(Até que ponto trabalhamos para nós mesmos?)
“Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. Ele não pode obter um sem abrir mão do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco a seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertence ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia de força de trabalho; a ele pertence, portanto, o valor de uso dessa força de trabalho durante um dia, isto é, o trabalho de uma jornada”.
Marx
Olá!
Quando pensamos em grandes cidades, logo vem em mente, por
consequência, as cidades-satélites, que são aquelas que orbitam ao redor de um
grande centro. Lembrando de Rio e São Paulo, os extremos chegam a ponto de
haver geógrafos que entendem que ambas as regiões metropolitanas se tocam, de
forma a constituir uma megalópole.
Em Curitiba, a coisa não chega a tanto. Como o Vale do
Ribeira é mais preservado e menos desenvolvido que o Vale do Paraíba, não há
uma ligação tão evidente quanto no caminho que liga Rio e São Paulo. Quem vai
pela Dutra, não percebe claros tão grandes quanto quem vai pela Régis, e isso
faz com que ambas as metrópoles sejam mais isoladas. Mas, ainda assim, Curitiba
é uma grande metrópole, que tem seus satélites. Algumas são cidades altamente
industrializadas, enquanto outras mantêm um ar tipicamente rural. E ainda
dentro dessas há daquelas comunidades que possuem características absolutamente
próprias, fazendo com que se tornem únicas. É o caso da Colônia Witmarsum, de
quem tratarei agora.
A Colônia é um distrito do município de Palmeira, para onde
migraram agricultores de origem alemã de religião menonita, uma classificação
de igreja protestante que fez o protesto dentro do protesto. Explico melhor. Os
menonitas são anabatistas, crentes que acreditam que o batismo realizado em
crianças não tem valor, porque não se trata de uma escolha própria. Sendo
assim, os anabatistas fazem o rebatismo de seus fiéis, para que o sacramento
tenha efeitos concretos. A igreja menonita é o centro para onde converge todo o
bairro.
Por conta de sua doutrina, os menonitas conseguiram a proeza
de desagradar tanto os católicos, quanto os protestantes tradicionais, e foram
perseguidos por ambos. Isso fez com que se desse uma busca pelo isolamento, o
que levou a uma comunidade muito fechada, de alta manutenção da própria
cultura. Por esse motivo, os elementos de origem alemã estão espalhados por
toda a parte.
Eles se estabeleceram de forma a trabalhar a terra com as
técnicas que conheciam, dada a aproximação climática desta região paranaense
dos Campos Gerais com a ambientação temperada do centro europeu.
O nome Witmarsum, em língua germânica, significa “estrela
azul”. Poderia ser estendido para o azul do céu local, resplandecente naquele
dia.
A colônia se juntou em torno de uma cooperativa, que dá
conta da maior parte da produção agrícola e de muitos produtos típicos que tem pegado
um certo renome. Como são oriundos da Alemanha, há os artigos que são muito
próprios daquela cultura, como é a óbvia cerveja.
Mas também existem itens que não são muito comuns em Terra
Brasilis. É muito utilizado o ruibarbo, planta típica das margens do Rio Volga,
de difícil preparo, dada a toxicidade de suas folhas, mas com sabor bem próprio
em seus talos. Aqui, são consumidos in natura ou na forma de chás, ou ainda em
preparados de frutas, como geleias.
Aliás, aqui temos a oportunidade única de “enfrentar” a
culinária alemã, com seus porcos, linguiças e curtidos. Eu, particularmente, me
divirto até os extremos com essas comidas que fogem do dia-a-dia, e com as
cores e sabores que se apresentam nas mesas tipicamente fartas dos europeus.
São de fato vários os locais que reproduzem esse conjunto,
mesmo com o distanciamento razoável que não estamos acostumados nas cidades
maiores. Aqui há um misto de comida e repouso, propício para quem não vai comer
pouco.
Outro atrativo culinário que atrai bastante gente são os cafés coloniais, típicos da região Sul. São diversos pães e massas que se alternam com inesperadas salsichas e outros embutidos, incluindo também culinárias da Itália, da Espanha e de Portugal.
Aqui, uma reminiscência infantil. Meu avô tinha uma
minúscula oficina eletrônica, e a dona da garagem que ele alugava era a Kathi,
uma alemã legítima, que nos enchia de doces mergulhados no mel todas as vezes
em que os fazia. Vinha no pratinho com papel amarrado com um barbante, que meu
avô, pouco diligente, fazia chegar todo melecado em casa. O cheiro dessas casas
recende a esses dias.
Por fim, há as casas de “badulaques”, que não são
badulaques, mas delicadas peças que são verdadeiras obras de arte, como esses
relógios cuco de parede.
O lugar é lindo. Parece que estamos em uma vila europeia, com todos os lugares bem cuidados, jardinagem em dia e limpeza impecável. A comida é convidativa e dá gosto de se entrar nas lojinhas em geral. Mas tudo é caro, muito caro. Dificilmente se come com menos de cem moedas a cabeça, o café colonial é na faixa dos cinquentinha e os artigos para venda custam um rim. Os tais dos cucos são todos acima de 700 reais, o que não é qualquer dinheiro, convenhamos, mesmo que efetivamente valham isso.
