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segunda-feira, 27 de março de 2023

A gangorra que inicia a despedida: os cuidados de uma grande escola para não entrar no esquecimento

(E a Vai-Vai, hein? Vai ou fica? Tem muita coisa social para dar a resposta)

Olá!

Como sabem aqueles que me leem, eu moro no centro de São Paulo, onde há imenso fluxo de pessoas durante a semana, e um processo de desertificação a partir do sábado à tarde, e assim fica até o rolar das portas de ferro na manhã de segunda-feira. Não tenho ficado muito tempo em casa, mas pude notar que, desde o final do ano retrasado, a movimentação no domingo está incomum. Cinco horas da tarde já deveria estar tudo às moscas, mas olho pela janela e vejo minha rua lotada. Deve ser alguma novidade do pastor da esquina, cri eu. Mas a repetição nos fins de semana seguintes e um som de batuque ao fundo obviamente me demonstraram que o fenômeno era outro. E a história é a seguinte: a Vai-Vai, uma das maiores escolas de samba da Paulicéia Desvairada, perdeu o direito que tinha de fazer seus ensaios no Bixiga, seu local de origem, porque lá será construída uma estação de metrô (linha laranja - estação 14-Bis), bem em cima de sua quadra, em claro desrespeito às suas raízes, mas como a questão é de transporte público, a defesa fica muito mais difícil. Para sobreviver, conseguiram que o Sindicato dos Bancários cedesse sua quadra para que pudessem tocar a vida, e essa quadra fica na saída da minha rua. Eu gosto de Carnaval e fiquei contente, mesmo com os protestos e esconjuros dos catolicíssimos moradores do meu prédio. Afinal, estamos no Advento e precisamos nos preparar para ficar tristes. A história se repetiu esse ano, mas não acontecerá no ano que vem, já que os bancários resolveram vender sua quadra para que - pasmem - seja construído mais um empreendimento imobiliário nesta cidade cada vez mais difícil de viver.

São Paulo encara o Carnaval de maneira diferente ao que ocorre no Rio de Janeiro, o grande referencial quando o assunto é desfile. Lá, todo mundo tem duas agremiações para torcer: o time de futebol e a escola de samba, com a combinação Flamengo-Mangueira sendo a mais frequente de todas. Essa maneira de encarar o Carnaval, mais o enorme nível de sofisticação alcançado nos desfiles, fez com que a torcida transcendesse as comunidades onde as escolas se localizam. Essa distinção clara não acontece em São Paulo. Desde a década de 90, os desfiles passaram a contar com escolas de samba oriundas de torcidas de futebol, começando pela Gaviões da fiel e sendo acrescida por Mancha Verde e Dragões da Real, que já chegaram ao grupo principal, com a estreia da Independente Tricolor ao mesmo nicho e que vem sendo seguidas por Camisa 12, Torcida Jovem, TUP e outras evoluções dos blocos que estão se transformando em escolas. O movimento parece inevitável e irreversível, porque o aporte financeiro é significativo e a adesão é grande, dada a vinculação com torcidas.

Pelo fato de eu ser corintiano, pode-se pensar que eu tenha apreço pela Gaviões ou pela 12, mas não. Em primeiro, são escolas de torcida, e, como eu já disse aqui, eu não torço pela torcida, mas pelo time. Depois, embora eu não pertença à comunidade do Bixiga, eu sempre simpatizei pela Vai-Vai. Mas havia, sim, uma conexão com o Corinthians nessa história: as cores preta e branca. De resto, ia até a Vila Matilde para assistir os ensaios da Nenê, e a escola do bairro em que morava era a Príncipe Negro, hoje na Cidade Tiradentes, longe de seu lugar original, onde hoje fica a Avenida Anhaia Melo e suas agências, ainda que na mesma imensa Zona Leste.

Passa por perrengues, a agremiação saracura*. Essa história vem desde a década de 2000, quando, por força de medida judicial, não pode mais ensaiar nas ruas do entorno de sua acanhada sede. Entretanto, o apego ao bairro fez com que eles lutassem por se manter no local. A desapropriação foi, porém, um tiro de misericórdia. Uma nova quadra, dizem, vai ser construída nas redondezas, ainda na Bela Vista, e prometem uma nova arena para fazer apresentações extracarnaval. A ver.

O problema maior da Vai-Vai certamente não está na questão da quadra, porém. Há muita desorganização administrativa em um meio que exige cada vez maior profissionalismo, e há uma batalha judicial que vem se arrastando há tempos pelo poder, que culminou com a inédita queda para o segundo grupo em 2019. É bem verdade que a reação foi a altura, com o regresso triunfal já no ano seguinte, mas com nova queda em 2022 e nova ascensão em 2023, o que lhe coloca a incômoda pecha de “escola ioiô”. Foi assim que se iniciaram as derrocadas de outras escolas igualmente tradicionais, como a Nenê de Vila Matilde e Unidos do Peruche, que passeiam hoje em dia pelas divisões inferiores. A alternância de divisões é um fantasma que campeia pelo cemitério do esquecimento.

