Marcadores

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Navegações de cabotagem – a Loja do Burro de Taubaté e a metáfora para além da figura de retórica

(Não é preciso se incomodar com palavras que parecem ofensas. Às vezes, elas são grandes elogios)

“… ao dizer que a própria palavra ‘metáfora’ é metafórica, na medida em que é emprestada a outra ordem que não a linguagem, antecipamo-nos à teoria posterior; supomos com ela que: 1) a metáfora é um empréstimo; 2) que o sentido emprestado opõe-se ao sentido próprio; 3) que se recorre a metáforas para preencher um vazio semântico; 4) que a palavra emprestada toma o lugar da palavra própria ausente se esta existe”.

Paul Ricoeur

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Quantas estrelas precisam brilhar para sua glória? Depende da constelação que você orbita. O futuro a Deus pertence e, portanto, não pertence a ninguém. Por isso, não dá para saber onde estaremos daqui a quinze, vinte ou cinquenta anos. É aquela velha história: dizem que quem nasce para lagartixa nunca chega a jacaré, mas não é assim que funciona. Pequenos progressos são, ainda assim, progressos. É sempre possível que um momento atual reflita um ponto de inflexão, de onde as coisas pegarão a ladeira para cima. Mal comparando, estamos em ano olímpico. É claro que o Brasil-sil-sil não tem como competir com os grandões, como China e Estados Unidos, mas, se chegar às mesmas vinte e uma medalhas da última olimpíada, não podemos dizer que terá feito feio. São duas coisas. Por aqui, as coisas andam lentas mesmo, como bem sabemos. E, ainda assim, em 76 ganhávamos duas medalhinhas de bronze no mesmo evento, o que já dava motivos para comemorar. Portanto, é preciso colocar em ponto de relatividade onde estamos, de onde viemos e para onde vamos.

Faço todo esse périplo que vagueia entre o lirismo barato e a filosofia de porta de boteco para dizer que, em Taubaté, há um time tradicional de mesmo nome, representado pelas cores da bandeira da cidade, como sói acontecer. Comparado com os times da capital, é bastante modesto, estando fora da primeira divisão paulista há exatos 40 anos, mas, falando da região do Vale do Paraíba, só tem alguma concorrência na cidade ao lado, São José dos Campos, bem maior. Mas sua torcida comparece, e é bem representada também no futebol feminino. Eu vim conhecer um estabelecimento misto, pequeno, mas muito interessante, que deveria estar entre os principais pontos turísticos da cidade. É a loja do Burro, mascote do Esporte Clube Taubaté.

Trata-se de uma mascote inusitada, já que se diferencia definitivamente dos infinitos leões e galos que povoam o imaginário futebolístico. Se destacou tanto que o próprio Maurício de Souza eternizou sua versão, em homenagem ao centenário da equipe, em 2014. Mas não é uma origem meramente jocosa, que tenha nascido de uma ofensa (como o porco do Palmeiras). Taubaté é terra de tropeiros, aqueles viajantes que se internalizavam no país para levar víveres e trazer minérios das Minas Gerais. Sua grande ferramenta de trabalho estava nos burros, mais fortes e resistentes do que os cavalos, além de se acomodar melhor nos terrenos íngremes das Serras do Mar e da Mantiqueira, precisamente no entremeio onde a cidade se localiza. Mas há uma história galhofeira, sim, que envolve o bicho: a escalação de um jogador irregular fez com que o time perdesse os pontos onde aplicou uma goleada.

A parte da loja é o que se espera: diferentes artigos relacionados ao esporte em si, como camisas, calções, mochilas, abrigos, bombetas e meiões.

Há também outros itens, igualmente ligados ao clube, mas menos relacionados ao futebol em si mesmo, com uma variedade até inesperada para uma equipe do interior. São carteiras, chaveiros e até uma razoável cerveja.