E aí gente se põe a pensar: não sei se o esquema de
cooperativa funciona ainda, se se aplica somente à produção agrícola ou se
também o pequeno comércio está sob regime de cooperação. De toda forma, penso
se todo o fluxo de mercadorias tem algum reflexo no bolso dos funcionários ou
se temos o mesmo tradicional funcionamento das redes de alimentação das grandes
cidades. Sabemos que os preços, nesse caso, não se refletem no bolso da
brigada.
É assim que funciona o mercado, e eu não vou me imiscuir em
temas que entendo muito pouco. Mas eu vejo muita gente dizendo que isso é o
mais-valia que os marxistas tanto se apegam, que a diferença que iria para o
bolso do trabalhador vai direto para o bolso do proprietário, e que a tal
mais-valia expressa o tamanho do lucro. Não é bem assim, e cumpre falar sobre o
tema, especialmente porque “O Capital” é uma obra muito extensa, mesmo se
devidamente fatiada, e para compreendê-la bem é preciso paciência e,
especialmente, espírito livre.
Primeiramente, vamos fazer aquele velho disclaimer.
Este ensaio vai falar sobre marxismo, e isso não significa que vai enaltecê-lo,
mas esclarecê-lo, nos limites deste humilde escriba, porque vou tratar de um
termo onde há confusão. A coisa chegou a um ponto de que as diferentes teses
que são elaboradas atualmente sobre Marx terem estabelecido a distinção
“marxista”, quando se refere a adeptos das ideias do alemão, e “marxiano”,
quando a intenção é se referir ao conjunto filosófico do mesmo pensador.
Portanto, estar escrevendo sobre um conceito de Marx não significa que eu seja
ou não seja marxista, mas que trato de filosofia, e, por isso, não posso deixar
de lado temas importantes que o abordem. Se quiserem contestar, os comentários
estão aí, desde que se faça de maneira respeitosa, combinado?
Falei um pouco sobre valor de uso e valor de troca neste
post, e só vou repassar rapidinho o tema. Nós usamos as coisas, e isso lhes
dá um valor, porque elas são importantes e precisamos delas. Entretanto, esse
valor não as põe em condições de serem comercializadas, porque há um outro
valor, mais abstrato, que é o valor que tal coisa tem perante a sociedade, e
que chamamos de valor de troca. Eu posso amar de paixão meu velho violãozinho,
onde aprendi meus primeiros acordes, e, para mim, seu valor é inestimável, mas
não consigo pagar o precitado café colonial se eu tentar vendê-lo, tão fodido
deteriorado que se encontra. O valor de troca se originou há muito tempo atrás,
quando o nascente comércio era feito na base do escambo, palavra esta um sinônimo
de troca. Mercadorias muito diferentes eram trocadas entre si, sem qualquer
correlação quantitativa, como, por exemplo, trocar vinte quilos de batata por
dois metros de tecido.
Ok, compreendemos que mercadorias diferentes compartilham
valores de troca, cada um em sua proporção. Mas o que faz com que uma sociedade
determine o valor de troca de cada uma delas?
Pensemos assim: uma florzinha ordinária que eu colha de um
terreno baldio não dá trabalho algum e qualquer um pode fazer o mesmo. Já uma
flor plantada em uma estufa, que pode florescer em qualquer época do ano, com
cuidados de adubação e proteção de pragas, que fica acondicionada em local
ideal para mantê-la madura por mais tempo e assim por diante, envolve muito
mais trabalho, e, naturalmente, as pessoas reconhecem e valorizam o esforço
aplicado naquele produto. Há diferenciais: maior frescor, disponibilidade
imediata, perfeição formal, e via discorrendo. Por isso, seu valor de
troca faz sentido. Sendo assim, essa flor possuirá um valor de troca que é
igual ao valor de troca de outro produto qualquer, e seus produtores poderiam
fazer o intercâmbio de modo socialmente aceito. Quando toda a sociedade
consagra esses valores, eles ganham aspecto simbólico e podem ser substituídos
por moedas. E assim nos aproximamos da realidade que temos até hoje.
Pois bem. Se estamos entendendo que o que iguala o valor de
troca entre duas mercadorias absolutamente diferentes é a quantidade de
trabalho socialmente aceito, então podemos concluir que a força de trabalho é
um dos componentes centrais na formação de um preço. Ocorre que o trabalhador,
nessa relação de insumos, é o único elemento que caracteriza a mercadoria como
tal, porque nada pode ser considerado mercadoria se não há alguma forma de
trabalho humano aplicada a ela. Se está solta na natureza e posso pegá-la a
qualquer hora, não é mercadoria.
Enfim, podemos compreender que a principal mercadoria é a
que menos nos damos conta que existe quando olhamos para uma: a força de
trabalho. É a única que a imensa maioria tem ao seu dispor para entrar no
mercado. Ela tem uma condição especial, que podemos aplicar ao raciocínio
anterior: se todo valor de troca se baseia no trabalho aplicado à
matéria-prima, é com a mercadoria força de trabalho que se tem a fonte dos
valores de mercado. Afinal, não dissemos que é o valor do trabalho aplicado que
iguala as mercadorias das mãos distintas mercadorias? Portanto, não é uma
mercadoria que possui só seu próprio valor, mas a característica de produzir
mais valores.
