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terça-feira, 29 de abril de 2025

Pequeno guia das grandes falácias – 74º tomo: o vaticinium ex eventu

(A morte do papa ressuscita uma velha profecia)

“Só entendemos as profecias quando elas acontecem”

Pascal

Olá!

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Morreu o Papa Francisco. Em outras épocas, eu estaria aflito, preocupado com as diretrizes que a Igreja Católica iria tomar. Para além das piedades e caridades, mudanças no Vaticano poderiam apresentar avanços ou retrocessos políticos, e, dessa forma, influenciar a vida nas paróquias, onde vivíamos e militávamos. Isso acontecia porque a igreja era bem mais presente na vida das pessoas, e, se já sentíamos impactos nas mudanças de bispos, quanto mais não se esperava com a chegada de um papa novo. Hoje em dia, despido de fé, cumpre a mim o interesse pela curiosidade e pela reconhecida influência que, embora menor, ainda se exerce sobre as sociedades ocidentais.

É preciso esclarecer alguns pontos. Um filho do proletariado deveria se incomodar com os destinos da Igreja Católica? Para quem olha para a face mais conservadora, que proíbe as pessoas de se entenderem com seus próprios corpos, que mantém uma estrutura antiquada e que renega as mudanças do mundo, de fato não faz muito sentido. Só que quando lembramos que era das CEBs que vinha o estudo disponível para os bairros periféricos, que veio dela muita defesa de direitos humanos na ditadura e que é a partir dela que as Santas Casas foram criadas, notamos que se deram momentos em que havia apenas ela para recorrermos.

É bem verdade que o fenômeno evangélico, onde os pastores se metem muito mais na vida dos fiéis estendem sua influência de maneira muito mais estreita em suas assembleias, obnubilaram significativamente a presença católica na sociedade, mas é preciso lembrar que isso é fenômeno recente, e o Cristianismo como um todo moldou decisivamente os pensares e fazeres dos latinos, nós inclusos.

O que explica melhor minha expectativa, no entanto, é que eu não só era um frequentador das naves, mas das sacristias. Eu fiz de tudo na igreja. Fui um catequista incômodo, porque dizia a rapazes e moças que deveríamos cuidar de controlar nossos impulsos, mas sempre ter um subterfúgio de látex para quando fosse impossível resistir. Eu era um músico que tocava trechos de Cio da Terra nos ofertórios ou de Pérola Azulada no Dia da Terra. Eu era, principalmente, um instrutor de coroinhas que recomendava aqueles cuidados óbvios que vocês devem estar pensando. É… não tinha como dar certo. Mas funcionou por quase vinte anos. Eis o bumbo da minha bateria com a iconografia dos tempos em que eu mandava minhas pancadas na São Francisco.


Essa relativa liberdade existia porque eu trabalhava com os franciscanos, a ala mais progressista dos católicos. Confrontados com setores mais conservadores, muito mais ligados à forma ortodoxa dos cultos e mantença de costumes, pareciam fazer parte de outra religião. Então qualquer mudança poderia parecer desejável, só que o medo era que fosse para trás. É preciso lembrar que o papado de João Paulo II foi longuíssimo, com mais de 26 anos, e a igreja ficou estacionada por todo esse tempo, dado seu perfil pouco dado a grandes guinadas. Foi até surpreendente a eleição do argentino moderado, em um cardinalato formado na sua maioria por nomeações mais conservadoras. Isso é o que dava mais medo.

Os franciscanos, mesmo com meu afastamento da religião, continuam guardando meu respeito. Quando a pandemia começou, lá estavam eles, na linha de frente do apoio à população de rua, que depende diretamente da existência de pessoas para fazerem esmolas. O Chá do Padre forma filas todos os dias no largo de São Francisco. A ceia de Natal dos pobres, os cursos para estudantes carentes, o apoio aos idosos, o acolhimento de estrangeiros, o aviamento de reciclagem, praticamente todas as ações sociais do centro de São Paulo estão vinculadas aos franciscanos.

Esse aspecto caritativo e a escolha do nome adotado pelo cardeal Bergoglio fez eu dar uma das maiores barrigadas da minha vida. Quando ele optou pelo nome Francisco, inédito no rol de papas até então, o pessoal da São Francisco exultou com a homenagem ao poverello de Assis. “Bando de burros”, pensei eu, sem empatia alguma. Frente às pouco comentadas (mas conhecidas no meio) rusgas entre jesuítas e franciscanos, tolamente pensei que a homenagem iria para São Francisco Xavier, este sim nome emérito da ordem do novo papa. No final das contas, o burro fui eu, porque o entendimento foi acertado, e eu, arrotando conhecimento e empáfia, falei uma grande merda. Mais um aprendizado para aquele que vos fala.

