(Não é preciso se incomodar com palavras que parecem ofensas. Às vezes, elas são grandes elogios)
“… ao dizer que a própria palavra ‘metáfora’ é metafórica, na medida em que é emprestada a outra ordem que não a linguagem, antecipamo-nos à teoria posterior; supomos com ela que: 1) a metáfora é um empréstimo; 2) que o sentido emprestado opõe-se ao sentido próprio; 3) que se recorre a metáforas para preencher um vazio semântico; 4) que a palavra emprestada toma o lugar da palavra própria ausente se esta existe”.
Paul Ricoeur
Olá!
Quantas estrelas precisam brilhar para sua glória? Depende
da constelação que você orbita. O futuro a Deus pertence e, portanto, não
pertence a ninguém. Por isso, não dá para saber onde estaremos daqui a quinze,
vinte ou cinquenta anos. É aquela velha história: dizem que quem nasce para
lagartixa nunca chega a jacaré, mas não é assim que funciona. Pequenos
progressos são, ainda assim, progressos. É sempre possível que um momento atual
reflita um ponto de inflexão, de onde as coisas pegarão a ladeira para cima. Mal
comparando, estamos em ano olímpico. É claro que o Brasil-sil-sil não tem como
competir com os grandões, como China e Estados Unidos, mas, se chegar às mesmas
vinte e uma medalhas da última olimpíada, não podemos dizer que terá feito
feio. São duas coisas. Por aqui, as coisas andam lentas mesmo, como bem
sabemos. E, ainda assim, em 76 ganhávamos duas medalhinhas de bronze no mesmo
evento, o que já dava motivos para comemorar. Portanto, é preciso colocar em
ponto de relatividade onde estamos, de onde viemos e para onde vamos.
Faço todo esse périplo que vagueia entre o lirismo barato e
a filosofia de porta de boteco para dizer que, em Taubaté, há um time
tradicional de mesmo nome, representado pelas cores da bandeira da cidade, como
sói acontecer. Comparado com os times da capital, é bastante modesto, estando
fora da primeira divisão paulista há exatos 40 anos, mas, falando da região do
Vale do Paraíba, só tem alguma concorrência na cidade ao lado, São José dos
Campos, bem maior. Mas sua torcida comparece, e é bem representada também no
futebol feminino. Eu vim conhecer um estabelecimento misto, pequeno, mas muito
interessante, que deveria estar entre os principais pontos turísticos da
cidade. É a loja do Burro, mascote do Esporte Clube Taubaté.
Trata-se de uma mascote inusitada, já que se diferencia
definitivamente dos infinitos leões e galos que povoam o imaginário
futebolístico. Se destacou tanto que o próprio Maurício de Souza eternizou sua
versão, em homenagem ao centenário da equipe, em 2014. Mas não é uma origem
meramente jocosa, que tenha nascido de uma ofensa (como o porco do Palmeiras).
Taubaté é terra de tropeiros, aqueles viajantes que se internalizavam no país
para levar víveres e trazer minérios das Minas Gerais. Sua grande ferramenta de
trabalho estava nos burros, mais fortes e resistentes do que os cavalos, além
de se acomodar melhor nos terrenos íngremes das Serras do Mar e da Mantiqueira,
precisamente no entremeio onde a cidade se localiza. Mas há uma história
galhofeira, sim, que envolve o bicho: a escalação de um jogador irregular fez
com que o time perdesse os pontos onde aplicou uma goleada.
A parte da loja é o que se espera: diferentes artigos
relacionados ao esporte em si, como camisas, calções, mochilas, abrigos,
bombetas e meiões.
Há também outros itens, igualmente ligados ao clube, mas
menos relacionados ao futebol em si mesmo, com uma variedade até inesperada
para uma equipe do interior. São carteiras, chaveiros e até uma razoável
cerveja.
A parte mais legal, entretanto, é mesmo o museu. Achei uma
solução inteligente, porque deixa a história da instituição mais exposta a um
público maior, ao invés de somente ficar restrita àqueles que vão ao estádio.
Desta forma, o visitante pode conhecer e se afeiçoar mais a ela, além de ter
subsídios sobre a própria cidade.