A Vai-Vai tem força e tradição para manter sua grandiosidade, mas é preciso ter os pés no chão. É a última escola de ponta atual da zona central da cidade, e precisa lutar para não perder relevância, como ocorreu com a Lavapés, ou até mesmo ser extinta, como a Paulistano da Glória. Só que a própria desapropriação de sua quadra não ajuda em nada, porque demonstra que a cidade em si dá mais importância a outras coisas que não são sua existência. Talvez não enxerguem o que há de história por trás dela.

Quando falamos sobre a Lavapés e a Paulistano, não é pouca coisa que está por trás de ambas. Uma é a maior campeã dos desfiles dos primeiros tempos, a outra foi o cavalo de batalha do maior criador de sambas-enredo de São Paulo, Geraldo Filme. Vou dar uma pincelada rápida em ambas, começando pela última.

O Paulistano da Glória tinha esse nome por conta de sua localização, na tradicional Rua da Glória, hoje reduto oriental em São Paulo, que é daquelas ruas cujos postes foram transformados em luminárias japonesas. Parece estranha a localização, mas o fato é que o bairro da Liberdade era um dos principais redutos negros de São Paulo antes do espalhamento nipônico. Inclusive, seu nome se deve aos movimentos antiescravagistas dos fins do século XIX, e lá ficava uma das cadeias destinadas especialmente aos negros que aguardavam sua condenação. O Paulistano, antes de ser uma escola de samba, foi um dos principais salões de baile do centro, e seu principal sustentáculo. Originalmente nascido para proporcionar lazer ao operariado da região, lá ocorriam bailes carnavalescos que eram comuns até a década de 70. Eu mesmo lembro que minha mãe me levava nas matinês de um clube no Brás, pelos lados da Silva Teles, mas não tenho a menor condição de lembrar o nome. Íamos em tropa, com os primos que moravam na região. Eu costumava começar contrariado, meio de saco cheio com as pinturas de barquinho espalhadas pelo corpo e um chapéu de jornal na cabeça, mas na hora da farra, de jogar confete e correr atrás de serpentina, eu me divertia à beça. O Paulistano era um desses, só que de porte maior, muito mais famoso que os salõezinhos de bairro. Desses bailes, surgiu um cordão carnavalesco que virou escola de samba. Durou pouco, com cada vez menos integrantes, principalmente após a perda do salão, a sua origem, o que fez a escola ficar sem lastro. Em um momento onde a Rua da Glória ia ficando mais e mais dirigida para a cultura oriental, a escola enrolou seu pavilhão e foi para a história***. Restaram as composições de Geraldo Filme, provavelmente o mais importante dos autores paulistanos e, de longe, a parte mais memorável e competitiva da Paulistano eram exatamente suas letras. Compôs também para a Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Colorado do Brás e Unidos do Peruche. Sua principal característica era trazer enredos de cunho social que passeavam pela sua própria biografia, como no samba "Batuque em Pirapora", onde relata sua exclusão logo na infância e seu batizado na roda de samba.

Já a Lavapés tem uma história que transitou do apogeu para a obscuridade. Ela ficava localizada na Baixada do Glicério, um lugar tão tradicional quanto Mooca, Brás, Barra Funda, mas que nunca deixou de ser pobre. Como ficava nos baixios alagáveis do Rio Tamanduateí, só se submetia a morar ali quem não tinha outra possibilidade, negros à frente. Até hoje a região é muito pobre, embora o processo de verticalização que vem sofrendo certamente fará o perfil mudar futuramente, mais uma vez com a formação de uma classe média (ainda que baixa) e afastamento das comunidades negras para a periferia.

Quem passa pelo Glicério atentamente, verá que ainda restam muitas casinhas térreas, daquelas sem garagem e sem quintal, cuja porta já desemboca direto na sala do contribuinte. É por entre elas que surgiu a Lavapés, escola de samba que leva o nome da rua que nasce do desembocadouro da Rua do Glicério e que leva o fluxo até o Cambuci, no caminho para o Ipiranga. Nos tempos em que a condição de várzea afastava investimentos, havia espaço suficiente para que a escola de samba pudesse realizar ensaios e armazenar materiais. Só que o terreno que lhes servia de quadra, guarnecido por um pequeno arvoredo, virou um daqueles prédios como o registro da Saudosa Maloca: o progresso atropelando histórias e espaços. Os ensaios passaram a ser feitos na rua mesmo, e o armazém dos instrumentos e fantasias era a casa dos dirigentes, com a perda de recursos e integrantes cada vez maior. Estava em funcionamento ainda mais por conta da teimosia de sua presidente Rose, neta da fundadora da agremiação, Madrinha Eunice.

