposta inversa, então não há
motivos para chacotas.
Esse modo de ver a realidade como possuidora de subjacências
invisíveis aos olhos não é novo, nem velho. É antiquíssimo, na verdade, e
nasceu praticamente ao mesmo tempo que os mecanismos evolutivos fizeram com que
os bípedes implumes formassem as primeiras culturas. Desde o começo, a
observação dos seres em movimento fazia com que se acreditasse em uma presença
de energia vital que fornecesse ânimo para esse giro (anima, em latim,
significa alma). É meio óbvio que esse princípio fosse atribuído primeiramente
aos animais, humanos inclusos, mas a força vegetativa das plantas e a
movimentação dos demais objetos construiu uma visão mais acurada. As primeiras
impressões de que o universo ia além do que era possível captar pelos sentidos
formaram as intenções em se estabelecer uma conexão com esse outro mundo,
principalmente para se obter explicações sobre coisas que não estavam à
disposição dos intelectos de então. De fato, quando olhamos para as antigas
pedras, ou para as árvores centenárias que cercavam a região das tribos que ali
habitavam, vemos que elas têm uma permanência muito mais longa do que a vida
dos indivíduos em si, mas, de toda forma, mesmo esses seres permanentes são
afetados pela comunidade que lhes cerca. Uma árvore tem seus galhos cortados e
sua casca maculada, e uma pedra pode ser lascada ou garimpada, de forma a
existir uma influência mútua, muito embora uma tenha carga de fixidez muito
maior que as outras. Outro bom exemplo vem das condições climáticas. Em um
veleiro antigo, o vento fazia toda a diferença. Se ele apontava para a direção
exata de onde se queria ir, dizia-se que ele estava generoso; por outro lado,
se ele estava ausente, poder-se-ia pensar que estava desgostoso. Era atribuída
uma vontade e uma agência a uma condição meramente física, que, hoje sabemos,
depende de fatores igualmente físicos. Dessa forma, os humanos começam a
acreditar que há uma espécie de imaterialidade nesses seres que não manifestam
vida. Podemos pensar nisso como a primeiríssima forma de religião: o animismo.
É preciso esclarecer que nunca houve uma religião chamada de
animismo, assim como nunca houve outra chamada de politeísmo ou de monoteísmo,
porque o termo diz respeito a uma forma, e não um conjunto de doutrinas que
sistematizasse um pensamento transcendente. Por isso, podemos prosseguir.
Com o tempo, o pensamento animista foi se dirigindo para
formas de canalizar a comunicação com a porção transcendente do mundo
circunstante. Afinal de contas, se há uma anima que rege o material, deve ser
possível movê-la para um sentido ou para o outro, de modo a influenciar sua
atuação. Uma destas formas foi a sintetização em objetos que simbolizavam o
espírito que se queria agradar, e nisto nasceram amuletos e talismãs, dentre
outros elementos de culto. O objeto em si poderia ser uma escultura de madeira,
um sachê de ervas, um conjunto de pedras disposto de maneira específica e assim
por diante. Esses objetos, mais tarde conhecidos como fetiches (a mesma raiz
etimológica de “feitiço”), deram a origem mais primária aos ídolos, que seriam
a representação magnificada da divindade, que davam um conceito mais abrangente
ao animismo do pormenor. Dessa forma, o ídolo teria a capacidade de representar
com tanto grau de proximidade a transcendência à qual se refere que passa, ele
mesmo, a ser sacralizado.
Ocorre que houve um momento tal que esses ídolos foram se
identificando cada vez mais aos elementos que distinguem a vida humana, a ponto
de se tornarem pessoais. Os ídolos já não são mais representações, mas
incorporações de um determinado domínio, e cada uma delas passa a ser, ela
própria, uma divindade. Esse seria o que mais tarde ficou conhecido como
politeísmo, que ficou eternizado com o paganismo grego. Lá, o trovão em si
deixou de ser divinizado, para ser personificado em Zeus, que agora era o regente
desse elemento.
Os grandes mecanismos universos, no entanto, parecem ter
conduzido a visão de transcendência ainda para outro ponto. Embora catástrofes
pudessem ainda denunciar uma espécie de descontentamento divino, o fato é que a
harmonia entre os fenômenos dá menos a ideia de uma rivalidade entre deidades,
e mais de pensamento unificado, como se uma única mente tivesse orquestrado
tudo aquilo que existe. Esse seria o nascedouro do monoteísmo, que, se visto
sob um prisma demográfico, é prevalente em boa parte da população mundial.
Pode-se perceber que, ainda que as concepções sobre
quantidade e localização das deidades fossem fundamentalmente diferentes, em
todas elas temos uma transferência de características humanas.
Comunitariamente, projetamos nós mesmos em nossas divindades, dando a elas
aspectos humanos. Os deuses podem ser irascíveis, bondosos, piedosos, severos,
tudo ao máximo, mas tudo partindo de sentimentos que nós mesmos podemos ter.
Não há sentimentos exclusivamente divinos - a diferença está apenas no grau
atribuído.