Que não se espere uma sala de troféus como a do trio de ferro da Capital, ou mesmo da Vila Belmiro, mas o time tem suas conquistas importantes, inclusive nos primórdios do futebol paulista, quando, aos cinco anos de existência, levou o Campeonato Paulista do Interior de 1919.
Outro registro importante é o conjunto que fala sobre o
título da divisão de acesso de 1979, que contém o próprio troféu, notícias de
jornais locais e a camisa do goleiro Wagner Gão, um dos poucos jogadores do
Taubaté da época de quem eu tenho lembrança, além do quarto-zagueiro Bothu.
Além do Burrinho da Central, há outra caricatura, em homenagem ao ex-presidente Joaquim de Morais Filho. Ele ficou célebre ao ter seu nome atribuído ao estádio do clube, que ficou conhecido como Joaquinzão, com capacidade para quase 10000 torcedores.
Do lado de fora da loja/museu, um conjunto de painéis conta
toda a história do EC Taubaté, contando “causos” e curiosidades.
Não houve esquadrões de renome e projeção nacional, mas alguns
bons jogadores surgiram e passaram por estes gramados, especialmente o
bicampeão mundial Zito e o centroavante Edmar, que, mais tarde, passou por
Palmeiras, Corinthians e seleção brasileira.
Aliás, as visitas dos grandes sempre foram uma atração para toda a cidade, sendo que o maior público da história do Joaquinzão foi uma refrega com o Corinthians, com mais que o dobro da capacidade atual ocupando as arquibancadas. Vejam um cartaz anunciando uma partida contra o São Paulo.
O Taubaté também teve seus dirigentes folclóricos, e isso está exposto no pequeno acervo. Um exemplo é o Dr. João Rachou, que não admitia jogadores que não eram ambidestros no time. Pobre saci.
Por fim, para quem reclama que times como Juventus de Turim
ou Atléticos Paranaense e Goianiense tenham mudado de distintivos, vejam por
quantos o EC Taubaté passou.
Como vocês que me acompanham sabem, eu sou um apreciador do futebol mais miúdo, aquele que se joga fora da tevê e da exposição maciça. Por isso, não poderia deixar de voltar meu olhar para este clube, especialmente estando por aqui a menina mais nova há mais de três anos. Três anos, três camisas que estão no meu acervo.
Retomando a questão do burro. Os mascotes são muito
importantes na vida de uma torcida, porque eles representam uma totalidade, uma
espécie de espírito conjunto de um agrupamento humano como um todo, na mesma senda
por onde andam os
totens. Eles agregam na sua representação todas as virtudes que as pessoas
que lhe compõem têm como preciosas. Por esse motivo, alguns mascotes são mais
esperados e recorrentes que os outros. O leão é quase óbvio, porque representa
a força, a majestade, a imponência e demais que-tais. Por esse motivo, é
adotado por um sem-fim de agremiações, mesmo que seja um bicho que não está em
nossa fauna, como Sport, Vitória, Bragantino, Inter de Limeira, Remo, Avaí,
Fortaleza, Mirassol, Portuguesa (que abandonou uma mascote muito mais
interessante, a dançarina de vira Severa) e um monte de outros. Já o galo é
representante da valentia e da entrega à luta, e é adotado por Atlético-MG,
Paulista de Jundiaí, Ituano, Goiânia, CRB, Treze, Operário-MS e mais outros, na
sua versão galinácea ou da campina. A adoção do burrinho é, portanto, um tanto
polêmica, porque é inevitável que a principal característica que ele evoca é a…
burrice! A assimilação é tão poderosa que você não diz que o leão e leão ou que
o galo é galo, mas você diz que o burro é burro. Você tem o Diogo Cão, o Borba Gato,
o Carlos Roberto Gallo, o Leão Lobo, o Osvaldo Aranha e até o Cipriano Barata,
só que eu nunca ouvi falar de um Antônio Burro, ou um José Asno, seu sinônimo.
Portanto, é um bicho que virou sinônimo de ofensa, punto e finito. Mas
as coisas não são como aparentam, e a discussão sobre as metáforas são muito
mais profundas, o que tornam o Burro da Central um dos mascotes mais criativos
e ousados do Brasil. Vamos ver.