A parte mais legal, entretanto, é mesmo o museu. Achei uma solução inteligente, porque deixa a história da instituição mais exposta a um público maior, ao invés de somente ficar restrita àqueles que vão ao estádio. Desta forma, o visitante pode conhecer e se afeiçoar mais a ela, além de ter subsídios sobre a própria cidade.

Que não se espere uma sala de troféus como a do trio de ferro da Capital, ou mesmo da Vila Belmiro, mas o time tem suas conquistas importantes, inclusive nos primórdios do futebol paulista, quando, aos cinco anos de existência, levou o Campeonato Paulista do Interior de 1919.

Outro registro importante é o conjunto que fala sobre o título da divisão de acesso de 1979, que contém o próprio troféu, notícias de jornais locais e a camisa do goleiro Wagner Gão, um dos poucos jogadores do Taubaté da época de quem eu tenho lembrança, além do quarto-zagueiro Bothu.


Além do Burrinho da Central, há outra caricatura, em homenagem ao ex-presidente Joaquim de Morais Filho. Ele ficou célebre ao ter seu nome atribuído ao estádio do clube, que ficou conhecido como Joaquinzão, com capacidade para quase 10000 torcedores.

Do lado de fora da loja/museu, um conjunto de painéis conta toda a história do EC Taubaté, contando “causos” e curiosidades.

Não houve esquadrões de renome e projeção nacional, mas alguns bons jogadores surgiram e passaram por estes gramados, especialmente o bicampeão mundial Zito e o centroavante Edmar, que, mais tarde, passou por Palmeiras, Corinthians e seleção brasileira.


Aliás, as visitas dos grandes sempre foram uma atração para toda a cidade, sendo que o maior público da história do Joaquinzão foi uma refrega com o Corinthians, com mais que o dobro da capacidade atual ocupando as arquibancadas. Vejam um cartaz anunciando uma partida contra o São Paulo.


O Taubaté também teve seus dirigentes folclóricos, e isso está exposto no pequeno acervo. Um exemplo é o Dr. João Rachou, que não admitia jogadores que não eram ambidestros no time. Pobre saci.

Por fim, para quem reclama que times como Juventus de Turim ou Atléticos Paranaense e Goianiense tenham mudado de distintivos, vejam por quantos o EC Taubaté passou.


Como vocês que me acompanham sabem, eu sou um apreciador do futebol mais miúdo, aquele que se joga fora da tevê e da exposição maciça. Por isso, não poderia deixar de voltar meu olhar para este clube, especialmente estando por aqui a menina mais nova há mais de três anos. Três anos, três camisas que estão no meu acervo.

Retomando a questão do burro. Os mascotes são muito importantes na vida de uma torcida, porque eles representam uma totalidade, uma espécie de espírito conjunto de um agrupamento humano como um todo, na mesma senda por onde andam os totens. Eles agregam na sua representação todas as virtudes que as pessoas que lhe compõem têm como preciosas. Por esse motivo, alguns mascotes são mais esperados e recorrentes que os outros. O leão é quase óbvio, porque representa a força, a majestade, a imponência e demais que-tais. Por esse motivo, é adotado por um sem-fim de agremiações, mesmo que seja um bicho que não está em nossa fauna, como Sport, Vitória, Bragantino, Inter de Limeira, Remo, Avaí, Fortaleza, Mirassol, Portuguesa (que abandonou uma mascote muito mais interessante, a dançarina de vira Severa) e um monte de outros. Já o galo é representante da valentia e da entrega à luta, e é adotado por Atlético-MG, Paulista de Jundiaí, Ituano, Goiânia, CRB, Treze, Operário-MS e mais outros, na sua versão galinácea ou da campina. A adoção do burrinho é, portanto, um tanto polêmica, porque é inevitável que a principal característica que ele evoca é a… burrice! A assimilação é tão poderosa que você não diz que o leão e leão ou que o galo é galo, mas você diz que o burro é burro. Você tem o Diogo Cão, o Borba Gato, o Carlos Roberto Gallo, o Leão Lobo, o Osvaldo Aranha e até o Cipriano Barata, só que eu nunca ouvi falar de um Antônio Burro, ou um José Asno, seu sinônimo. Portanto, é um bicho que virou sinônimo de ofensa, punto e finito. Mas as coisas não são como aparentam, e a discussão sobre as metáforas são muito mais profundas, o que tornam o Burro da Central um dos mascotes mais criativos e ousados do Brasil. Vamos ver.