Mas à medida que o tempo avança, avança também a ciência e a
tecnologia, bem como os ideais democráticos vão tornando mais e mais antiquada
a concepção de um regente universal. Certas concepções divinas vão se tornando
mais difusas, onde estas vão tomando um aspecto mais espiritual e menos pessoal,
na forma de energia, contrapondo-se à imagem do deus entronizado,
semelhantemente ao que acontece com o poder fragmentado nas mãos do povo, como
se pudesse ser reconhecido nas pequenas coisas.
A aproximação com uma visão mais científica do que é a
divindade é inevitável. As inúmeras explicações conseguidas pela atividade
científica despovoam o imaginário das fúrias divinas, e a própria natureza
volta a ser reconhecida como força por trás de tudo, já sem o teor divinizante
anteriormente atribuído a ela.
Essa corrente de pensamento apareceu bem tardiamente, no
momento em que a modernidade impôs a sistematização do conhecimento como
ciências, no caso, a antropologia. No auge do surgimento da evolução biológica,
outras aplicabilidades para a mesma lógica surgiram, e os pensadores viam que a
religião era uma dessas áreas, com Edward Tylor à frente. Sua principal ideia
era a de que o pensamento humano tinha uma certa homogeneidade, nascendo de
forma semelhante em diferentes culturas e sendo modificado na medida em que as
“pressões seletivas” iam moldando-o. Como o homem é mais ou menos uniforme, seu
pensamento também o é, e, sendo assim, práticas mais antigas pertenceriam a
culturas mais primitivas. O animismo seria o nascedouro de qualquer religião,
que evoluiria através da linha imaginada, até chegar ao seu ponto atual.
A questão toda é que guardamos uma visão muito
ocidentalizada do que é a religião. Essa linha de
animismo-politeísmo-monoteísmo e hipóteses posteriores refletem muito o que
ocorreu na Europa e nas suas áreas de influência, mas não dão cabo de uma
explicação geral de como se desenrola a antropologia da religião. O grande
problema está na cara de “melhoramentos” que a teoria tem, com o politeísmo sendo
um aperfeiçoamento do animismo, e o monoteísmo como um aperfeiçoamento do
politeísmo, o que não acontece nem na evolução biológica. Minhocas dão origens
às sanguessugas, e ambas convivem muito bem, obrigado. Isso se comprova não
somente na inversão de ordem que encontramos na formação de religiões
não-ocidentais, como na permanência de práticas próximas ao animismo nas ditas
religiões modernas.
Um bom exemplo de animismo moderno é o feng shui, que
não é propriamente novo, mas que reavivou com muita força a partir dos anos
2000. Posição dos móveis e da própria casa na busca de melhores energias nada
mais são do que atribuir aos objetos uma força transcendente.
Há ainda que se pensar no quanto religiões monoteístas ainda
carregam boa quota de animismo. São velas, imagens, incensos que são muito
assemelhados aos antigos fetiches, porque não só parecem carregar em si um
poder mágico, mas também são protegidos pela comunidade que se dirige a
eles. Os católicos têm muito disso. Aqui mesmo onde moro, um prédio pertencente
a uma ordem religiosa, as velhinhas tem um voto de estar sempre carregando um escapulário,
uma espécie de colar contendo um pedaço de feltro com algumas imagens e
orações. Elas acreditam que estar com esse objeto na hora da morte lhes
garantirá ida sem escala para o céu. É um desvirtuamento da própria fé cristã,
mas o fato é que a Igreja aceita e até incentiva esse tipo de conduta.
Evangélicos dirão: nós não temos essas práticas idólatras.
Experimente rasgar uma Bíblia perto de um deles. Objetivamente, é uma resma de
papel com tinta, nada mais do que isso, e as palavras lá escritas não se
perderão como se perde o exemplar. Mas, no mínimo, te chamarão de satanista ou
macumbeiro (que para eles é a mesma coisa).
Tylor não era um cristão que tentava propor os monoteísmos
como uma forma mais avançada de religião com relação a outras, muito pelo
contrário. Sua intenção era provar que o Cristianismo veio de uma religião mais
primitiva, que estaria na base de sua constituição, e que ele não poderia se
arrogar o atributo de uma fé pura e original, como é bastante comum que os
próprios se insinuem. Entretanto, é o caso flagrante de teoria que só tem
importância no contexto histórico, o que já é o bastante para entender como se
processa o desenvolvimento das ideias.
Voltando ao mundo imanente, ficamos tão sossegados olhando
os pássaros e as pedras que por pouco não perdemos o horário, e lá se iria mais
o testemunho de uma minúscula história. Bons ventos a todos!
Recomendações:
As ideias de Tylor praticamente caíram no esquecimento, e
por essa razão é muito difícil encontrar traduções diretas de seus livros hoje
em dia, razão pela qual indico o compilado de textos abaixo, onde ainda é
possível ler alguma coisa direta dele.
CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo Cultural. Textos
de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
Quanto ao parque, seguem suas referências.
Parque Carlos Alberto de Souza (Campolim)
Avenida Antônio Carlos Comitre, s/n
Campolim
Sorocaba/SP
A aproximadamente 105 km do centro de São Paulo
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