(E a Vai-Vai, hein? Vai ou fica? Tem muita coisa social para dar a resposta)
Olá!
Como sabem aqueles que me leem, eu moro no centro de São
Paulo, onde há imenso fluxo de pessoas durante a semana, e um processo de
desertificação a partir do sábado à tarde, e assim fica até o rolar das portas
de ferro na manhã de segunda-feira. Não tenho ficado muito tempo em casa, mas
pude notar que, desde o final do ano retrasado, a movimentação no domingo está
incomum. Cinco horas da tarde já deveria estar tudo às moscas, mas olho pela
janela e vejo minha rua lotada. Deve ser alguma novidade do pastor da esquina,
cri eu. Mas a repetição nos fins de semana seguintes e um som de batuque ao
fundo obviamente me demonstraram que o fenômeno era outro. E a história é a
seguinte: a Vai-Vai, uma das maiores escolas de samba da Paulicéia Desvairada,
perdeu o direito que tinha de fazer seus ensaios no Bixiga, seu local de
origem, porque lá será construída uma estação de metrô (linha laranja - estação
14-Bis), bem em cima de sua quadra, em claro desrespeito às suas raízes, mas
como a questão é de transporte público, a defesa fica muito mais difícil. Para
sobreviver, conseguiram que o Sindicato dos Bancários cedesse sua quadra para
que pudessem tocar a vida, e essa quadra fica na saída da minha rua. Eu gosto de
Carnaval e fiquei contente, mesmo com os protestos e esconjuros dos
catolicíssimos moradores do meu prédio. Afinal, estamos no Advento e precisamos
nos preparar para ficar tristes. A história se repetiu esse ano, mas não
acontecerá no ano que vem, já que os bancários resolveram vender sua quadra
para que - pasmem - seja construído mais um empreendimento imobiliário nesta
cidade cada vez mais difícil de viver.
São Paulo encara o Carnaval de maneira diferente ao que
ocorre no Rio de Janeiro, o grande referencial quando o assunto é desfile. Lá,
todo mundo tem duas agremiações para torcer: o time de futebol e a escola de
samba, com a combinação Flamengo-Mangueira sendo a mais frequente de todas.
Essa maneira de encarar o Carnaval, mais o enorme nível de sofisticação
alcançado nos desfiles, fez com que a torcida transcendesse as comunidades onde
as escolas se localizam. Essa distinção clara não acontece em São Paulo. Desde
a década de 90, os desfiles passaram a contar com escolas de samba oriundas de
torcidas de futebol, começando pela Gaviões da fiel e sendo acrescida por
Mancha Verde e Dragões da Real, que já chegaram ao grupo principal, com a
estreia da Independente Tricolor ao mesmo nicho e que vem sendo seguidas por
Camisa 12, Torcida Jovem, TUP e outras evoluções dos blocos que estão se
transformando em escolas. O movimento parece inevitável e irreversível, porque
o aporte financeiro é significativo e a adesão é grande, dada a vinculação com
torcidas.
Pelo fato de eu ser corintiano, pode-se pensar que eu tenha
apreço pela Gaviões ou pela 12, mas não. Em primeiro, são escolas de torcida,
e, como eu já disse aqui,
eu não torço pela torcida, mas pelo time. Depois, embora eu não pertença à
comunidade do Bixiga, eu sempre simpatizei pela Vai-Vai. Mas havia, sim, uma
conexão com o Corinthians nessa história: as cores preta e branca. De resto, ia
até a Vila Matilde para assistir os ensaios da Nenê, e a escola do bairro em
que morava era a Príncipe Negro, hoje na Cidade Tiradentes, longe de seu lugar
original, onde hoje fica a Avenida Anhaia Melo e suas agências, ainda que na
mesma imensa Zona Leste.
Passa por perrengues, a agremiação saracura*. Essa história
vem desde a década de 2000, quando, por força de medida judicial, não pode mais
ensaiar nas ruas do entorno de sua acanhada sede. Entretanto, o apego ao bairro
fez com que eles lutassem por se manter no local. A desapropriação foi, porém,
um tiro de misericórdia. Uma nova quadra, dizem, vai ser construída nas
redondezas, ainda na Bela Vista, e prometem uma nova arena para fazer
apresentações extracarnaval. A ver.
O problema maior da Vai-Vai certamente não está na questão
da quadra, porém. Há muita desorganização administrativa em um meio que exige
cada vez maior profissionalismo, e há uma batalha judicial que vem se
arrastando há tempos pelo poder, que culminou com a inédita queda para o
segundo grupo em 2019. É bem verdade que a reação foi a altura, com o regresso
triunfal já no ano seguinte, mas com nova queda em 2022 e nova ascensão em
2023, o que lhe coloca a incômoda pecha de “escola ioiô”. Foi assim que se
iniciaram as derrocadas de outras escolas igualmente tradicionais, como a Nenê
de Vila Matilde e Unidos do Peruche, que passeiam hoje em dia pelas divisões
inferiores. A alternância de divisões é um fantasma que campeia pelo cemitério
do esquecimento.