Nós não assumimos um mascote pensando em fazer uma assunção direta deles, mas do seu pedaço simbólico. Isso é óbvio até. Eu não vou me vestir de galo ou viver como um leão, mas vou aproveitar o que eles carregam consigo de virtudes representativas. Nós temos aspectos práticos das palavras e, da mesma forma, aspectos simbólicos, fazendo da mesma forma que nos atos e representações da vida. É, nesse sentido, que temos as metáforas.

Ensinam-nos nas escolas que a metáfora é uma figura de linguagem em que substituímos um termo referencialmente direto por outro, indireto, através de um ponto de contato em que ambos coincidem. Isso está correto, mas há uma análise filosófica que vai muito mais profundamente.

Principiando pelo princípio, o que é uma metáfora? A palavra metáfora quer dizer, em grego, algo como “carregar para além”. Neste caso, o que é carregado para além? O sentido da palavra ou frase onde ela é aplicada. Seu uso, notadamente, é poético ou didático. Daí, já podemos perceber sua utilidade.

O burro, por exemplo. Trata-se de uma inverdade dizer que o burro é burro. Na acepção da palavra, aquilo que tratamos por burrice é, na verdade, o estado de ignorância. Provavelmente isso nasceu entre dois fatores: o fato de que o animal aceita cargas pesadas no lombo em troca de um pouco de alimento, ou de sua proverbial teimosia. A segunda, contraditoriamente, por muitas vezes é a defesa que o bicho tem para a primeira, ou seja, empacar é uma forma de não admitir que seu trabalho lhe seja pesado demais. Ou seja, ser tolo não é um atributo real do burro, mas uma característica que lhe foi consagrada, ainda que de maneira injusta.

De toda forma, justa ou injustamente, o burro carrega a pecha de lhe faltar a inteligência. E isso acaba sendo absorvido e atribuído para outras ocasiões onde essa mesma característica se apresenta. Sendo assim, quando queremos dizer que um sujeito qualquer é atoleimado e teimoso, pegamos emprestados esses tópicos do pobre asinino e aplicamos ao indigitado, nesse ponto de contato semântico.

Podemos notar que o tolo e o burro possuem traços semânticos comuns. Pela visão que temos consagrada, ambos são tardos no pensamento, ambos têm resistência em agir, ambos não medem as consequências de suas ações. Desta intersecção, nasce o uso comum: fulano é burro.

Isso pode ser aplicado em inúmeros exemplos: flores e mulheres compactuam beleza, cristais e crianças compactuam fragilidade, cobras e fofoqueiros compactuam o veneno, e assim por diante. Por vezes, isso ajuda muito a trazer aspectos conhecidos a elementos desconhecidos, ou a fazer exemplos. Quando eu digo que “o Oriente Médio é um barril de pólvora”, não estou querendo dizer que ele é feito de madeira e com um explosivo dentro, mas que um elemento conhecido, que causa grande estrago e que pode explodir com facilidade, sintetiza um lugar que não conhecemos, com equilíbrio político e militar frágil. Essa é a grande força retórica da metáfora.

Como eu disse, está nos manuais da língua esse uso como figura de retórica, que é o mais evidente e que deve, de fato, ser uma preocupação educacional. Mas o espírito filosófico exige um pouco mais e é por isso que podemos imaginar que esse uso semântico só é possível porque existe um fenômeno ontológico em curso todas as vezes em que elaboramos uma metáfora.

