(Ser feliz é uma coisa boa, mas tudo na vida tem sua justa medida. Passar do ponto pode não mostrar coisas boas, inclusive falácias).
“Destruição não é lucro” - Bastiat
Olá!
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Estamos em época de Olimpíadas, que se realiza em atraso,
por conta da "benção" da pandemia. Eu curto muito acompanhar os
jogos, só que desta vez está difícil, porque a maior parte dos certames ocorre
de madrugada. Afinal, o Japão está do outro lado de uma Terra
que não é plana, e meu sagrado sono não me deixa interromper seu culto.
Mesmo assim, ainda na hora
do café, procuro me atualizar sobre medalhas e recordes.
Tem coisa, no entanto, que me incomoda, e muito. Eu estou
longe da crítica barata e milonga repetitiva de “globolixo” dos atuais donos do
poder, mas o ufanismo da vênus prateada me dá engulhos. Mesmo nos esportes onde
sabemos não haver a mais remota chance de medalha, os locutores e comentaristas
insuflam a audiência, como se quisessem catalisar a grandeza da nação através
de um sonho impossível. Isso é uma tática, obviamente. Se você perguntar em
off, um por um te admitirão que não existe chance de medalha no badminton ou no
hóquei. Mas o ordenamento é não baixar a bola, em nenhuma circunstância. Para
mim, é um alto astral idiota. Bom... Tenho problemas com ufanismos e otimismos.
Comecei a trabalhar aos 14 anos, o que significa que, neste
ano da graça de 2021, completei 37 anos de carreira praticamente ininterrupta.
Em outros tempos, já estaria regularmente aposentado, mas as mudanças de regra
feitas com o jogo andando fizeram com que eu ainda tenha muito a
trabalhar. Mas essa janela toda me fez cruzar com todo tipo de gente: soturnos,
sossegados, ansiosos, lascivos, oligofrênicos, espertos e aqueles que mais me
irritam, os otimistas exacerbados. Ô como me aborrecem aqueles que se colocam
em permanente estado de alto astral.
Credo (direis)! Que péssimo humor… Você preferiria que seus
colegas fossem reclamões que só jogam o clima para baixo, ou aqueles que têm manias
persecutórias que acham que todo mundo quer prejudicá-los? Não é melhor ouvir
palavras que no mínimo podem servir de incentivo?
Eu sei dizer que sou meio pessimista mesmo. Talvez por isso
tenha Schopenhauer
entre meus filósofos favoritos. Não sou um radical, que só veja o lado negro da
vida. Mas, se pretendo ser realista, é óbvio que não posso contorcer minha
visão ao ponto de me desprender da realidade. E há momentos em que temos
motivos justos para sermos ponderadamente otimistas. Se meu time tem bons
jogadores, entrosados e em forma, não tenho porque achar que ele será
rebaixado, e sim que disputará o título.
Num rasgo de humildade, admito que o pessimismo não é
uma tática boa. Já cheguei a pensar que era uma ótima estratégia de defesa: se
eu espero pelo pior, quando as coisas não vêm tão ruins assim acaba sendo até
um lucro. Acontece que ser pessimista, por vezes, significa sofrer por
antecipação e, não em poucos momentos, inutilmente. Por exemplo, espero o
resultado de um exame achando que tenho um gravíssimo tumor. Quando é
constatado que não passava de uma espinha, percebo que a dor de cabeça foi à
toa.
Mas é o tipo da coisa que não escolhemos ser. Há uma certa
medida em que a racionalidade age, mas que daí para frente não adianta nada. Eu
raciocino que são ofensivos ao meu anfitrião os esgares que faço diante do
coentro que aniquila a torta, mas não consigo nunca me convencer de que sabão é
um bom gênero alimentício. Com a dicotomia otimismo/pessimismo é a mesmíssima
coisa. Pensar ajuda, mas há um momento em que não conseguimos conter as
aflições e ansiedades.
Acontece que não se trata (o meu perrengue) de ter inveja
dos otimistas. É que, assim como o pessimismo exagerado é um mal em si mesmo,
dialeticamente o otimismo despropositado também é. Ele nem natural do ser
humano é.
Há gente que tenha esses impulsos através das bazófias que leem
nos manuais de autoajuda,
que ouvem nos discursos do empreendedorismo ou nas lavagens cerebrais da PNL.
Esses logo levam uma na cabeça e retornam à crua realidade. O problema é quando
esse estado de espírito torna-se tão arraigado que passa a fazer parte da
realidade mental da pessoa que, como sabemos, é bem descolada da realidade
factual que todos nós, caniços pensantes, vivemos com peso.