Nós não assumimos um mascote pensando em fazer uma assunção
direta deles, mas do seu pedaço simbólico. Isso é óbvio até. Eu não vou me
vestir de galo ou viver como um leão, mas vou aproveitar o que eles carregam
consigo de virtudes representativas. Nós temos aspectos práticos das palavras
e, da mesma forma, aspectos simbólicos, fazendo da mesma forma que nos atos e
representações da vida. É, nesse sentido, que temos as metáforas.
Ensinam-nos nas escolas que a metáfora é uma figura de
linguagem em que substituímos um termo referencialmente direto por outro,
indireto, através de um ponto de contato em que ambos coincidem. Isso está
correto, mas há uma análise filosófica que vai muito mais profundamente.
Principiando pelo princípio, o que é uma metáfora? A palavra
metáfora quer dizer, em grego, algo como “carregar para além”. Neste caso, o
que é carregado para além? O sentido da palavra ou frase onde ela é aplicada.
Seu uso, notadamente, é poético ou didático. Daí, já podemos perceber sua
utilidade.
O burro, por exemplo. Trata-se de uma inverdade dizer que o
burro é burro. Na acepção da palavra, aquilo que tratamos por burrice é, na
verdade, o estado de ignorância. Provavelmente isso nasceu entre dois fatores:
o fato de que o animal aceita cargas pesadas no lombo em troca de um pouco de
alimento, ou de sua proverbial teimosia. A segunda, contraditoriamente, por
muitas vezes é a defesa que o bicho tem para a primeira, ou seja, empacar é uma
forma de não admitir que seu trabalho lhe seja pesado demais. Ou seja, ser tolo
não é um atributo real do burro, mas uma característica que lhe foi consagrada,
ainda que de maneira injusta.
De toda forma, justa ou injustamente, o burro carrega a
pecha de lhe faltar a inteligência. E isso acaba sendo absorvido e atribuído
para outras ocasiões onde essa mesma característica se apresenta. Sendo assim,
quando queremos dizer que um sujeito qualquer é atoleimado e teimoso, pegamos
emprestados esses tópicos do pobre asinino e aplicamos ao indigitado, nesse
ponto de contato semântico.
Podemos notar que o tolo e o burro possuem traços semânticos
comuns. Pela visão que temos consagrada, ambos são tardos no pensamento, ambos
têm resistência em agir, ambos não medem as consequências de suas ações. Desta
intersecção, nasce o uso comum: fulano é burro.
Isso pode ser aplicado em inúmeros exemplos: flores e
mulheres compactuam beleza, cristais e crianças compactuam fragilidade, cobras
e fofoqueiros compactuam o veneno, e assim por diante. Por vezes, isso ajuda
muito a trazer aspectos conhecidos a elementos desconhecidos, ou a fazer exemplos.
Quando eu digo que “o Oriente Médio é um barril de pólvora”, não estou querendo
dizer que ele é feito de madeira e com um explosivo dentro, mas que um elemento
conhecido, que causa grande estrago e que pode explodir com facilidade,
sintetiza um lugar que não conhecemos, com equilíbrio político e militar
frágil. Essa é a grande força retórica da metáfora.
Como eu disse, está nos manuais da língua esse uso como
figura de retórica, que é o mais evidente e que deve, de fato, ser uma
preocupação educacional. Mas o espírito filosófico exige um pouco mais e é por
isso que podemos imaginar que esse uso semântico só é possível porque existe um
fenômeno ontológico em curso todas as vezes em que elaboramos uma metáfora.
Podemos perceber que o exercício metafórico se dá em um
plano do equívoco. Não no sentido de se enganar, como pareceria, mas de se
estabelecer uma semântica dúbia, que pode carregar mais de um sentido possível.
O sentido lato de uma palavra, uma vez escoado seu aspecto meramente concreto,
deixa restar seus aspectos profundos, divididos. Um sentido é uma junção de
sentidos, e, uma vez devidamente distinguidos, temos um verdadeiro cardápio de
significações, que podem ter seus lugares intercambiados.
