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segunda-feira, 6 de março de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 13ª Parada: Pouso Alegre e os cafés que nos despertam para a realidade

(Às vezes as coisas que mais gostamos colocam a gente diante de uma realidade que não queríamos ver)

Olá!

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Tempos atrás, fiz uma pequena viagem à região de Itajubá, que, aliás, fica próxima de onde estou agora. Naquele momento, fiquei hospedado unicamente naquela cidade e fiz incursões em um sistema de estrela, com a minha "casa" no meio e flutuando para os pontos cardeais na medida em que os dias corriam. Repeti a estratégia desta vez, só que o centro do meu sistema solar foi Pouso Alegre, sem dúvidas a maior cidade da região Sul de Minas. Da mesma forma que outrora, relutei em fazer meu relato de uma cidade que me serviu principalmente de dormitório. Mas pensei bem e, debruçado sobre as fotos, percebi que foi muito mais do que isso, e que, portanto, havia méritos em ter seu texto próprio, que é este que vocês, meus pacientes leitores, seguirão a partir de agora.

Pouso Alegre não é exatamente o que chamamos de cidade turística, mas ela é muito bem estruturada e contém muitos serviços disponíveis, além de uma quantidade boa de história espalhada em seus prédios, começando pela Catedral Metropolitana.

Muitos dos prédios que ficam em seus arredores possuem valor histórico e estético, representando a época em que esta cidade deu um passo adiante para se tornar o que é hoje, como o Grupo Escolar Monsenhor José Paulino…

 … e o Teatro Municipal, ambos ainda em atividade. Quase que peguei o show do Zé Geraldo, que estava em cartaz por lá, mas perdi os últimos ingressos por conta de meia hora. Fui na praça dar milho aos pombos.

Também circulei pela cidade a esmo, e cheguei no Parque Municipal, para relembrar os tempos de namoro. Lá tem as coisas básicas de um parque, com playground, árvores, gramados e um lago onde habita um jacaré que, dizem, é inofensivo se não for cutucado.

Também fui coletar água mineral nas bicas disponíveis na cidade. Não chega a ser um espetáculo hídrico como em São Lourenço, Caxambu, Cambuquira ou Lambari, mas cumpre bem seu papel de fornecer boa água a custo zero. Fui na mina João Paulo…

… e na Fonte Dona Maria, que fica embutida em um pequeno parque.

E claro, estando nas Gerais, não há como não cair na gastronomia. Não vou ficar aqui descrevendo cada um dos pratos que vocês já conhecem tão bem, e vou concentrar minha homenagem no curioso e desafiador pirulito de porco servido na casa The Tudo um Porco, um barzinho que nos acolheu no estômago e da chuva.

E café. Eu e a patroa fomos andando pelas ruas da cidade e procurando o café perfeito, sendo que encontramos muita coisa boa, com torras próprias e terceirizadas, cafés espressos e coados, derivações com leite (blergh) e chocolate, e um aroma de paraíso que só o café feito na hora tem.

O café em que eu mais compareci fica em uma rua discreta, e foi montado em uma casa, o que aumenta a sensação de aconchego. Chama-se Café Donna Flor, onde bati altos papos com o dono, especialmente sobre o futebol miúdo de São Paulo e Minas, já que eu estava paramentado com a incongruente combinação de camisa do Nacional e bombeta do Juventus.

Por lá, eu não só sorvi o sacro fruto da rubiácea, mas também jantei um belo croque monsieur, enquanto a patroa mandou brasa em uma sanduba chique, feita à base de pera e presunto cru, coberto de rúcula.

Num balcão de canto, o belo costume de manter alguns livros para se folhear enquanto o tempo passa e o líquido desaparece do copo. Enquanto eu esperava chegar minha pedida, peguei um deles para compartilhar com a esposa. Era um livro de fotos do renomado Sebastião Salgado, e o tema, óbvio, café.

É uma obra toda em preto e branco, típica do autor quando quer demonstrar o relacionamento harmônico do homem com o ambiente. Apesar disso, não sei muito bem qual é a intenção do livro, se é foco no grão, no ambiente, na diversidade da produção no mundo, na integração de tudo isso, mas eu foquei nas pessoas, e isso me incomodou.