A Vai-Vai tem força e tradição para manter sua
grandiosidade, mas é preciso ter os pés no chão. É a última escola de ponta
atual da zona central da cidade, e precisa lutar para não perder relevância,
como ocorreu com a Lavapés, ou até mesmo ser extinta, como a Paulistano da
Glória. Só que a própria desapropriação de sua quadra não ajuda em nada, porque
demonstra que a cidade em si dá mais importância a outras coisas que não são
sua existência. Talvez não enxerguem o que há de história por trás dela.
Quando falamos sobre a Lavapés e a Paulistano, não é pouca
coisa que está por trás de ambas. Uma é a maior campeã dos desfiles dos
primeiros tempos, a outra foi o cavalo de batalha do maior criador de
sambas-enredo de São Paulo, Geraldo Filme. Vou dar uma pincelada rápida em
ambas, começando pela última.
O Paulistano da Glória tinha esse nome por conta de sua
localização, na tradicional Rua da Glória, hoje reduto oriental em São Paulo,
que é daquelas ruas cujos postes foram transformados em luminárias japonesas.
Parece estranha a localização, mas o fato é que o bairro da Liberdade era
um dos principais redutos negros de São Paulo antes do espalhamento nipônico.
Inclusive, seu nome se deve aos movimentos antiescravagistas dos fins do século
XIX, e lá ficava uma das cadeias destinadas especialmente aos negros que
aguardavam sua condenação. O Paulistano, antes de ser uma escola de samba, foi
um dos principais salões de baile do centro, e seu principal sustentáculo.
Originalmente nascido para proporcionar lazer ao operariado da região, lá
ocorriam bailes carnavalescos que eram comuns até a década de 70. Eu mesmo
lembro que minha mãe me levava nas matinês de um clube no Brás, pelos lados da
Silva Teles, mas não tenho a menor condição de lembrar o nome. Íamos em tropa,
com os primos que moravam na região. Eu costumava começar contrariado, meio de
saco cheio com as pinturas de barquinho espalhadas pelo corpo e um chapéu de
jornal na cabeça, mas na hora da farra, de jogar confete e correr atrás de
serpentina, eu me divertia à beça. O Paulistano era um desses, só que de porte
maior, muito mais famoso que os salõezinhos de bairro. Desses bailes, surgiu um
cordão carnavalesco que virou escola de samba. Durou pouco, com cada vez menos
integrantes, principalmente após a perda do salão, a sua origem, o que fez a
escola ficar sem lastro. Em um momento onde a Rua da Glória ia ficando mais e
mais dirigida para a cultura oriental, a escola enrolou seu pavilhão e foi para
a história***. Restaram as composições de Geraldo Filme, provavelmente o mais
importante dos autores paulistanos e, de longe, a parte mais memorável e
competitiva da Paulistano eram exatamente suas letras. Compôs também para a
Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Colorado do Brás e Unidos do Peruche. Sua
principal característica era trazer enredos de cunho social que passeavam pela
sua própria biografia, como no samba "Batuque em Pirapora", onde
relata sua exclusão logo na infância e seu batizado na roda de samba.
Já a Lavapés tem uma história que transitou do apogeu para a
obscuridade. Ela ficava localizada na Baixada do Glicério, um lugar tão
tradicional quanto Mooca, Brás, Barra Funda, mas que nunca deixou de ser pobre.
Como ficava nos baixios alagáveis do Rio Tamanduateí, só se submetia a morar ali
quem não tinha outra possibilidade, negros à frente. Até hoje a região é muito
pobre, embora o processo de verticalização que vem sofrendo certamente fará o
perfil mudar futuramente, mais uma vez com a formação de uma classe média
(ainda que baixa) e afastamento das comunidades negras para a periferia.
Quem passa pelo Glicério atentamente, verá que ainda restam
muitas casinhas térreas, daquelas sem garagem e sem quintal, cuja porta já
desemboca direto na sala do contribuinte. É por entre elas que surgiu a
Lavapés, escola de samba que leva o nome da rua que nasce do desembocadouro da
Rua do Glicério e que leva o fluxo até o Cambuci, no caminho para o Ipiranga.
Nos tempos em que a condição de várzea afastava investimentos, havia espaço
suficiente para que a escola de samba pudesse realizar ensaios e armazenar
materiais. Só que o terreno que lhes servia de quadra, guarnecido por um
pequeno arvoredo, virou um daqueles prédios como o registro da Saudosa Maloca:
o progresso atropelando histórias e espaços. Os ensaios passaram a ser feitos
na rua mesmo, e o armazém dos instrumentos e fantasias era a casa dos dirigentes,
com a perda de recursos e integrantes cada vez maior. Estava em funcionamento
ainda mais por conta da teimosia de sua presidente Rose, neta da fundadora da
agremiação, Madrinha Eunice.