Tão séria é a situação das pessoas que vivem em uma positividade
falsa que passou a ser considerada uma doença, que é classificada no curioso
nome de síndrome de Poliana, baseado
na personagem criada no começo do século XX pela escritora Eleanor Porter, que
fez um sucesso lascado. Senta, que lá vem spoiler.
Poliana é uma menina que perdeu seus pais e se viu forçada a morar com a tia, uma mulher extremamente amargurada. Como foi destinada a ela uma vida tediosa, em lugar solitário, usou uma brincadeira que seu pai lhe ensinou para animar e dar sentido para seus dias: o “jogo do contente”, que consiste em achar um lado positivo em tudo e sempre encontrar um motivo para ser feliz, seja lá qual for a circunstância. Para o que queremos conversar aqui, já é mais que suficiente.
Os psicólogos Margaret Matlin e David Stang, especialistas
em psicologia cognitiva e social, descreveram um conjunto de sintomas que
incluía um desprendimento da realidade através da fuga de situações difíceis,
mesmo quando em níveis insuportáveis. A este diagnóstico resgataram o nome da
pequena guria do conto, por possuir algumas características assemelhadas ao
quadro. O limite entre o otimismo simples e a positividade tóxica é bem
embaçado.
Por um lado, poderíamos aproximar o jogo de contente da pequena
Poliana a uma lógica epicurista.
Se na atividade lúdica a menina procurava encontrar sempre um lado positivo em
tudo, podemos pensar que esse alívio mental é uma busca pelo prazer, em
detrimento do sofrimento que a situação normalmente faria pensar. Mas a coisa
está longe de ser tão simples assim.
Nós todos vivemos sob condições psicológicas chamada de
vieses. Não são coisas excepcionais, mas apenas tendências mentais a dar um
determinado caminho às coisas que pensamos e sentimos. Um dos mais clássicos é
o viés
de confirmação, outro são os mecanismos
heurísticos. Há ainda outros, como o viés de positividade, uma tendência
psicológica em lembrar mais facilmente de eventos positivos do que negativos. É
um fenômeno comuníssimo, que citei neste
link, mas vou dar como exemplo os tempos em que você ia comer macarrão na
sua vovó. A não ser que algo muito traumático tenha acontecido nessas tardes de
domingo, você não lembrará que seus tios estavam bêbados, que suas tias lhe
arrancavam as bochechas, que seus primos quebravam seus carrinhos e que seu
irmão mais novo fazia birra para ganhar justamente a coxa de frango que era
sua. Você vai lembrar apenas do sabor da massa e do molho, do quanto a
sobremesa era saborosa e do quanto era acolhido com carinho pela avó, da bola
que jogava com o avô e do quanto era grande o quintal, em detrimento da sala de
seu minúsculo apartamento. A mente faz esses fios de seletividade porque quer
viver bem consigo mesma, e é óbvio que lembranças felizes são mais cômodas,
mesmo que não formem a realidade completa.
A moderna psicologia forjou o termo síndrome de Poliana pra
diferenciar uma condição natural, que é a perspectiva positiva, de uma condição
patológica. O termo síndrome significa um conjunto de sintomas que dão uma dica
que algo vai errado, ou seja, uma síndrome é uma condição de anormalidade, um
sinal de doença. Logo de cara, portanto, é preciso diferenciar uma pessoa com
pensamento predominantemente positivo de outra que se perde em devaneios de
contentamento impossível.
Pensamentos positivos são bons. Todos aqueles que desenham
um objetivo não o fazem sem que haja impossibilidade de atingi-lo em condições
normais de temperatura e pressão. Eu, por exemplo, tenho um projeto de
aposentadoria: gravar todas as músicas que eu escrevi na juventude. Eu tenho
uma bateria, meu filho mais velho tem uma guitarra e meu genro tem um baixo.
Com um computador e alguns microfones, é o suficiente para captar as músicas e
fazer tratamentos por software. Dá um trabalho insano, mas, estando em santa
paz com minha inatividade, é uma ocupação e tanto. Se eu não acreditar
minimamente que vai ficar bom, nem começo a brincadeira. Mas o limite da minha
positividade está aí: é uma coisa amadora, limitada à auscultação de meia dúzia
de pessoas, um legado para os netos.