Podemos perceber que o exercício metafórico se dá em um plano do equívoco. Não no sentido de se enganar, como pareceria, mas de se estabelecer uma semântica dúbia, que pode carregar mais de um sentido possível. O sentido lato de uma palavra, uma vez escoado seu aspecto meramente concreto, deixa restar seus aspectos profundos, divididos. Um sentido é uma junção de sentidos, e, uma vez devidamente distinguidos, temos um verdadeiro cardápio de significações, que podem ter seus lugares intercambiados.

É como um camaleão que se traveste da cor de fundo onde está localizado. Nós somos capazes de mimetizar significados da mesma forma que o fazemos quando colocamos uma daquelas camisas de recruta, todas manchadas de camuflagem, com a diferença de que não queremos nos fazer ocultos, mas de modificar semanticamente um sentido estrito em algo mais extenso. E isso só é possível porque as coisas têm essências que podem ser mimetizadas. Mimesis é imitação, e, por esse motivo, podemos falar no tal plano do equívoco. Desta forma, a poética e a didática da metáfora ganham um fundo mais especulativo, mais filosófico na acepção da palavra, porque permite entrever um modo de acesso à ontologia dos objetivos envolvidos.

O lado ontológico de um objeto é como o sumo de uma fruta espremida até o bagaço. É a essência de um ser e, como tal, a sua “verdade”. Se pensarmos em termos gramaticais, todos os dados ontológicos de um objeto são suas predicações. Já na ontologia, o que vemos são características gerais que fazem que o Ser seja o que ele é. Exemplo bobo: um burrinho pode ter o pelo de qualquer cor, até mesmo o imaginário azul do Taubaté, mas um dos fatos que o distingue é a existência de pelos. Se eu disser que é alguém é “um burro de tão peludo”, teremos uma metáfora torta, mas ainda assim válida. E é essa a essência que fornece matéria-prima para a formação das metáforas. Não adianta eu trabalhar com metáforas que não são ontológicas, que não dizem respeito ao ser de um objeto, porque teremos um erro ou uma falsificação.

O efeito mimético diz respeito a isso. Uma mimese é um “roubo” de características de um objeto por outro, que só é possível porque duas concessões são feitas: a ambiguidade dos termos e a transgressão categorial que a mesma possibilita. Em miúdos, isso significa que a existência de termos essenciais que possam ser intercambiados possibilita que uma característica seja tomada pela outra. Nossa, nem eu me entendi. Vamos para o exemplo então.

Se eu digo, camonianamente, que o amor é fogo que arde sem se ver, devo assumir que, entre o amor e o fogo há uma ontologia em comum: uma espécie de sofrimento intenso. Ela é ambígua, porque, enquanto esse sentimento é desejável no amor, no fogo ele é físico, e dor de fato. Com essa equivocidade, temos uma mudança de categoria - no sentido lato, o ardor do fogo é ruim, mas no amor ele “aquece”, consome. Por outro lado, o amor não tem características físicas, então como pode arder? É que ele produz sensações psíquicas confusas - por vezes é uma escravidão que prende ao amado de tal forma que parece sufocar, e, nesse sentido, é indissociável da dor, seu habitual oposto.

Sendo assim, porque existe a ambiguidade, é possível mudar a categoria do termo, transferindo, nesse exemplo, uma característica intrinsecamente sensorial para outra completamente abstrata, independente dos sentidos físicos. E isso nos dá a dimensão de como o plano ontológico é complexo, como não se trata de um mero elenco de características gerais de um objeto qualquer. Se esse intercâmbio não é possível, não estamos descendo a esse nível.

Percebem que a metáfora, dessa forma, se torna mais adequada para expressar do que qualquer descrição científica? Isso ocorre porque transferimos algo do âmbito concreto para uma conceituação que não tem equivalente no sensório, e por isso a metáfora é mais que uma mera figura de linguagem, e vai muito além de uma simples força expressiva.

