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segunda-feira, 13 de março de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – Epílogo: Somos nossa consciência e a natureza que nos compõe

(A natureza não estará fora de nós quando compreendermos que ela é indissociável de nós mesmos)

Olá!

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Eis que mais um ciclo de viagens acaba. Eu não concentrei renda para viajar para fora do país, nem mesmo para as praias paradisíacas do Nordeste, ou as bucólicas paisagens da faixa central, ou até mesmo as oníricas serras vinícolas do Sul. Todos esses adjetivos que só usamos nessas ocasiões podem ser usados para as cidadezinhas por onde passei no último mês de novembro, na semana do feriado da Proclamação? Fica a critério do freguês, como eu costumo pensar. Fiquei novamente por aqui perto, em um raio de 250 Km, o que traz um custo mais baixo, um tempo de deslocamento menor, certa facilidade de retorno. Enfim, para uma extensão mal programada do que já é minha vida, é o que era factível para aquele momento. Fui para o Sul de Minas, onde já estive outras duas vezes (aqui e aqui) e ainda por onde dei umas andejadas avulsas. Para mim, é excelente, porque são cidades que combinam paz real com beleza, mesmo que simples. Dadas as condições que me são dadas, está para lá de bom. 


Os verdes mares de onde não há mar... Minas não tem fronteira com o Oceano Atlântico, mas isso não lhe tira nenhum pedaço, especialmente porque possui um mar de morros recobertos pelo verde e pelo clima ameno. Mantive meu costume de filosofar por lá, às vezes anotando uma inspiração nessa agenda virtual que é o celular, às vezes refletindo a posteriori, observando novamente as fotos que tirei. E sempre tem um epílogo para colocar ponto final no conjunto da obra, exatamente este que lhes apresento agora. Normalmente, destaco um ponto excepcional ou monto uma costura com pontos em comum, exatamente como agora. Há uma diferença fundamental nos momentos em que viajamos para o meio natural, a tal da integração com a natureza. É uma afirmativa meio pretensiosa, do tipo mística, que supõe uma possibilidade de que poderíamos buscar uma reaproximação alla Diógenes, o cão, com o meio natural que nos moldou como somos, um animal em meio a outros. Fique dois dias e meio sem internet e você verá se tem alguma vocação para viver em ambiente distante das urbanescências. Não digo que não é possível, e nem quero me desviar do assunto. É que, mesmo no mais moderno dos arranha-céus dos países do Oriente Médio, há um ser que vive e que foi moldado por influência da realidade que o cerca, mormente pela própria natureza que parece tão distante.

Discussões sobre o meio natural e o meio cultural são comuns no meio filosófico, e eu mesmo já dei meus pitacos sobre o distanciamento que existe entre ambos. Mas será que essa separação é real? Mais ainda: é possível pensar em uma espécie de substância que una o que é propriamente humano de tudo aquilo que não tem consciência?

Esse tipo de pensamento bate na gente quando passeamos por esses estados intermediários entre natureza intocada e produção humana. De fato, quando atravessamos essas estradas, algo exemplarmente de manufatura humana, temos a oportunidade de observar e conviver com culturas plantadas, exemplificadas aqui pelo café, pelo milho e etc, e o que ainda resta de originário nas magníficas montanhas da Mantiqueira, praticamente sem intervenções. E vemos que há uma certa semelhança - ambas possuem uma espécie de linha guia. Tanto a cultura com a mão humana quanto a sem intervenção é regida por ciclos de nascimento e morte, e neste intervalo parece que mesmo a mais inanimada das matérias sabe exatamente o que fazer, como se as plantas conhecessem o caminho das águas, que por sua vez segue os cursos necessários para chegar onde deve, a pedra sabe que deve rolar até o fundo dos vales porque é lá que elas ficarão estáveis, como se as coisas possuíssem uma… inteligência!

É claro que uma informação dessa parece cercada de um esoterismo que beira a loucura, mas, se colocarmos as coisas como o Deus que Espinoza pensou, que foi do agrado até de gente fraquinha como Albert Einstein, parece que pode fazer mais sentido, e vamos buscá-lo no idealismo alemão, com Schelling.

O que divide ser humano e natureza? É que o "eu", aquele que percebe o mundo, aquele que interpreta a natureza, que deduz o universo que o cerca, precisa possuir uma consciência, e isso só nós temos, os caniços pensantes. Mas essa divisão fica alocada apenas no plano do reconhecimento em si, porque o humano não existe fora da natureza. O meio natural é o substrato, o caminho físico por onde a consciência se realiza. A distinção mais essencial está nisso.

Mas se a consciência é parte da natureza, por que se vê como distinta dela? É aí que entra o conceito de Espírito (Geist), tão caro à tríade idealista, que ainda conta com Fichte e, principalmente, Hegel.

Quando se fala em Espírito neste contexto, não devemos pensar em uma sinonímia com alma, o que é nossa intuição inicial. O Espírito no idealismo é uma espécie de impulso que é responsável por empurrar a história para a frente. O Espírito é o fundamento da razão, que é a única instância capaz de fornecer sentido para toda a realidade que existe. Nada existe se não estiver apresentado para uma consciência, e, com isso, temos que toda a realidade é subjetiva. Dessa forma, o Espírito é uma instância metafísica que justifica as coisas como são. Há quem faça a identificação do espírito com deus, como diz Schopenhauer ao afirmar que nada mais é do que uma “impessoalização” de uma divindade, mas essa não é uma crítica, uma relação obrigatória, mesmo que aceitável. O que o Idealismo pensa é que esse geist é uma capacidade de realização que a mente tem diante de sua colocação perante um objeto. Esse conceito surge como solução para o criticismo kantiano, que estabelecia ser impossível conhecer o que as coisas são em si mesmas, já que todo conhecimento é subjetivo e depende do aporte de cada consciência individualmente.