Mas eu queria falar sobre a rememoração de uma profecia que sempre acontece por ocasião da morte de um papa. Desde que me conheço por gente, assisti a quatro passagens de bastão: começando pela morte de Paulo VI, as de João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco I, envolvendo cinco papas ao total. A que veio após a morte de Paulo VI foi ainda na minha infância, mas fiquei marcado pelo medo da profecia de São Malaquias, já bastante explorada pela mídia da época, a ponto de ser necessário um longo sermão do vigário da região, Padre Antônio, informando que ninguém precisava ficar alarmado. Pois é, fake news não vem de hoje.

A tal da profecia dos papas é um texto atribuído a um abade irlandês do século XII, São Malaquias de Armagh. O texto descreve, através de designativos, uma visão em que o clérigo teria vislumbrado a sucessão de papas que ocorreria através dos tempos, partindo do momento dessa revelação até o que seria o último dos sumos pontífices, o Papa Pedro Romano, ao término dos tempos. Como ele enumera 112 papas nesta lista, então estaríamos, em algumas contagens, com o papa recém falecido sendo ele próprio o Pedro Romano ou sendo o seguinte, que será escolhido no conclave que está acontecendo agora, dependendo da interpretação que se fizer das contagens. Como o Papa Francisco já morreu, parece que a aposta vai recair neste que vem em breve.

A questão é que a profecia somente aparece escrita quatro séculos depois do início da lista, em uma coletânea de textos coligida pelo monge Arnoldo Wion chamada de Árvore da Vida. Lá, a profecia dos papas lista-os por designativos, e não pelo nome próprio. Eles dizem respeito à origem, a fatos marcantes da vida do pontífice ou mesmo de aproximações com o nome de batismo. Neste escrito, nota-se que os primeiros papas descritos têm uma precisão impressionantemente grande. Por exemplo, o 13º papa da lista é Clemente III, que é apontado como “de schola exiet”, que significa “ele virá da escola”. O nome próprio deste papa é Paolo Scolari, o que demonstra uma proximidade muito grande. Já Urbano IV, francês da região de Champagne, é designado “Jerusalém de Champagne”, e por aí afora. É impressionante, mas a questão é que essa precisão se perde a partir do século XVI, justamente quando se dá a publicação do livro de Wion. Os designativos passam a ser mais genéricos, podendo ser encaixado com justificativas mais amplas, sendo que várias vezes era necessário forçar a barra para dar liga. Designativos como “fogo ardente”, “fé destemida”, “de boa religião” podem ser atribuídos praticamente a qualquer cristão, com muito mais facilidade que os primeiros vaticínios, e assim a profecia continua se “realizando”.

Somado ao fato de não se encontrarem outras fontes que contenham a profecia, tal fenômeno denuncia que não há historicidade neste texto. Para os adeptos da tese de que o último papa seria Francisco, já deram com a cara no muro. Quanto aos que julgam ser o próximo, veremos. Quando você sai do campo e vai para a arquibancada, acha o jogo mais maluco ainda, e tem gente ressuscitando essa história por chacota, mas há pessoas religiosas, de dentro da igreja que leva a história a sério.

E por que diabos (epa!) alguém faria toda essa história da carochinha? A troco do que? São boas perguntas. A consequência direta é dar credibilidade para uma profecia, algo normalmente muito difícil de fazer, como provam outras técnicas, como a ambiguidade. Manter uma aura de mistério sempre prenuncia a necessidade de um iniciado que interprete o dito, o que dá uma autoridade a esse vate, porque somente ele e poucos outros mantém contato direto com as divindades. Também é possível pensar em problemas de tradução, seja das palavras, seja das intenções, o que pode distorcer a versão apresentada. Ou pode simplesmente ser uma chacota, ou ainda uma vontade de concretizar um desejo, talvez até de boas intenções. Há ainda a intenção de dar consistência para algumas predisposições morais que, com a existência de uma profecia, ganha aspecto mais divinatório, e, portanto, com a chancela da divindade que lhe dá cobertura. O fato é que a manobra é falaciosa e exemplificativa de um artifício muito utilizado quando se quer dar a impressão de que uma profecia foi cumprida. O nome que os historiadores dão a ela é vaticinium ex eventu, ou vaticínio após o evento.

A ideia é simples. Ao atribuir um fato qualquer a uma fonte muito antiga, eu ganho a possibilidade de dizer que estava adivinhando um evento que, na verdade, eu já conhecia. Ou seja, eu “prevejo” fatos passados como se eles ainda fossem acontecer no momento em que faço o vaticínio. É um modo que, a um primeiro olhar, parece ingênuo nos dias de hoje, mas que funciona muito bem com eventos antigos, ou seja, onde há dificuldade de estabelecer a cronologia exata dos eventos. A própria dedução de que a profecia dos papas é furada se dá por meios indiretos, notadamente pela mudança do teor das descrições, que mudam do certeiro para o ambíguo em um momento específico, o que é a melhor certidão de que tem carne por baixo do angu.

A melhor explicação psicológica vem do viés de juízo retrospectivo, aquele famoso efeito eu-já-sabia que tenta nos colocar como renomados analistas dos mais variados assuntos. Falei com detalhes sobre ele neste texto, mas, só para criar um elo com o que estou discutindo agora, trata-se da tendência em acreditar que algo do passado era mais passível de previsão do que era de fato após a sua concretização. 