E é exatamente nisso que o burro é mais legal do que qualquer leão. Ele conta história, ele demonstra força e ele é do Taubaté, sua metáfora perfeita quando vista pelo lado certo. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Tomei muita base no escrito abaixo para basear as ideias que expressei neste texto:

RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Loyola, 2000

 

E a loja do Burro fica dentro de um shopping, no seguinte endereço:

Loja e museu do burro

Av. Dom Pedro I, 7181

Jardim Baronesa

Taubaté/SP

A aproximadamente 135 Km do centro de São Paulo

 

*Acabei de ganhar mais uma, desta vez como presente de aniversário. É a camisa com a qual o Taubaté disputou a mais recente série A2 do Campeonato Paulista.



quinta-feira, 6 de junho de 2024

Navegações de cabotagem – a Colônia Witmarsum de Palmeira originando pensamentos sobre plus valia

(Até que ponto trabalhamos para nós mesmos?)

“Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. Ele não pode obter um sem abrir mão do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco a seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertence ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia de força de trabalho; a ele pertence, portanto, o valor de uso dessa força de trabalho durante um dia, isto é, o trabalho de uma jornada”.

Marx

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Quando pensamos em grandes cidades, logo vem em mente, por consequência, as cidades-satélites, que são aquelas que orbitam ao redor de um grande centro. Lembrando de Rio e São Paulo, os extremos chegam a ponto de haver geógrafos que entendem que ambas as regiões metropolitanas se tocam, de forma a constituir uma megalópole.

Em Curitiba, a coisa não chega a tanto. Como o Vale do Ribeira é mais preservado e menos desenvolvido que o Vale do Paraíba, não há uma ligação tão evidente quanto no caminho que liga Rio e São Paulo. Quem vai pela Dutra, não percebe claros tão grandes quanto quem vai pela Régis, e isso faz com que ambas as metrópoles sejam mais isoladas. Mas, ainda assim, Curitiba é uma grande metrópole, que tem seus satélites. Algumas são cidades altamente industrializadas, enquanto outras mantêm um ar tipicamente rural. E ainda dentro dessas há daquelas comunidades que possuem características absolutamente próprias, fazendo com que se tornem únicas. É o caso da Colônia Witmarsum, de quem tratarei agora.

A Colônia é um distrito do município de Palmeira, para onde migraram agricultores de origem alemã de religião menonita, uma classificação de igreja protestante que fez o protesto dentro do protesto. Explico melhor. Os menonitas são anabatistas, crentes que acreditam que o batismo realizado em crianças não tem valor, porque não se trata de uma escolha própria. Sendo assim, os anabatistas fazem o rebatismo de seus fiéis, para que o sacramento tenha efeitos concretos. A igreja menonita é o centro para onde converge todo o bairro.

Por conta de sua doutrina, os menonitas conseguiram a proeza de desagradar tanto os católicos, quanto os protestantes tradicionais, e foram perseguidos por ambos. Isso fez com que se desse uma busca pelo isolamento, o que levou a uma comunidade muito fechada, de alta manutenção da própria cultura. Por esse motivo, os elementos de origem alemã estão espalhados por toda a parte.

Eles se estabeleceram de forma a trabalhar a terra com as técnicas que conheciam, dada a aproximação climática desta região paranaense dos Campos Gerais com a ambientação temperada do centro europeu.

O nome Witmarsum, em língua germânica, significa “estrela azul”. Poderia ser estendido para o azul do céu local, resplandecente naquele dia.

A colônia se juntou em torno de uma cooperativa, que dá conta da maior parte da produção agrícola e de muitos produtos típicos que tem pegado um certo renome. Como são oriundos da Alemanha, há os artigos que são muito próprios daquela cultura, como é a óbvia cerveja.

Mas também existem itens que não são muito comuns em Terra Brasilis. É muito utilizado o ruibarbo, planta típica das margens do Rio Volga, de difícil preparo, dada a toxicidade de suas folhas, mas com sabor bem próprio em seus talos. Aqui, são consumidos in natura ou na forma de chás, ou ainda em preparados de frutas, como geleias.