Há duas coisas aqui a sopesar: a natureza existe independentemente de uma consciência que a observa, mas só ganha sentido a partir do momento em que é observada por uma consciência. Mas o seu funcionamento demonstra que ela não é movida por pura aleatoriedade. Poderíamos pensar que qualquer coisa seria factível em um universo entregue ao deus-dará, mas não é o que se vê acontecer. Existe uma ordem natural que limita os acontecimentos em uma determinada faixa de escopos cada vez mais previsíveis, à medida que o conhecimento e a ciência avançam. Isso significa que a natureza, embora não possua um estatuto da consciência, tem um caminho que demonstra sua inteligência. Não quer dizer que a pedra sabe que deve rolar para o fundo do vale porque lá sedimentará e trará estabilidade ao sistema fluvial, mas porque o mesmo geist que faz o homem detectar essa dinâmica do equilíbrio, faz com que essa mesma dinâmica ocorra. Só não há consciência nas coisas.

Schelling afirma que a natureza é um processo contínuo e com uma linha evolucionária, com um ápice semelhante à scala naturae do velho Aristóteles, que dizia existir uma rota que conduzia dos seres mais brutos (incluindo os inanimados) até o apogeu humano, permeado por uma causa final. Aqui, entretanto, há o tal geist a orquestrar esse caminho, que é orgânico e permanente, e onde o ponto final é a fusão do Espírito com a matéria, formando o Absoluto. Esse termo foi reaproveitado por Hegel em sua própria filosofia, embora com algum nível de diferenças, e sintetiza a ideia schellinguiana de que a natureza humana só difere das demais porque é uma natureza que se tornou consciente.

Fichte trazia uma clara distinção em sua filosofia entre o Eu-puro e o não-eu, sendo que o primeiro era o que realmente importava, o máximo da subjetividade. Schelling procura corrigir esse rumo que tornava a natureza como algo descartável na relação epistemológica, pois entendia que a mente não flutuava solta como se lhe fosse dispensável uma matéria por onde ela tinha uma base. Essa base é a natureza, e tinha a mesma atividade pura que Fichte atribuía ao Eu-puro como caminho para o conhecimento: na medida em que o Eu absorve o não-eu, ele mesmo se avoluma. Já com Schelling, a natureza não é única e exclusivamente o não-eu. Ela tem uma capacidade de se mesclar e imiscuir mutuamente e compartilhar o Espírito. Estar banhada em materialidade faz com que a natureza seja a visibilidade do Espírito, enquanto o Espírito é o provedor da inteligência da natureza. Uma estrutura tão organizada como a natureza não é explicável sem uma inteligência por trás dela (segundo Schelling), que lhe dá força de coesão e direção evolutiva. E temos o Espírito que dá sentido e consciência ao Eu, que não pertence ao círculo físico da natureza. Ambos, uma vez colocados em funcionamento, dirigem Espírito e Natureza ao Absoluto, a fusão entre ideal e real. Em resumo, temos, por um lado, o ideal que detecta a realidade no Espírito, e o real que delineia as ideias na Natureza. O produto, a realidade, é o Absoluto. Dessa forma, de acordo com o sistema pensado pelo filósofo alemão, não é ilícito que sintamos a natureza como parte de nós mesmos e que doemos a ela um sentido que pareceria romântico a um materialista puro.

O Idealismo é, provavelmente, o movimento que trouxe a Alemanha em definitivo à crista da onda filosófica, em tese somente sendo comparáveis com os antigos gregos. Entretanto, ao contrário de Sócrates e sua trupe, que tinham um princípio pedagógico de se fazer entender, os tedescos não parecem muito preocupados em ser didáticos, e são dificílimos de serem alcançados. Entretanto, são parte significativa da história da filosofia e é necessário fazer-se esforço para compreendê-los. Até mesmo porque suas respostas são válidas para que encaremos o desafio de destrinchar o mundo que nos cerca. E ele é bonito, muito bonito.

Deixo vocês com meus escritos, espero que tirem proveitos deles, e que se sintam impulsionados por seus próprios espíritos idealistas para visitar esses lugares tão simples e belos, e lá encontrem também suas motivações para enxergar o que vai além da casca de aparências que é apresentada a nossas consciências. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Não gosto muito de recomendar diretamente obras difíceis, mas também não podemos simplesmente fugir delas. Vou deixar a indicação aqui, mas é sempre bom estar acompanhado por escritos de comentadores.

SHELLING, Friedrich. Ideias para uma Filosofia da Natureza. Lisboa: Casa da Moeda, 2001.

E recomendo também uma passagem por todas as cidades que tratei nestes textos. Segue a distância de cada um delas com relação ao centro da cidade de São Paulo.

Ouro Fino – 224 km

Santa Rita do Sapucaí – 223 Km

Congonhal – 224 Km

Borda da Mata – 236 Km

Tocos do Moji – 195 Km

Bom Repouso – 183 Km

Bueno Brandão – 166 Km

Inconfidentes – 235 Km

Conceição dos Ouros – 235 Km

Consolação – 174 Km

Cachoeira de Minas – 227 Km

Senador José Bento – 243 Km

Pouso Alegre – 210 Km

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