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segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Navegações de cabotagem – o Parque do Campolim de Sorocaba, suas pedras e a evolução (?) das religiões

(Pedras tem memórias? Religiões evoluem sempre no mesmo sentido?)

“Um evento é sempre filho de outro, e não devemos nunca esquecer o parentesco” – esse foi o comentário feito por um chefe banto a Casalis, o missionário africano. Assim, em todos os tempos, os historiadores, na medida em que pretenderam ser mais que meros cronistas, fizeram o melhor possível para mostrar não meramente a sucessão, mas sim a conexão entre os eventos que registravam.

Tylor

Olá!

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A pandemia teve dessas coisas. Durante o transcurso dela, aprendemos a utilizar os meios digitais para tarefas que habitualmente faríamos em carne e osso. Isso incluiu muitas coisas, como reuniões de família, por exemplo. Em um aniversário, bem no momento mais crítico das indefinições, compramos um pedaço de bolo em cada casa e cantamos a famosa trovinha via Skype©, em um exercício de afeto que procurava resolver a distância pela tecnologia possível. Fosse a vinte anos atrás, não seria possível tanta sofisticação.

Outras coisas foram andando pelo mesmo caminho, o que nos colocou diante de médicos pela telinha do celular, o que tornava pouco importante o ponto geográfico que o doutor se encontrava, e outros quesitos passaram a significar mais, como disponibilidade e preço.

As coisas foram se normalizando paulatinamente, demorando muito mais do que os quinze dias previstos para a duração do primeiríssimo lockdown, a ponto de nos acostumarmos com os médicos com os quais nos tratamos, e, uns mais, outros menos, passamos a frequentar presencialmente.

Acontece que há o critério da distância, como falei. Consultava uma endocrinologista de Pouso Alegre que, alvíssaras, se mudou recentemente para São Paulo. Não fosse isso, teria que baixar minha ficha. Mas há um médico de Sorocaba que gostaria de receber a visita da patroa, um neurologista, para um exame físico presencial. Ora, Sorocaba está a 100 km, factível a consulta, portanto.

Peguei uma folga e fomos até lá em uma quinta-feira, tempo ameno e trânsito razoável. Nessas coisas de horário certo, é bom usar a teoria mineira e chegar às 06h da manhã para o compromisso às 06h da tarde. Exageros à parte, chegamos com antecedência de duas horas, já prevendo um almoço antes. Só que, por mais que pegasse a comida de grão em grão, não dava para demorar todo esse tempo na mesa. O jeito era dar um passeio pelas ruas, por algum shopping, ou até em um parque, por que não? É o que fizemos. Fomos gastar os solados e fazer o quilo por uma horinha no Parque Carlos Alberto de Souza, mais conhecido como Campolim, localizado no bairro de mesmo nome.

A pessoa que denomina o parque foi um cidadão emérito da cidade de Sorocaba que viveu entre 1933 e 1997, o que nos faz deduzir que ele não era nascido por aqueles lados. Não consegui maiores informações sobre sua importância histórica. Se alguém souber, por favor, mande notícias nos comentários.

O bairro do Campolim é de classe social privilegiada, com belas casas e cercado de clínicas estéticas e consultórios médicos, que se encontra em amplo processo de verticalização, como ocorre com o paulistano Pinheiros.


O parque foi construído nas margens de um córrego, de forma a produzir uma bacia de contenção à moda dos parques de Curitiba (vide), o que diminui muito os problemas de enchentes e ainda dá aproveitamento social à área.

Os lagos formados pelas barreiras têm também a função de manter alguma fauna na região altamente urbanizada, o que é representado pela quantidade de aves nas ilhotas, especialmente biguás…

… e nas encostas, onde havia muitas galinhas d'água e corós.

Bem na entrada do parque, há um Marco da Paz, semelhante ao que temos no Pátio do Colégio, em Sampa. Criado pelo italiano Gaetano Brancati Luigi, é um monumento que possui um sino e uma pomba, sendo que aqui é composta por duas mãos com os dedos entrelaçados, dando um ar diferenciado à obra. Está espalhado por vários lugares do Brasil e do mundo, e tem o intento de lembrar as agruras da guerra e a importância da paz entre os povos.

O parque em si é simples, funcional, ocupando uma área que seria pouco aproveitada de outra forma, principalmente com trilhas para caminhada em saibro e areia, seguindo o curso natural do córrego.

Há os espaços de brinquedos para as crianças, um cachorródromo e um paço para feiras e eventos artísticos. A própria prefeitura aproveita o parque para fazer festas diversas.

E há pedras, muitas pedras. Elas estão ali desde muito antes dos primeiros indígenas que aqui chegaram e deram a este lugar o nome de “terra fendida" (o significado de Sorocaba em Tupi-Guarani).

Aliás, antes mesmo de qualquer animal ou outra forma de vida, essas pedras são testemunhas da própria formação do território, e o viram sendo tomado e transformado no que é hoje, uma cidade de grande porte, com todas as suas glórias e escórias. São donas da história, ainda que incomunicáveis conosco.