Aliás, aqui temos a oportunidade única de “enfrentar” a culinária alemã, com seus porcos, linguiças e curtidos. Eu, particularmente, me divirto até os extremos com essas comidas que fogem do dia-a-dia, e com as cores e sabores que se apresentam nas mesas tipicamente fartas dos europeus.

São de fato vários os locais que reproduzem esse conjunto, mesmo com o distanciamento razoável que não estamos acostumados nas cidades maiores. Aqui há um misto de comida e repouso, propício para quem não vai comer pouco.


Outro atrativo culinário que atrai bastante gente são os cafés coloniais, típicos da região Sul. São diversos pães e massas que se alternam com inesperadas salsichas e outros embutidos, incluindo também culinárias da Itália, da Espanha e de Portugal.

Aqui, uma reminiscência infantil. Meu avô tinha uma minúscula oficina eletrônica, e a dona da garagem que ele alugava era a Kathi, uma alemã legítima, que nos enchia de doces mergulhados no mel todas as vezes em que os fazia. Vinha no pratinho com papel amarrado com um barbante, que meu avô, pouco diligente, fazia chegar todo melecado em casa. O cheiro dessas casas recende a esses dias. 

Por fim, há as casas de “badulaques”, que não são badulaques, mas delicadas peças que são verdadeiras obras de arte, como esses relógios cuco de parede.

O lugar é lindo. Parece que estamos em uma vila europeia, com todos os lugares bem cuidados, jardinagem em dia e limpeza impecável. A comida é convidativa e dá gosto de se entrar nas lojinhas em geral. Mas tudo é caro, muito caro. Dificilmente se come com menos de cem moedas a cabeça, o café colonial é na faixa dos cinquentinha e os artigos para venda custam um rim. Os tais dos cucos são todos acima de 700 reais, o que não é qualquer dinheiro, convenhamos, mesmo que efetivamente valham isso.

E aí gente se põe a pensar: não sei se o esquema de cooperativa funciona ainda, se se aplica somente à produção agrícola ou se também o pequeno comércio está sob regime de cooperação. De toda forma, penso se todo o fluxo de mercadorias tem algum reflexo no bolso dos funcionários ou se temos o mesmo tradicional funcionamento das redes de alimentação das grandes cidades. Sabemos que os preços, nesse caso, não se refletem no bolso da brigada.

É assim que funciona o mercado, e eu não vou me imiscuir em temas que entendo muito pouco. Mas eu vejo muita gente dizendo que isso é o mais-valia que os marxistas tanto se apegam, que a diferença que iria para o bolso do trabalhador vai direto para o bolso do proprietário, e que a tal mais-valia expressa o tamanho do lucro. Não é bem assim, e cumpre falar sobre o tema, especialmente porque “O Capital” é uma obra muito extensa, mesmo se devidamente fatiada, e para compreendê-la bem é preciso paciência e, especialmente, espírito livre.

Primeiramente, vamos fazer aquele velho disclaimer. Este ensaio vai falar sobre marxismo, e isso não significa que vai enaltecê-lo, mas esclarecê-lo, nos limites deste humilde escriba, porque vou tratar de um termo onde há confusão. A coisa chegou a um ponto de que as diferentes teses que são elaboradas atualmente sobre Marx terem estabelecido a distinção “marxista”, quando se refere a adeptos das ideias do alemão, e “marxiano”, quando a intenção é se referir ao conjunto filosófico do mesmo pensador. Portanto, estar escrevendo sobre um conceito de Marx não significa que eu seja ou não seja marxista, mas que trato de filosofia, e, por isso, não posso deixar de lado temas importantes que o abordem. Se quiserem contestar, os comentários estão aí, desde que se faça de maneira respeitosa, combinado?