Percebem que esse tipo de pensamento está bem delimitado
pela realidade? Dentro do campo de possibilidades, essa pretensão está
realmente calibrada: haverá algum tempo, há recursos materiais e eu não tenho
artrose nos dedos (ainda). Qualquer coisa que vá acima disso, vai ficando cada
vez mais improvável e irreal. Pode ser que alguém do vilarejo que eu more me
ouça pela janela e ache bom que eu toque no seu boteco. No mais tardar, alguma
molecada poderá achar o baterista que faltava, para brincarmos nos fins de
semana. Daí para frente, é otimismo demais. Não vou atrair nenhuma gravadora,
não vou fazer shows, não vou sair em turnê, ser aclamado como um talento
tardio. É tão possível quanto as pirâmides do Egito terem sido montadas pela
força das águas do dilúvio (sim, já ouvi esse tipo de coisa).
Qual é o problema de pensar tão grande, de ter uma
positividade exacerbada? É simples. Da mesma forma que o pessimista de
carteirinha, o otimista excessivo se desprende da realidade. Quando isso chega
a um nível de transpor a barreira do patológico, temos diante de nós uma
atitude de fuga da realidade. E convenhamos: se alguém é escapadiço à verdade física
e mental, é porque tem problemas.
Uma boa parte da questão está incluída naquilo que
consideramos como bom e valioso. Concordam comigo que nem tudo o que tem valor
está inscrito em nossos genes? Muito do que valoramos vem do nosso meio social,
através dos usos e costumes. Só que tem um problema: esses valores não são
absolutos nem eternos, como bem diria Nietzsche. Mas nós balizamos a felicidade
através da normatividade, e o que fica fora dela é negativo, é desviado, e
triste. Vou dar um exemplo: por que o desenho Frozen causou estranheza e até
estrépito em certos meios? Porque ele não terminou com um casamento, como é o
padrão. Idem com toda
e qualquer novela que você assistir. O final feliz esperado para qualquer
história de amor é o enlace definitivo. Com isso, pensamos que uma pessoa
sozinha não pode ser feliz, porque o "normal" é um casal, uma
família. Duas ilusões conjugadas: a que diz, como na música de Jobim, que é
impossível ser feliz sozinho; e a de que o melhor refúgio de um ser humano é a
família. Tem muita discussão aí. Primeiro, por mais gregário que seja o homem,
sempre haverá quem prefira ficar só, sem que isso represente tristeza. Para
essa pessoa, a positividade estará justamente na solidão. Se você não entende
solidão como uma coisa boa, seu complexo de Poliana lhe fará bugar o cérebro.
Por outro lado, há famílias absolutamente tóxicas, e o lado positivo possível é
se afastar dela. Lamento, mas isso existe e acontece. Portanto, determinar o
lado positivo é muuuuuuuito relativo.
Para além deste aspecto, no entanto, vai mais coisa ainda. A
positividade excessiva não deixa de ser uma forma egoística de não suportar a
realidade tal como ela é. Vamos combinar que lidar com o lado bom das coisas é
sempre mais fácil do que lidar com pensamentos negativos. Só tem um
probleminha: eles existem, e tem situações em que nada de positivo é possível
extrair. Há coisas que não tem lados positivos. Uma fácil e rápida: que cena
que envolva racismo pode ter lados positivos? O que faria Poliana em uma
situação assim? Só se pensar: que bom que não é comigo. Isso não é tóxico? A
síndrome de Poliana, portanto, aparece quando a pessoa não quer enfrentar
problemas, simples assim.
O fato é que temos que saber lidar com situações difíceis, e
não há nada de mau em nos sentirmos mal com elas, desde que não sejam
incapacitantes. E é aí que a síndrome é um problema - quando ela nos torna
incapazes. Muitas vezes a solução para a aporia de não existir lado bom é achar
um tertius. Se eu sofro, é porque
Deus quer, ele sabe o que é bom para mim; se eu não consigo, o destino me
levará a coisas melhores, coisas do gênero. Mas nada faço para resolver a questão, especialmente quando
faço essas terceirizações. Se esse modelo de pensamento me conforta, também me
conduz a um conformismo - o que é o exato oposto do otimismo, no final das
contas. Notaram a armadilha?