Recentemente, a escola ganhou um novo fôlego, pela sua
associação com o Instituto Pirata Negro, comandado pelo ator Ailton Graça. Foi
o jeito de se salvar a Lavapés, mas a um custo alto: a mudança de sede para a
Zona Sul, lá pela região de Americanópolis. Desde então, a escola vem novamente
subindo pelas divisões, e este ano ascendeu ao Grupo Especial de Bairros,
anterior aos desfiles no sambódromo. Sendo assim, que seja assim, mas há coisas
a observar.
Quem transita pelos entornos do Glicério e da Várzea do
Carmo, percebe facilmente um dos mais claros muros imaginários da cidade de São
Paulo. A Rua Conselheiro Furtado divide o bairro da Liberdade em dois: a parte
alta, onde ficam os orientais, com a feirinha, os festivais, as lojas típicas,
os cosplayers e o metrô; no rumo da baixada, o comércio miúdo, os botequins
calcanhar-rachado, as moradias deterioradas, os gatos, os cortiços, a
violência, em uma densidade cada vez mais apertada. Quando se fala em
Liberdade, logo se pensa na região de cima, nunca na baixada, justamente onde
ainda estão suas raízes mais profundas. Entretanto, ao se chegar na região
vizinha, na Várzea do Carmo, notam-se alguns terrenos imensos, alguns dos quais
onde se começam a construir empreendimentos imobiliários, sempre eles. Será que
seria tão imensamente caro reservar alguns metros quadrados, até mesmo com
contrapartidas, para que a Lavapés pudesse ter uma quadra na região? Não
estamos falando de qualquer coisa: é simplesmente a mais antiga escola de samba
ainda em atividade na cidade de São Paulo. É história pura do município, e
qualquer pessoa que quiser compreender as manifestações culturais desta terra
esbarrará na escola vermelha e branca. Ao invés disso, a prefeitura faz uma
estátua em tamanho real da Madrinha Eunice e a coloca na praça da Liberdade. É
uma homenagem válida, mas injusta, porque não tem efeitos práticos. Uma pessoa
que a veja pode se interessar pelas histórias que tem para contar, mas onde
está a escola? A uns trinta quilômetros dali, em um bairro que nada tem a ver
com sua origem. Repito: não tenho nada contra a mudança de endereço da Lavapés,
mas ao desmonte das raízes de São Paulo como um todo, especialmente dos contos
proletários, dos quais os negros são indissociáveis. Tenho certeza absoluta de
que o Instituto não se negaria a manter a parceria caso fosse possível manter
uma estrutura mínima para sua manutenção em seu local de origem, até mesmo
porque uma de suas bases é preservar o que ainda resta de elementos da história
negra de São Paulo.
Isso tudo é um aviso para a Vai-Vai. O Bixiga está para a Bela
Vista como o Glicério está para a Liberdade, e isso indica que a rota do
fracasso já está bem desenhada, e nem sempre se encontrará um padrinho disposto
ao mecenato, só restando o esquecimento, como se deu com a Paulistano da
Glória. Se eles pretendem se manter em uma posição digna, sabem que não podem
contar com a vontade pública da cidade. A memória de uma agremiação antiga e
campeã não é suficiente para mantê-la, como comprova o caso da Lavapés. Será
melhor acertar suas diferenças e procurar caminhos para sua própria
preservação.
Eu não sei como fazer isso, mas gostaria muito que aqueles
que influenciam nesses destinos saibam e ajam. Bons ventos a todos!
Recomendações:
A primeira é fazer uma visita à própria Vai-Vai, especialmente
quando começarem os ensaios para o desfile do próximo Carnaval. A diferença de
ver um ensaio ao vivo é semelhante a assistir um jogo na televisão e no
estádio. Recomendaria a quadra da Vai-Vai, mas ela não há. Portanto, o ideal é
acompanhar suas redes sociais ou seu site, que é o seguinte:
Com relação à Lavapés, há um belíssimo documentário disponível
no YouTube contando não só suas origens, mas toda uma análise sociológica ao
redor da escola.
ANDRÉ, Carminda et al (Grupo de Pesquisa Performatividades e
Pedagogias). Lavapés: Ancestralidade e Permanência. Filme. São Paulo,
2017. 57 min. Cor.
Por fim, uma recomendação para lá de lateral. É o livro de
HQ Paulistano da Glória, que de comum com a escola só tem o nome e o jogo de
palavras, mas que é bem interessante e vale a pena ser conhecido.
OLIVEIRA, Carlos A.P (Xalberto) et al. O Paulistano da Glória.
São Paulo: Via Lettera, 2004.
* Esse apelido se deve ao fato de sua sede tradicional
localizar-se às margens do que era o rio Saracura, hoje soterrado pela Avenida Nove
de Julho
** Pelo que eu consegui averiguar, hoje há um mercadinho
chinês onde ficava o salão, mas esta não é uma afirmação totalmente confiável.
*** Recentemente, uma
nova escola adotou esse nome, lá pelos lados da Vila Ré, o que me tentaria a
dizer que é mais uma comprovação do fenômeno de êxodo do centro aqui descrito,
mas não há nenhuma correlação entre ambas.
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