São mesmo? Em uma visão puramente material, as pedras são somente pedras, nada mais. A atribuição de características espirituais não faz parte desse universo. Mas se observarmos as culturas e as estatísticas, veremos que esse materialismo é bem mais raro do que a proposta inversa, então não há motivos para chacotas.

Esse modo de ver a realidade como possuidora de subjacências invisíveis aos olhos não é novo, nem velho. É antiquíssimo, na verdade, e nasceu praticamente ao mesmo tempo que os mecanismos evolutivos fizeram com que os bípedes implumes formassem as primeiras culturas. Desde o começo, a observação dos seres em movimento fazia com que se acreditasse em uma presença de energia vital que fornecesse ânimo para esse giro (anima, em latim, significa alma). É meio óbvio que esse princípio fosse atribuído primeiramente aos animais, humanos inclusos, mas a força vegetativa das plantas e a movimentação dos demais objetos construiu uma visão mais acurada. As primeiras impressões de que o universo ia além do que era possível captar pelos sentidos formaram as intenções em se estabelecer uma conexão com esse outro mundo, principalmente para se obter explicações sobre coisas que não estavam à disposição dos intelectos de então. De fato, quando olhamos para as antigas pedras, ou para as árvores centenárias que cercavam a região das tribos que ali habitavam, vemos que elas têm uma permanência muito mais longa do que a vida dos indivíduos em si, mas, de toda forma, mesmo esses seres permanentes são afetados pela comunidade que lhes cerca. Uma árvore tem seus galhos cortados e sua casca maculada, e uma pedra pode ser lascada ou garimpada, de forma a existir uma influência mútua, muito embora uma tenha carga de fixidez muito maior que as outras. Outro bom exemplo vem das condições climáticas. Em um veleiro antigo, o vento fazia toda a diferença. Se ele apontava para a direção exata de onde se queria ir, dizia-se que ele estava generoso; por outro lado, se ele estava ausente, poder-se-ia pensar que estava desgostoso. Era atribuída uma vontade e uma agência a uma condição meramente física, que, hoje sabemos, depende de fatores igualmente físicos. Dessa forma, os humanos começam a acreditar que há uma espécie de imaterialidade nesses seres que não manifestam vida. Podemos pensar nisso como a primeiríssima forma de religião: o animismo.

É preciso esclarecer que nunca houve uma religião chamada de animismo, assim como nunca houve outra chamada de politeísmo ou de monoteísmo, porque o termo diz respeito a uma forma, e não um conjunto de doutrinas que sistematizasse um pensamento transcendente. Por isso, podemos prosseguir.

Com o tempo, o pensamento animista foi se dirigindo para formas de canalizar a comunicação com a porção transcendente do mundo circunstante. Afinal de contas, se há uma anima que rege o material, deve ser possível movê-la para um sentido ou para o outro, de modo a influenciar sua atuação. Uma destas formas foi a sintetização em objetos que simbolizavam o espírito que se queria agradar, e nisto nasceram amuletos e talismãs, dentre outros elementos de culto. O objeto em si poderia ser uma escultura de madeira, um sachê de ervas, um conjunto de pedras disposto de maneira específica e assim por diante. Esses objetos, mais tarde conhecidos como fetiches (a mesma raiz etimológica de “feitiço”), deram a origem mais primária aos ídolos, que seriam a representação magnificada da divindade, que davam um conceito mais abrangente ao animismo do pormenor. Dessa forma, o ídolo teria a capacidade de representar com tanto grau de proximidade a transcendência à qual se refere que passa, ele mesmo, a ser sacralizado.

Ocorre que houve um momento tal que esses ídolos foram se identificando cada vez mais aos elementos que distinguem a vida humana, a ponto de se tornarem pessoais. Os ídolos já não são mais representações, mas incorporações de um determinado domínio, e cada uma delas passa a ser, ela própria, uma divindade. Esse seria o que mais tarde ficou conhecido como politeísmo, que ficou eternizado com o paganismo grego. Lá, o trovão em si deixou de ser divinizado, para ser personificado em Zeus, que agora era o regente desse elemento.

Os grandes mecanismos universos, no entanto, parecem ter conduzido a visão de transcendência ainda para outro ponto. Embora catástrofes pudessem ainda denunciar uma espécie de descontentamento divino, o fato é que a harmonia entre os fenômenos dá menos a ideia de uma rivalidade entre deidades, e mais de pensamento unificado, como se uma única mente tivesse orquestrado tudo aquilo que existe. Esse seria o nascedouro do monoteísmo, que, se visto sob um prisma demográfico, é prevalente em boa parte da população mundial.

Pode-se perceber que, ainda que as concepções sobre quantidade e localização das deidades fossem fundamentalmente diferentes, em todas elas temos uma transferência de características humanas. Comunitariamente, projetamos nós mesmos em nossas divindades, dando a elas aspectos humanos. Os deuses podem ser irascíveis, bondosos, piedosos, severos, tudo ao máximo, mas tudo partindo de sentimentos que nós mesmos podemos ter. Não há sentimentos exclusivamente divinos - a diferença está apenas no grau atribuído.

