(O senso comum opera em nossas vidas com uma constância inacreditável, mesmo no mais inocente dos cafezinhos)
Olá!
Nos últimos tempos surgiu uma modinha no mundo dos cafés: a
cafeteira vietnamita. Não é de se admirar que tenha surgido um método de extração
próprio deste país. Ele desponta nos últimos tempos como um dos maiores
produtores mundiais da rubiácea e, embora seu foco seja primordialmente a
exportação, é óbvio que sempre sobra um tanto para abastecer o mercado interno.
Procurei um bocado por algum nome técnico que o método possua, mas não achei
nenhum. O admirável é o preço, muito barato. Gostamos de métodos e de preços;
portanto, não achamos ruim comprar uma delas. Chegou em casa há uns dias atrás.
Ela tem uma cara de xícara que já evidencia sua
simplicidade. Seu fundo é pleno de pequenos furinhos, por onde a água passa, e
onde o pó fica ensanduichado entre a peneira e o disco da prensa. É bem
chatinho de achar o ponto de moagem, porque se for muito grosso, a água passa
de passagem, produzindo uma desanimada água de batata. Se for muito fino, por
seu turno, o café fica com aquele aspecto de laminha, e não coa nunca, gelando
a bebida. Portanto, é ponto médio na cabeça, sem perdão.
Acertando a espessura do pó, não haverá problemas. O fundo
deve ser recoberto com um café de boa qualidade e compactado com o artefato
perfurado próprio para tanto.
Daí para frente, é colocar a água e tampar. É importante que
a temperatura esteja próxima do ponto de ebulição, porque o resultado final
tende a ser mais frio que em outros métodos, mesmo com a moagem perfeita.
O equipamento encaixa perfeitamente naquelas xícaras esmaltadas, que recolhem com maestria os 150 ml que são produzidos a cada vez. Como sua limpeza é bastante simples, é ideal para fazer o ideal: uma dose por vez.
Nome do utensílio: cafeteira
vietnamita
Tipo de técnica:
percolação com filtragem por elemento metálico
Dificuldade: baixa
Espessura do pó:
média
Dinâmica:
deposita-se café moído em ponto médio no fundo do recipiente, de modo a
preencher toda a cavidade perfurada. Prensa-se levemente o pó com um elemento
de compactação, que deve ser mantido sobre o pó. Despeja-se a água até completo
preenchimento do recipiente e tampa-se o mesmo até a completa filtragem.
Resíduos:
quantidade razoável
Temperatura de saída:
baixa
Nível de ritual: médio
Eu, como já disse, fiz umas pesquisas na internet para descobrir mais detalhes sobre essa simpática cafeteira. Eu achava que essa história de Vietnã era como o pão francês e o porquinho da índia, que de França e Índia só tem o nome. Mas não. De fato, é típico deste país da Indochina, onde o café é preparado para ser coado diretamente no leite condensado. Fica bem gostoso, reconheço, mas é preciso distinguir bem. Café como obra de arte é puro. As misturas são fenômenos de feira, como aqueles artistas que usam facas como malabares (puro exagero da minha parte, cada um toma seu café como bem entender).
E eu fico pensando naqueles japonesinhos que ficam
apreciando seu café com leite, em seus quimonos e getas. Será que gostam de um
peixinho para acompanhar? Ou um pão de farinha de arroz com feijão dentro?
Tudo errado. Vietnamitas comungam com os japoneses muito
menos do que nosso vulgo pode supor, que fica mais nos olhos rasgados do que
qualquer outra característica. Sua culinária é muito mais baseada na carne de
porco do que nos peixes tão caros aos japoneses e, embora também os inclua, não
podem ser colocados como ingrediente principal da cultura.