É como um camaleão que se traveste da cor de fundo onde está
localizado. Nós somos capazes de mimetizar significados da mesma forma que o
fazemos quando colocamos uma daquelas camisas de recruta, todas manchadas de
camuflagem, com a diferença de que não queremos nos fazer ocultos, mas de
modificar semanticamente um sentido estrito em algo mais extenso. E isso só é
possível porque as coisas têm essências que podem ser mimetizadas. Mimesis
é imitação, e, por esse motivo, podemos falar no tal plano do equívoco. Desta
forma, a poética e a didática da metáfora ganham um fundo mais especulativo,
mais filosófico na acepção da palavra, porque permite entrever um modo de
acesso à ontologia dos objetivos envolvidos.
O lado ontológico de um objeto é como o sumo de uma fruta
espremida até o bagaço. É a essência de um ser e, como tal, a sua “verdade”. Se
pensarmos em termos gramaticais, todos os dados ontológicos de um objeto são
suas predicações. Já na ontologia, o que vemos são características gerais que
fazem que o Ser seja o que ele é. Exemplo bobo: um burrinho pode ter o pelo de
qualquer cor, até mesmo o imaginário azul do Taubaté, mas um dos fatos que o
distingue é a existência de pelos. Se eu disser que é alguém é “um burro de tão
peludo”, teremos uma metáfora torta, mas ainda assim válida. E é essa a
essência que fornece matéria-prima para a formação das metáforas. Não adianta
eu trabalhar com metáforas que não são ontológicas, que não dizem respeito ao
ser de um objeto, porque teremos um erro ou uma falsificação.
O efeito mimético diz respeito a isso. Uma mimese é um
“roubo” de características de um objeto por outro, que só é possível porque
duas concessões são feitas: a ambiguidade dos termos e a transgressão
categorial que a mesma possibilita. Em miúdos, isso significa que a existência
de termos essenciais que possam ser intercambiados possibilita que uma
característica seja tomada pela outra. Nossa, nem eu me entendi. Vamos para o
exemplo então.
Se eu digo, camonianamente, que o amor é fogo que arde sem
se ver, devo assumir que, entre o amor e o fogo há uma ontologia em comum: uma
espécie de sofrimento intenso. Ela é ambígua, porque, enquanto esse sentimento
é desejável no amor, no fogo ele é físico, e dor de fato. Com essa equivocidade,
temos uma mudança de categoria - no sentido lato, o ardor do fogo é ruim, mas
no amor ele “aquece”, consome. Por outro lado, o amor não tem características
físicas, então como pode arder? É que ele produz sensações psíquicas confusas -
por vezes é uma escravidão que prende ao amado de tal forma que parece sufocar,
e, nesse sentido, é indissociável da dor, seu habitual oposto.
Sendo assim, porque existe a ambiguidade, é possível mudar a
categoria do termo, transferindo, nesse exemplo, uma característica
intrinsecamente sensorial para outra completamente abstrata, independente dos
sentidos físicos. E isso nos dá a dimensão de como o plano ontológico é
complexo, como não se trata de um mero elenco de características gerais de um
objeto qualquer. Se esse intercâmbio não é possível, não estamos descendo a
esse nível.
Percebem que a metáfora, dessa forma, se torna mais adequada
para expressar do que qualquer descrição científica? Isso ocorre porque
transferimos algo do âmbito concreto para uma conceituação que não tem
equivalente no sensório, e por isso a metáfora é mais que uma mera figura de
linguagem, e vai muito além de uma simples força expressiva.
E é exatamente nisso que o burro é mais legal do que
qualquer leão. Ele conta história, ele demonstra força e ele é do Taubaté, sua
metáfora perfeita quando vista pelo lado certo. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Tomei muita base no escrito abaixo para basear as ideias que
expressei neste texto:
RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Loyola,
2000
E a loja do Burro fica dentro de um shopping, no seguinte
endereço:
Loja e museu do burro
Av. Dom Pedro I, 7181
Jardim Baronesa
Taubaté/SP
A aproximadamente 135 Km do centro de São Paulo
*Acabei de ganhar mais uma, desta vez como presente de
aniversário. É a camisa com a qual o Taubaté disputou a mais recente série A2
do Campeonato Paulista.