Quando eu paro para pensar no que tem sido minha vida, percebo que os dias são contas de um longo rosário onde se misturam realizações e frustrações. Como nosso universo gira todo ao redor de nosso próprio umbigo, tendemos a enxergar dificuldades maiores para nós do que para os outros, assim como méritos mais perfeitos em nós mesmos e menos apurados nos amiguinhos. Isso tem motivos, e o principal é a casca pública com a qual nós nos apresentamos ao outro e o efeito ator/observador que nossa mente nos impõe. Geralmente ela é mais perfeita do que a realidade, mas, por vezes, dá se o fenômeno contrário. Portanto, para o bem ou para o mal, há um certo teor de afastamento com o mundo efetivo, mas o fato é que, bem ajustadas, as histórias de todos nós são contadas e ouvidas reciprocamente.

Só depois de fritos os ovos, percebemos que elas são muito semelhantes entre si. Tem uma gema no meio, uma clara à sua volta e uma bordinha, que pode ser crocante ou molinha. Ou seja, desenhamos nossas vidas de maneira bem parecida. Há pouco tempo, tínhamos aquela trilha de nascer, crescer, estudar, trabalhar e estudar, trabalhar, trabalhar e casar, trabalhar e ter filhos, trabalhar e formar os filhos, aposentar e esperar a morte. Alguma coisa pode ter mudado, mas mudou para todo mundo, então as coisas são mais ou menos iguais, estruturalmente iguais. Porque vamos ter os dentistas e os arquitetos, os casados homo e héteros, os filhos próprios, adotivos ou não-humanos, o trabalho autônomo, público ou privado, e a aposentadoria cada vez mais distante, terminando em enterro ou cremação, mas com a mesmíssima lógica que conduz para um fim tranquilo, ao menos nos objetivos das pessoas.

Como a vida corre, nossas esperanças, nossas desilusões, o que era para ser e não foi. É isso… nossas vidas são todas muito semelhantes, um rio que corre sempre pelo mesmo leito. Mas não, há um engano nisso.

Quando vejo as páginas das impecáveis fotografias do nosso mestre, uma coisa me faz olhar o líquido que tanto gosto com certo desespero. Como eu disse, não cheguei a descer ao detalhe das intenções do livro, mas a arte tem essa caraterística que é só dela: é uma verdade para quem a produz e outra para quem a aprecia, sem haver nenhum dos dois que lhe seja o proprietário. E na minha verdade particular eu vi as mãos, os pés e os rostos dos trabalhadores.

O primeiro olhar parece mostrar as diversidades de produção do café no mundo, mas somente uma coisa é capaz de se provar comum: a miséria do trabalhador no campo. Seja na Costa Rica, na Tanzânia, na Colômbia, na Guatemala, na China, na Índia, no Brasil, uma outra via da coincidência que eu mencionei de nossa realidade se abre. Não é mais uma vida que se cumpre pela crescente nos objetivos, porque também aqui tudo se repete: rostos calcinados pelo sol, mãos marcadas pelo uso repetitivo, pés grossos como cascas de árvores. As famílias inteiras, incluindo crianças e bebês que as mães amarram ao corpo mostram que o caminho estrutural que temos nós, pessoas da classe média das grandes cidades, também aqui existe. Só que sob uma estrutura muito diferente, que nós só entendemos existir quando somos defrontados, de maneira quase involuntária, e de forma abrupta.

A linha de destino que eu encontrei, para o caso desses trabalhadores, é muito mais limitada: do começo ao fim, a esperança se limita à sobrevivência. Haverá quem diga: existem aqueles que saem dessa condição. Entretanto, se pensarmos percentualmente, qual é o tamanho desse estrato?