Mas o fato é que há algo que nos faz colocar várias coisas
em uma mesma vala comum. Por mais que eu diga que vietnamitas não são
japoneses, assim como chineses, coreanos, filipinos, indonésios e outras
etnias, o fato é que chamamos todos eles de japoneses. Isso não está certo, mas
não veio do nada. O Brasil é um país que tem uma de suas principais
características em ser terra de imigrantes, que vieram praticamente do mundo
inteiro. Em um dado momento, há mais de cem anos atrás, foi a vez dos colonos
japoneses chegarem aqui, e irem direto para a lavoura. Em um tempo onde não
havia tv, nem internet, sabia-se da sua existência por relatos, ou no máximo
fotografias, o que não era a mesma coisa de se ver alguém oriental
pessoalmente. Portanto, os primeiros japoneses, com seus olhos estreitos e cor
amarelada, eram quase que uma atração turística para os curiosos. Em Terra
Brasilis, eles foram por muuuuuuuuito tempo a principal massa imigratória de
orientais. Hoje em dia, são pouquíssimos os japoneses que se mudam para o
Brasil, sendo muito mais comum o movimento contrário, mas há vários chineses e
coreanos ainda rumando para cá. Diante dos poucos elementos que temos para
distingui-los, chamamo-los da etnia mais comum que conhecemos, o que não é um
fenômeno restrito a eles. Aqui, qualquer loiro é alemão, qualquer narigudo é
turco, como se não houvesse loiros/narigudos no restante do mundo. Isso para
não falar dos nordestinos, que são baianos para qualquer circunstância, o que é
um engano e tanto.
Mas por que agimos assim? O nome disso é senso comum,
conceito importantíssimo quando queremos distinguir nosso pensamento do
quotidiano daquele mais filosófico, centrado no raciocínio. Eu deveria ter
abordado este tema há mais tempo, porque é um dos fundamentos mais basilares da
Filosofia, mas há sempre um tempo para tudo, já
dizia Qohelet.
É evidente que não ficamos exercitando nossa razão cem por
cento do tempo. Isso equivaleria a estarmos sempre fazendo ginástica: não é nem
ao menos saudável. Imagine que todas as vezes em que fôssemos cozinhar uma
batata ficássemos nos questionando o que é o alimento, porque há resistências
culturais em utilizá-lo de maneira distinta da convencional, porque damos tanta
importância ao ato de manter a vida e assim por diante. Ou ficar questionando
porque a batata, tão rica em carboidratos, e não uma cenoura, mais carregada de
fibras, o que favorecerá o funcionamento do meu aparelho gastrointestinal. Eu
simplesmente pego a panela, coloco a água que sei ser suficiente e deixo pelo
tempo que faz a magia acontecer, e pronto. Eu SEI fazer batata,
independentemente do quando me aprofunde em questões metafísicas e científicas.
Os devaneios filosóficos e científicos são acontecimentos eventuais, como ocorre
com essa série de cafés filosóficos. Eu não penso em filosofia todas as vezes
que faço café, mas quando o faço (e for interessante) registro aqui para
vocês.
Mas vamos depurar um pouco. Senso comum é um termo duplo, e
deve ser visto em cada uma de suas partes. Senso significa a capacidade
humana de fazer juízos. Isso significa que somos capazes de nos defrontar com
situações e articular mentalmente para chegar a conclusões, fazer escolhas,
apreciar valores. Fazemos isso o tempo todo, a cada estímulo que recebemos.
Entretanto, o senso não é uma coisa única, que se pratica
sempre da mesma forma. Ele tem um diferencial qualitativo que vai variar de
acordo com o grau de automatismo que aplicamos a ele. E ele é comum quando é
partilhado com aquela porção humana que depende menos de atitudes filosóficas
ou científicas, que inclusive filósofos e cientistas têm.
O senso comum existe porque não são todas as apreciações que
fazemos da realidade que precisam passar pelo crivo da criticidade. Ser crítico,
aqui, não significa ser chato ou reclamão, mas colocar critérios para adotar
uma posição como reflexo de verdade (ou aproximação a ela). Quando uma situação
depende de ponderação, fazemos uma análise que a quebra em pedaços e tenta
buscar um resultado mais definitivo para a questão que é levantada. Isso
resulta em dispêndio de tempo e de energia, porque o juízo crítico
frequentemente demanda conhecimento que não se tem, e que, por consequência,
precisa ser buscado.
Nada disso é necessário no senso comum. Este é o tipo de
conhecimento que criamos naturalmente para dar conta de demandas imediatas.
Normalmente não se prende a metodologias, baseando-se mais em experiências
próprias e nas observações de repetições.
Outra coisa a respeito do senso comum, que é o que melhor
lhe caracteriza. Como os homens não são seres isolados, existe a necessidade de
que construam laços sociais, que garantam um mínimo de convivência estruturada.
Para isso, formam consensos coletivos que acabam por ser interiorizados pelos membros
individuais daquela sociedade, na forma de conjuntos de valores. Essas
convenções deliberadas vão habitar nas mentes do grupo como se ficassem lá
gravadas, e vão pautar a reação das pessoas diante do giro das engrenagens
sociais. É como se o convívio formasse um gabarito por onde todos os
comportamentos individuais devessem passar, de modo a constituir uma certa
padronização comunitária. Ocorre que o automatismo do senso comum possui
balizas tão fortes que todos aqueles que saem do roteiro são prejulgados pela
sua conformidade, o que leva a toda sorte de exclusão.