Falei um pouco sobre valor de uso e valor de troca neste post, e só vou repassar rapidinho o tema. Nós usamos as coisas, e isso lhes dá um valor, porque elas são importantes e precisamos delas. Entretanto, esse valor não as põe em condições de serem comercializadas, porque há um outro valor, mais abstrato, que é o valor que tal coisa tem perante a sociedade, e que chamamos de valor de troca. Eu posso amar de paixão meu velho violãozinho, onde aprendi meus primeiros acordes, e, para mim, seu valor é inestimável, mas não consigo pagar o precitado café colonial se eu tentar vendê-lo, tão fodido deteriorado que se encontra. O valor de troca se originou há muito tempo atrás, quando o nascente comércio era feito na base do escambo, palavra esta um sinônimo de troca. Mercadorias muito diferentes eram trocadas entre si, sem qualquer correlação quantitativa, como, por exemplo, trocar vinte quilos de batata por dois metros de tecido.

Ok, compreendemos que mercadorias diferentes compartilham valores de troca, cada um em sua proporção. Mas o que faz com que uma sociedade determine o valor de troca de cada uma delas?

Pensemos assim: uma florzinha ordinária que eu colha de um terreno baldio não dá trabalho algum e qualquer um pode fazer o mesmo. Já uma flor plantada em uma estufa, que pode florescer em qualquer época do ano, com cuidados de adubação e proteção de pragas, que fica acondicionada em local ideal para mantê-la madura por mais tempo e assim por diante, envolve muito mais trabalho, e, naturalmente, as pessoas reconhecem e valorizam o esforço aplicado naquele produto. Há diferenciais: maior frescor, disponibilidade imediata, perfeição formal, e via discorrendo. Por isso, seu valor de troca faz sentido. Sendo assim, essa flor possuirá um valor de troca que é igual ao valor de troca de outro produto qualquer, e seus produtores poderiam fazer o intercâmbio de modo socialmente aceito. Quando toda a sociedade consagra esses valores, eles ganham aspecto simbólico e podem ser substituídos por moedas. E assim nos aproximamos da realidade que temos até hoje.

Pois bem. Se estamos entendendo que o que iguala o valor de troca entre duas mercadorias absolutamente diferentes é a quantidade de trabalho socialmente aceito, então podemos concluir que a força de trabalho é um dos componentes centrais na formação de um preço. Ocorre que o trabalhador, nessa relação de insumos, é o único elemento que caracteriza a mercadoria como tal, porque nada pode ser considerado mercadoria se não há alguma forma de trabalho humano aplicada a ela. Se está solta na natureza e posso pegá-la a qualquer hora, não é mercadoria.

Enfim, podemos compreender que a principal mercadoria é a que menos nos damos conta que existe quando olhamos para uma: a força de trabalho. É a única que a imensa maioria tem ao seu dispor para entrar no mercado. Ela tem uma condição especial, que podemos aplicar ao raciocínio anterior: se todo valor de troca se baseia no trabalho aplicado à matéria-prima, é com a mercadoria força de trabalho que se tem a fonte dos valores de mercado. Afinal, não dissemos que é o valor do trabalho aplicado que iguala as mercadorias das mãos distintas mercadorias? Portanto, não é uma mercadoria que possui só seu próprio valor, mas a característica de produzir mais valores.

Ocorre que, quando um empresário contrata mão de obra, vai pagá-la por um valor determinado. Comprou a mercadoria que é a força de trabalho de uma pessoa, a sua capacidade de produzir valor, e vai consumi-la até o ponto em que o trabalhador já terá suprido sua própria manutenção. Mas o consumo dessa mercadoria não para nesse ponto. Ela continuará, para além do que custa o trabalhador, e seu trabalho começará a multiplicar os valores do dono dos meios de produção. O seu expediente é vendido por oito horas, mas quatro horas seriam suficientes para suprir suas necessidades. O que vai além disso é usado para gerar mais e mais valor ao capitalista que investe. Isso é o conceito de mais-valia, ou, na forma latina que prefiro, de plus valia.