É por isso que eu gosto do desenho Divertida Mente, a quem
relacionei no
meu post dos dez anos. Há quem não tenha gostado, e dificilmente alguém o
coloca como o melhor trabalho da Pixar, mas eu ainda achei ótimo. Seu recado é
muito claro: todos os nossos sentimentos são necessários para a construção da
personalidade de uma pessoa, inclusive a tristeza. A todo tempo a personagem
Alegria tenta controlar o edifício da personalidade da protagonista, que se
encontra em plena transição da infância para a juventude, mas há um momento tal
em que sua antagonista Tristeza invade, sem controle, o palco mental da menina,
e, pasmem, é ela quem resolve as coisas. Sem a tristeza, os outros sentimentos
não se rendem, o ego não se encontra a si mesmo e se repõe à estabilidade. Não
é preciso colocar a tristeza para fora, mas deixá-la agir como reação natural.
Desenhinho genial, e que dá um tapa na cara dos poliânicos.
Desculpem pela brincadeira. Os acometidos pela positividade
tóxica precisam de ajuda tanto quanto os deprimidos, porque são dois lados de
uma mesma moeda, e merecem todo o meu respeito. Mas há sempre espaço para
lembrar das falácias, não é mesmo? Há uma delas que está relacionada ao fato de
se ver tudo pelo lado bom, e que nos mostra como nem sempre a positividade está
vinculada a argumentos válidos. É conhecida pelo curiosíssimo nome de falácia do vidraceiro, e vem de uma alegoria
do economista francês Frédéric Bastiat para desmentir que um processo
destrutivo pode ser benéfico para a economia.
A historinha é a seguinte: um menino quebra a vidraça de uma
loja com uma pedra. Diante do aborrecimento do proprietário, alguma Poliana lhe
diz para não se irritar, pois para cada coisa de ruim, há alguma coisa de bom.
Senão, o que seria dos vidraceiros?
Essa ideia é falaciosa porque carrega uma falsa
positividade. De fato, o lado bom se justifica, mas é muito menor do que o
prejuízo causado – e que não se resume à substituição do vidro. Bastiat chama
essa última de efeito visível, algo que está ligado imediatamente ao que se vê.
Mas a cadeia de causas e consequências levada adiante, traz consigo aquilo que
não se vê. O vendeiro tem que realizar um gasto imprevisto com a vitrine, o que
é bom para o vidraceiro e mais ninguém, ali se encerra o seu ciclo. Mas
acontece que a quebra da janela direciona a verba disponível para um evento
ruim, que pode ferir alguém, estragar o produtos expostos e que, no final das
contas, desvia o dinheiro dispendido de
outros fins, mais bem amarrados na cadeia de causas e consequências.
No final das contas, a positividade exposta aqui é falsa. O
argumento parece trazer bons motivos para se sair quebrando janelas por aí. Melhor
seria que o vidro não se houvesse partido, que as coisas que não são vistas
pudessem acontecer normalmente. Não há nenhum ganho na substituição da janela:
ela é necessária no comércio do lojista e precisará ser refeita. Esse dinheiro,
se investido na melhoria da venda, aperfeiçoaria o trabalho e geraria mais
renda, em uma das hipóteses. Esse é o lado invisível das consequências, segundo
o que diz Bastiat.
Bom, é isso. Sejam felizes, mas não o façam por fuga ou
autoengano. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Vão de baciada. A versão que está na foto é de uma coletânea
da Disney que eu tenho desde criança, mas a história de Poliana é menos
resumida do que a que está lá. Segue uma bonita versão completa.
PORTER, Eleanor. Pollyana.
São Paulo: Autêntica, 2016.
A psicóloga Margareth Matlin foi bastante atuante e tem o
seguinte livro em língua portuguesa:
MATLIN, Margareth. Psicologia
cognitiva. Rio de Janeiro: LTC, 2004.
O desenho Divetida Mente é um dos que eu mais recomendo para
assistir. Gostei muito, de fato, principalmente levando em conta a proximidade
entre Pixar e Disney, que costuma se dedicar a historinhas mais manjadas.
DOCTER, Pete. Divertida
Mente. Filme. Cor. 94 min. Estados Unidos: Pixar, 2015.
Mas não sejamos radicais. Frozen também é um desenho agradável
e que tem o tal final meio diferente. Gosto ainda mais porque incomoda, ainda
que involuntariamente, uma bela camada de tontos (e preconceituosos).
DEL VECHO, Peter. Frozen.
Filme. Cor. 102 min. Estados Unidos: Disney, 2013.
Por fim, recomendo este opúsculo de Bastiat, que tem umas
coisas bem interessantes e fáceis de entender na área de Economia.
BASTIAT. Frédéric. O
que se vê e o que não se vê. São Paulo: LVM, 2010.
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