Vou dar um exemplo prático de como é possível diferenciar
senso comum de senso crítico. Sabem aquelas famosas piadas que usam
estereótipos? Tem as piadas de português, de loiras, de turcos, e todas elas
funcionam através de um padrão comportamental atribuído a cada um dos
protagonistas. Em qualquer boteco, aprendemos que portugueses e loiras são
burros, que turcos e judeus são mãos de vaca e assim também com outros
personagens. É possível discorrer mentalmente porque há a fundação desses
estereótipos. Os portugueses, apesar de compartilhar um grande elemento de
cultura conosco, que é a língua, não vivem a mesma realidade social, de modo
ser estranho a eles certas condutas e fraseologia, tão típicas de cada lugar.
Portanto, se você falar a um luso que está "matando cachorro a
grito", ele não compreenderá que você passa por situação periclitante,
pensando ser impossível que o pobre cão sucumba a garganta tão poderosa. O
mesmo aconteceria entre panamenhos e argentinos, sul-africanos e australianos,
tunisianos e haitianos e tantos outros povos cujo único ponto em comum é a
língua. Com as loiras, a remissão é às meninas que abandonam a escola para
seguir carreira de modelo, porque a aparência jovem é requisito imperioso pelo
que busca o mercado publicitário. Por isso, diz-se que priorizam a beleza em
detrimento da formação intelectual. Já o pessoal do Levante é de uma região
milenarmente conhecida pela atividade comercial. Quem trabalha com negócios
sabe muito bem que seu rendimento é feito a custas de seu próprio
gerenciamento, o que os leva a serem duros nos valores praticados. Mais ainda:
há meses em que as vendas vão bem, há meses em que não. Dependendo de si mesmos
para sobreviver, é preciso resguardo com os abusos.
Todas essas deduções eu fiz sem consultar nenhuma fonte. Dei
tratos à bola e tirei conclusões que podem ou não estar completamente corretas,
mas não as fiz por ouvir falar. Usei meu senso crítico, mesmo não tendo à mão
elementos mais consistentes. Por outro lado, o senso comum diz a mim que os
defeitos encontrados nestas pessoas são inerentes a elas, e com isso me indica
características e comportamentos que ele, o senso crítico, me impede de aceitar
passivamente.
Mas o senso comum é pura tristeza? É sempre inválido, em
qualquer circunstância? A resposta é não.
O senso comum se baseia em aparências, parte da apreensão
imediata do mundo, não se preocupa com comparações de ideias, não é reflexivo
consigo mesmo e fundeiam-se mais na individualidade do que no patrimônio
intelectual coletivo, de modo a juntar um monte de evidências
anedóticas para compor seu corpus. Como eu falei até agora, é um juízo não
sistematizado e acrítico, mas isso não significa que seja incorreto. Um belo
dia, algum índio percebeu que chupar maracujá fazia com que ele dormisse
melhor. Talvez sua atitude tivesse algum grau de cientificidade, mas sua
comunidade, a de seus descendentes e das demais populações que tiveram contato
com esse saber não terão esse mesmo espírito. Apenas saberão que maracujá dá
sono, e esse conhecimento é correto, passado a posteriori pelo filtro
científico que descobriu a substância exata que causa esse efeito, a
passiflorina.
Desta forma, podemos deduzir que o senso comum é um conjunto
de conhecimentos acríticos da humanidade, absorvidos por terem utilidade
prática. Até aqui, portanto, nada demais. O problema acontece quando a falta de
critério se espalha para todo e qualquer fato colocado à nossa frente, mas aí o
problema essencial não é do senso comum, e sim de quem o assume como verdade
absoluta. Aqui, temos uma espécie de metassenso: é preciso ter ciência de que o
senso comum precisa ser visto com o olhar do senso crítico, mas deve cumprir
sua função, de ser uma primeira impressão sobre o mundo. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Filósofo e sociólogo argentino imperdível, de vida muito interessante
e infelizmente desconhecido no Brasil, ajudou muito a elaborar este texto.
ANDER-EGG,
Ezequiel. Introducción a las Técnicas de Investigación Social.
Buenos Aires: Humanitas, 1978.
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