Por que a plus valia não é simplesmente um dos fatores do lucro? Porque o capitalismo possui um caráter auto-expansivo, isso é intrínseco a ele. O aumento de produção é um dos focos não somente para o consequente aumento da lucratividade, mas para que se aumente a participação no mercado. Isso tudo se procura obter através de dois caminhos: um aumento na quantidade do tempo trabalhado ou na diminuição do tempo necessário para a obtenção da mercadoria. O primeiro é o plus valia absoluto e o segundo é o plus valia relativo.

O plus valia absoluto, como é fácil de entrever, é o aumento do número de horas exercidas pelo trabalhador. Vamos começar nos lembrando que se vivia em uma época com uma legislação trabalhista praticamente inexistente, com os empregos sendo oferecidos com baixa proteção e quase nenhuma possibilidade de negociação. Portanto, a jornada de trabalho era uma questão arbitrária. Se o trabalhador do exemplo cumpria quatro horas para suas necessidades e outras quatro para produzir mercadorias que não lhe aumentavam os ganhos, com a extensão da jornada esse acréscimo se tornava ainda maior.

Já o plus valia relativo depende de um aperfeiçoamento das tecnologias que permitem que a produtividade se amplifique sem haver correspondência nos ganhos do funcionário. Imagine uma máquina que permitisse produzir cinco bolas por hora e passe a produzir dez. Em uma mesma jornada de trabalho, um trabalhador produziria o dobro do que foi contratado, sem que, no entanto, isso reflita dinheiro no seu bolso.

Aqui, poderíamos pensar que a assertiva sobre o plus valia ser sinônimo de lucro se completa, e podemos tirar uma bela soneca após um almoço tão opíparo. Mas se a coisa se limitasse a isso, teríamos uma situação permanente que nos manteria no momento da análise marxiana: no século XIX. Se o plus valia fosse a remuneração de um magnata, ele seria mais e mais ostentoso, enquanto sua fábrica ficaria envelhecida e ultrapassada tecnologicamente. Mas o que ocorre de fato é a retroalimentação do capital. É preciso que haja reinvestimento no próprio negócio, caso contrário a chance de se sucumbir à concorrência, um dos pilares do capitalismo, é praticamente inexorável. Aquele que não conseguir dar conta de se sustentar perante os concorrentes é engolido por eles, fazendo com que o capital se acumule nas mãos de cada vez menos milionários, estes cada vez mais ricos. Evidentemente, estamos falando do contexto do século XIX, mas é acaso que conglomerados tão gigantes venham se formando por todo o mundo? Não sei dizer, mas o fenômeno foi detectado e parece fazer sentido.

O plus valia é, portanto, o tanto de trabalho que se extrai de um operário, camponês ou qualquer outro produtor para fazer girar a roda do capital. Se trabalhasse para si mesmo, o trabalhador teria muito mais retorno das mercadorias nas mãos. Como não tem, o operário se aliena do fruto do seu trabalho, mas toda a estrutura que sustenta essa realidade vai ser analisada em outro momento, embora tenha dado alguma pinceladinha neste post.

Em conclusão, não conheço os sistemas de cooperação que existem neste lugar. Eu gostaria muito que fosse um modelo a ser aplicado ao mundo, que refletisse no bem-estar de cada um o fruto do seu trabalho, que pudesse ser um espelho onde nos enxergássemos menos sozinhos, mas acho que estou sendo um pouco utópico. Isso juntaria a beleza do lugar com a beleza de sua sociedade. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Para não ter que ler a volumosa obra de Marx, é possível começar pelo resumo feito pelo seu amigo de longa data, Engels. Segue a indicação.

ENGELS, Friedrich. Resumo de O Capital. São Paulo: Boitempo, 2023.

E alguns dados da Colônia em si mesma.

Colônia Witmarsum

Palmeira - PR

A aproximadamente 490 Km do centro de São Paulo