Mas à medida que o tempo avança, avança também a ciência e a tecnologia, bem como os ideais democráticos vão tornando mais e mais antiquada a concepção de um regente universal. Certas concepções divinas vão se tornando mais difusas, onde estas vão tomando um aspecto mais espiritual e menos pessoal, na forma de energia, contrapondo-se à imagem do deus entronizado, semelhantemente ao que acontece com o poder fragmentado nas mãos do povo, como se pudesse ser reconhecido nas pequenas coisas.

A aproximação com uma visão mais científica do que é a divindade é inevitável. As inúmeras explicações conseguidas pela atividade científica despovoam o imaginário das fúrias divinas, e a própria natureza volta a ser reconhecida como força por trás de tudo, já sem o teor divinizante anteriormente atribuído a ela.

Essa corrente de pensamento apareceu bem tardiamente, no momento em que a modernidade impôs a sistematização do conhecimento como ciências, no caso, a antropologia. No auge do surgimento da evolução biológica, outras aplicabilidades para a mesma lógica surgiram, e os pensadores viam que a religião era uma dessas áreas, com Edward Tylor à frente. Sua principal ideia era a de que o pensamento humano tinha uma certa homogeneidade, nascendo de forma semelhante em diferentes culturas e sendo modificado na medida em que as “pressões seletivas” iam moldando-o. Como o homem é mais ou menos uniforme, seu pensamento também o é, e, sendo assim, práticas mais antigas pertenceriam a culturas mais primitivas. O animismo seria o nascedouro de qualquer religião, que evoluiria através da linha imaginada, até chegar ao seu ponto atual.

A questão toda é que guardamos uma visão muito ocidentalizada do que é a religião. Essa linha de animismo-politeísmo-monoteísmo e hipóteses posteriores refletem muito o que ocorreu na Europa e nas suas áreas de influência, mas não dão cabo de uma explicação geral de como se desenrola a antropologia da religião. O grande problema está na cara de “melhoramentos” que a teoria tem, com o politeísmo sendo um aperfeiçoamento do animismo, e o monoteísmo como um aperfeiçoamento do politeísmo, o que não acontece nem na evolução biológica. Minhocas dão origens às sanguessugas, e ambas convivem muito bem, obrigado. Isso se comprova não somente na inversão de ordem que encontramos na formação de religiões não-ocidentais, como na permanência de práticas próximas ao animismo nas ditas religiões modernas.

Um bom exemplo de animismo moderno é o feng shui, que não é propriamente novo, mas que reavivou com muita força a partir dos anos 2000. Posição dos móveis e da própria casa na busca de melhores energias nada mais são do que atribuir aos objetos uma força transcendente.

Há ainda que se pensar no quanto religiões monoteístas ainda carregam boa quota de animismo. São velas, imagens, incensos que são muito assemelhados aos antigos fetiches, porque não só parecem carregar em si um poder mágico, mas também são protegidos pela comunidade que se dirige a eles. Os católicos têm muito disso. Aqui mesmo onde moro, um prédio pertencente a uma ordem religiosa, as velhinhas tem um voto de estar sempre carregando um escapulário, uma espécie de colar contendo um pedaço de feltro com algumas imagens e orações. Elas acreditam que estar com esse objeto na hora da morte lhes garantirá ida sem escala para o céu.  É um desvirtuamento da própria fé cristã, mas o fato é que a Igreja aceita e até incentiva esse tipo de conduta.

Evangélicos dirão: nós não temos essas práticas idólatras. Experimente rasgar uma Bíblia perto de um deles. Objetivamente, é uma resma de papel com tinta, nada mais do que isso, e as palavras lá escritas não se perderão como se perde o exemplar. Mas, no mínimo, te chamarão de satanista ou macumbeiro (que para eles é a mesma coisa).

Tylor não era um cristão que tentava propor os monoteísmos como uma forma mais avançada de religião com relação a outras, muito pelo contrário. Sua intenção era provar que o Cristianismo veio de uma religião mais primitiva, que estaria na base de sua constituição, e que ele não poderia se arrogar o atributo de uma fé pura e original, como é bastante comum que os próprios se insinuem. Entretanto, é o caso flagrante de teoria que só tem importância no contexto histórico, o que já é o bastante para entender como se processa o desenvolvimento das ideias.

Voltando ao mundo imanente, ficamos tão sossegados olhando os pássaros e as pedras que por pouco não perdemos o horário, e lá se iria mais o testemunho de uma minúscula história. Bons ventos a todos!

Recomendações:

As ideias de Tylor praticamente caíram no esquecimento, e por essa razão é muito difícil encontrar traduções diretas de seus livros hoje em dia, razão pela qual indico o compilado de textos abaixo, onde ainda é possível ler alguma coisa direta dele.

CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

 

Quanto ao parque, seguem suas referências.

Parque Carlos Alberto de Souza (Campolim)

Avenida Antônio Carlos Comitre, s/n

Campolim

Sorocaba/SP 

A aproximadamente 105 km do centro de São Paulo 

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