Recentemente, a escola ganhou um novo fôlego, pela sua associação com o Instituto Pirata Negro, comandado pelo ator Ailton Graça. Foi o jeito de se salvar a Lavapés, mas a um custo alto: a mudança de sede para a Zona Sul, lá pela região de Americanópolis. Desde então, a escola vem novamente subindo pelas divisões, e este ano ascendeu ao Grupo Especial de Bairros, anterior aos desfiles no sambódromo. Sendo assim, que seja assim, mas há coisas a observar.

Quem transita pelos entornos do Glicério e da Várzea do Carmo, percebe facilmente um dos mais claros muros imaginários da cidade de São Paulo. A Rua Conselheiro Furtado divide o bairro da Liberdade em dois: a parte alta, onde ficam os orientais, com a feirinha, os festivais, as lojas típicas, os cosplayers e o metrô; no rumo da baixada, o comércio miúdo, os botequins calcanhar-rachado, as moradias deterioradas, os gatos, os cortiços, a violência, em uma densidade cada vez mais apertada. Quando se fala em Liberdade, logo se pensa na região de cima, nunca na baixada, justamente onde ainda estão suas raízes mais profundas. Entretanto, ao se chegar na região vizinha, na Várzea do Carmo, notam-se alguns terrenos imensos, alguns dos quais onde se começam a construir empreendimentos imobiliários, sempre eles. Será que seria tão imensamente caro reservar alguns metros quadrados, até mesmo com contrapartidas, para que a Lavapés pudesse ter uma quadra na região? Não estamos falando de qualquer coisa: é simplesmente a mais antiga escola de samba ainda em atividade na cidade de São Paulo. É história pura do município, e qualquer pessoa que quiser compreender as manifestações culturais desta terra esbarrará na escola vermelha e branca. Ao invés disso, a prefeitura faz uma estátua em tamanho real da Madrinha Eunice e a coloca na praça da Liberdade. É uma homenagem válida, mas injusta, porque não tem efeitos práticos. Uma pessoa que a veja pode se interessar pelas histórias que tem para contar, mas onde está a escola? A uns trinta quilômetros dali, em um bairro que nada tem a ver com sua origem. Repito: não tenho nada contra a mudança de endereço da Lavapés, mas ao desmonte das raízes de São Paulo como um todo, especialmente dos contos proletários, dos quais os negros são indissociáveis. Tenho certeza absoluta de que o Instituto não se negaria a manter a parceria caso fosse possível manter uma estrutura mínima para sua manutenção em seu local de origem, até mesmo porque uma de suas bases é preservar o que ainda resta de elementos da história negra de São Paulo.

Isso tudo é um aviso para a Vai-Vai. O Bixiga está para a Bela Vista como o Glicério está para a Liberdade, e isso indica que a rota do fracasso já está bem desenhada, e nem sempre se encontrará um padrinho disposto ao mecenato, só restando o esquecimento, como se deu com a Paulistano da Glória. Se eles pretendem se manter em uma posição digna, sabem que não podem contar com a vontade pública da cidade. A memória de uma agremiação antiga e campeã não é suficiente para mantê-la, como comprova o caso da Lavapés. Será melhor acertar suas diferenças e procurar caminhos para sua própria preservação.

Eu não sei como fazer isso, mas gostaria muito que aqueles que influenciam nesses destinos saibam e ajam. Bons ventos a todos!

Recomendações:

A primeira é fazer uma visita à própria Vai-Vai, especialmente quando começarem os ensaios para o desfile do próximo Carnaval. A diferença de ver um ensaio ao vivo é semelhante a assistir um jogo na televisão e no estádio. Recomendaria a quadra da Vai-Vai, mas ela não há. Portanto, o ideal é acompanhar suas redes sociais ou seu site, que é o seguinte:

https://vaivai.com.br/

Com relação à Lavapés, há um belíssimo documentário disponível no YouTube contando não só suas origens, mas toda uma análise sociológica ao redor da escola.

ANDRÉ, Carminda et al (Grupo de Pesquisa Performatividades e Pedagogias). Lavapés: Ancestralidade e Permanência. Filme. São Paulo, 2017. 57 min. Cor.

Por fim, uma recomendação para lá de lateral. É o livro de HQ Paulistano da Glória, que de comum com a escola só tem o nome e o jogo de palavras, mas que é bem interessante e vale a pena ser conhecido.

OLIVEIRA, Carlos A.P (Xalberto) et al. O Paulistano da Glória. São Paulo: Via Lettera, 2004.

* Esse apelido se deve ao fato de sua sede tradicional localizar-se às margens do que era o rio Saracura, hoje soterrado pela Avenida Nove de Julho

** Pelo que eu consegui averiguar, hoje há um mercadinho chinês onde ficava o salão, mas esta não é uma afirmação totalmente confiável.

 *** Recentemente, uma nova escola adotou esse nome, lá pelos lados da Vila Ré, o que me tentaria a dizer que é mais uma comprovação do fenômeno de êxodo do centro aqui descrito, mas não há nenhuma correlação entre ambas.

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