Eu não deveria estar tão surpreso, porque não há ineditismo para mim nessas histórias. Eu tinha um tio-avô que era cafeicultor no norte do Paraná. Ele e meus primos trabalhavam bastante duro na lavoura, apenas eles, naquele famoso esquema de sol a sol. Carpir as ruas, arar a terra, aplicar adubo, remover as pragas, cavar as contenções e tudo o mais era feito por eles mesmos. Eu, do alto da minha meninice, achava aquilo divertidíssimo, mas isso porque eu me enfiava em uma carroça e ia cansando o cavalo com meus volteios desnecessários. Mas o fato é que eles viviam apertados, e quando precisavam fazer compras colocavam uma ou duas sacas de café nessa mesma carroça e levavam o produto para a beneficiadora, onde pegavam o dinheiro e compravam sal, açúcar e coisas que não dava para tirar da terra. Mas, apesar das costas doloridas e das mãos calejadas, havia perspectivas: trocar o cavalo por um trator, a carroça por uma caminhonete, comprar mais alguns hectares para melhorar a renda. Então, mesmo no campo, existia aquele encaixe a que eu me referi no começo.

O único momento em que eles não davam conta sozinhos do plantio era nas colheitas. Não há máquina que colha café, como ocorre com milho, trigo ou soja. A tarefa é manual, porque não há como arrancar o café sem destruir a planta, afinal, ele vem de uma árvore. Sim, ele é um fruto.

Era nesse momento que vinham os boias-frias. Eram homens e mulheres que viviam dos períodos de colheita, que recebiam aquele pouco para sobreviver até a próxima, porque não tinham terras eles mesmos. Nas fazendas maiores, eles eram legiões. Faziam seu trabalho e iam embora, esperar a próxima vindima. Faziam parte de uma cooperativa, mas eram muitos e consolidavam a extensão da pobreza. Meu tio, mesmo aos trancos e barrancos, vivia e tinha alguma perspectiva de crescer economicamente, dar aos netos a chance de estudar, de um dia trabalhar a terra de maneira mais produtiva, ou de cuidar dos animais com ciências, e não com mezinhas. Isso se não quisessem se desvincular da origem agrária. Já o pessoal da colheita…

Era gente que se via de vez em quando, e estavam sempre enfiados no mato, vivendo nas suas taperas. Se eu quiser fazer a comparação do início deste texto, teremos um teto muito mais baixo. Não fosse o êxodo rural, e teríamos uma equivalência entre existir e sobreviver.

Por este motivo, eu tive a infeliz sensação de que aquela xícara na minha frente continha, além da cafeína, da trigonelina e do ácido clorogênico, um alto teor de injustiça social, e isso fez com que eu olhasse com tristeza para o líquido escuro, ainda levemente fumegante. Não há paralelo entre a vida que vivemos e a vida que eles sobrevivem, e isso fica invisível sob o véu do sabor agradável, da mesma forma que os corpos dos mendigos da Sé, obscurecidos pelo esplendor da Catedral, ou dos subterrâneos do Brás, onde milhares de andinos respiram sem que observemos, submersos pela oferta de roupas a custo baixo. São invisíveis não porque não o vemos, mas porque não temos dimensão de que suas vidas são tão distintas das nossas que nem conseguimos compará-las.

E aí entra o dilema: tomar o café faz com que esse estado de coisas seja mantido, junto com toda a injustiça social que vem com ele, mas, por outro lado, garante um mínimo para a sobrevivência, mesmo que na permanência da miséria. E aí a resposta fica muito difícil. Em que momento levantar bandeiras é mais importante do que saciar a fome?

Não serve de consolo, mas desde então tenho pensado nas fotografias todas as vezes em que preparo meu café matinal, que passou a vir com notas de miséria junto do aroma fresco e do gosto de acolhida.

Este texto é menos sobre a desigualdade social que enfrentamos diariamente, mesmo que nem sempre a percebamos, e mais sobre o ato de se ter a realidade caindo sobre nossas cabeças como se fossem pedradas. É isso que eu queria dizer e não sei se consegui traduzir.

Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

O livro, como obra de arte, é primoroso. Espero que tenha o aspecto de denúncia que não percebi naquela hora em que fiquei na cafeteria.

SALGADO, Sebastião. Perfume de Sonho. Uma Viagem ao Mundo do Café. Rio de Janeiro: Paisagem, 2020.

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