Ocorre que, quando um empresário contrata mão de obra, vai
pagá-la por um valor determinado. Comprou a mercadoria que é a força de
trabalho de uma pessoa, a sua capacidade de produzir valor, e vai consumi-la
até o ponto em que o trabalhador já terá suprido sua própria manutenção. Mas o
consumo dessa mercadoria não para nesse ponto. Ela continuará, para além do que
custa o trabalhador, e seu trabalho começará a multiplicar os valores do dono
dos meios de produção. O seu expediente é vendido por oito horas, mas quatro
horas seriam suficientes para suprir suas necessidades. O que vai além disso é
usado para gerar mais e mais valor ao capitalista que investe. Isso é o
conceito de mais-valia, ou, na forma latina que prefiro, de plus valia.
Por que a plus valia não é simplesmente um dos fatores do
lucro? Porque o capitalismo possui um caráter auto-expansivo, isso é intrínseco
a ele. O aumento de produção é um dos focos não somente para o consequente
aumento da lucratividade, mas para que se aumente a participação no mercado.
Isso tudo se procura obter através de dois caminhos: um aumento na quantidade
do tempo trabalhado ou na diminuição do tempo necessário para a obtenção da
mercadoria. O primeiro é o plus valia absoluto e o segundo é o plus
valia relativo.
O plus valia absoluto, como é fácil de entrever, é o aumento
do número de horas exercidas pelo trabalhador. Vamos começar nos lembrando que se
vivia em uma época com uma legislação trabalhista praticamente inexistente, com
os empregos sendo oferecidos com baixa proteção e quase nenhuma possibilidade
de negociação. Portanto, a jornada de trabalho era uma questão arbitrária. Se o
trabalhador do exemplo cumpria quatro horas para suas necessidades e outras
quatro para produzir mercadorias que não lhe aumentavam os ganhos, com a
extensão da jornada esse acréscimo se tornava ainda maior.
Já o plus valia relativo depende de um aperfeiçoamento das
tecnologias que permitem que a produtividade se amplifique sem haver
correspondência nos ganhos do funcionário. Imagine uma máquina que permitisse
produzir cinco bolas por hora e passe a produzir dez. Em uma mesma jornada de
trabalho, um trabalhador produziria o dobro do que foi contratado, sem que, no
entanto, isso reflita dinheiro no seu bolso.
Aqui, poderíamos pensar que a assertiva sobre o plus valia
ser sinônimo de lucro se completa, e podemos tirar uma bela soneca após um
almoço tão opíparo. Mas se a coisa se limitasse a isso, teríamos uma situação
permanente que nos manteria no momento da análise marxiana: no século XIX. Se o
plus valia fosse a remuneração de um magnata, ele seria mais e mais ostentoso,
enquanto sua fábrica ficaria envelhecida e ultrapassada tecnologicamente. Mas o
que ocorre de fato é a retroalimentação do capital. É preciso que haja
reinvestimento no próprio negócio, caso contrário a chance de se sucumbir à
concorrência, um dos pilares do capitalismo, é praticamente inexorável. Aquele
que não conseguir dar conta de se sustentar perante os concorrentes é engolido
por eles, fazendo com que o capital se acumule nas mãos de cada vez menos
milionários, estes cada vez mais ricos. Evidentemente, estamos falando do
contexto do século XIX, mas é acaso que conglomerados tão gigantes venham se
formando por todo o mundo? Não sei dizer, mas o fenômeno foi detectado e parece
fazer sentido.
O plus valia é, portanto, o tanto de trabalho que se extrai
de um operário, camponês ou qualquer outro produtor para fazer girar a roda do
capital. Se trabalhasse para si mesmo, o trabalhador teria muito mais retorno
das mercadorias nas mãos. Como não tem, o operário se aliena do fruto do seu
trabalho, mas toda a estrutura que sustenta essa realidade vai ser analisada em
outro momento, embora tenha dado alguma pinceladinha neste
post.
Em conclusão, não conheço os sistemas de cooperação que
existem neste lugar. Eu gostaria muito que fosse um modelo a ser aplicado ao
mundo, que refletisse no bem-estar de cada um o fruto do seu trabalho, que
pudesse ser um espelho onde nos enxergássemos menos sozinhos, mas acho que
estou sendo um pouco utópico. Isso juntaria a beleza do lugar com a beleza de
sua sociedade. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Para não ter que ler a volumosa obra de Marx, é possível
começar pelo resumo feito pelo seu amigo de longa data, Engels. Segue a
indicação.
ENGELS, Friedrich. Resumo de O Capital. São Paulo:
Boitempo, 2023.
E alguns dados da Colônia em si mesma.
Colônia Witmarsum
Palmeira - PR
A aproximadamente 490 Km do centro de São Paulo
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