Esse é só o exemplo que me inspirou o texto. O vaticinium ex eventu é sobejamente utilizado em épocas antigas. Bons exemplos vêm da própria Bíblia.  Historiadores sérios (inclusive cristãos) perceberam que muitas das profecias contidas nos Evangelhos foram escritas após os fatos que preveem. Isso porque, partindo da premissa de que o Evangelho mais antigo, o de São Marcos, foi escrito cerca de 40 anos após os fatos que procura descrever, deduz-se que todos os eventos ocorridos no período que vai da morte de Jesus até a escrita do texto já eram conhecidos. A destruição do templo de Jerusalém, por exemplo, já era um acontecimento, e não uma predição. Outro caso está no livro de Daniel, que é preciso nas incursões de Antíoco IV na Judéia, mas tropeça nas previsões sobre sua morte. Isso significa que ele é escrito durante o reinado do déspota em questão, e não antes de sua chegada ao palco dos eventos.

Sendo assim, podemos concluir que nossa sanha por grandes eventos traz predisposições para aceitar manobras falaciosas, que deem qualquer fundamento maior a eles, mesmo que nasçam do absurdo. Que o novo papa seja digno digno de admiração até mesmo de nós, ateus. Isso significará que ele será bom para a humanidade inteira. Amém! Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Nada como ir à própria fonte. Tem um endereço onde podemos ler a árvore da vida completa, com a dificuldade de ser o texto original em latim, mas que é facilmente compreensível na parte da profecia.

WION, Arnold. Lignum Vitae. Disponível em: https://archive.org/details/bub_gb_a4o8AAAAcAAJ/page/n3/mode/1up. Acesso em 26.04.2025.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Pequeno guia das grandes falácias – 73º tomo: o termo médio não distribuído

(Vamos falar em como éramos na juventude, e como prenunciávamos tempos que estavam por vir. E de falácias também)

“E agora minhas mãos amarguradas 

Embalam cacos de vidro

Do que era tudo

Todas as imagens foram

Todas banhadas em preto

Tatuando tudo”

Eddie Vedder/Stone Gossard

Olá!

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Mudanças sempre implicam em revisitação. Neste exato momento estou na enésima mudança de andar no serviço, o que é sempre um aborrecimento, principalmente quando nossa hierarquia superior entende que esse é assunto da mais elevada importância. E lá se vai às gavetas e aos armários remover velharias e inutilidades que nosso instinto de esquilo insiste em preservar. Mas eu também fiz uma curiosa meia mudança de casa, e agora tenho a base Metrópole e a base Vale do Paraíba. E, com isso, abrimos caixas e encontramos velhas fotos. Inclusive de infância e juventude, aquele estado intermediário entre a inocência e a rabugice. Lá estavam os tempos do eu-magrinho, tão sonhador e cheio de vontades, em oposição completa aos dias de hoje.

Das fotos que achei, vi meu baixo e minha bateria, minha pose diante do microfone, seja em pé ou sentado, as caretas nas horas dos gritos. Deve até estar chato de tanto que repito, mas eu aprendi alguns acordes e alguns grooves na minha juventude e, por causa disso, resolvi que ia ser músico, um sonho mais ou menos comum naquela década de 80 que viu explodir tantas bandas por estas bandas.


Mas o que eu tocava não era muito semelhante às músicas de então, descendentes do punk e do new wave. Tocava coisas muito mais puxadas para o hard rock dos anos setenta, com efeitos limitados nas guitarras e muitos buracos nas peles das baterias, fruto da muita vontade e da pouca verba. O importante era montar um bom riff e escrever algo que se considerasse poético. Talvez uma referência para o meu som seja o REO Speedwagon dos primeiros tempos, que tinha o ótimo Larry Luttrell no lugar do insosso Kevin Cronin nos vocais. O hard boogie das meninas do Fanny talvez também lembre um pouco o que eu fazia. Com menos talento, porém.

Isso me deslocava um pouco da grande massa juvenil da época. A turma da new wave era colorida com gosto, cheios de amarelos marca-texto, verde-limão e laranjas que faziam um copo de Tang morrer de inveja. Já os metaleiros eram aquilo de sempre: camisetas pretas das bandas favoritas, pulseiras de tachas, coturnos, jeans e couro. Mais adiante, com a corrente do Glam Metal, vieram os cabelos mega-armados, as calças agarradas, a androginia, os brincos e etc. Eu não fazia nenhum desses estilos. Aliás, eu não fazia estilo algum. Sim, é verdade que eu tinha minhas camisetas de bandas, mas como nunca tive rabo preso, a camiseta podia ser tanto do Pink Floyd quanto do Voivod. Meu estilo eram as velhas camisetas usadas até o limite do mau gosto, os tênis “foruáiti”, os velhos e surrados jeans já desbeiçados. Tudo usado até o limite da mendicância. Algumas vezes além dela.

Não era o tempo dos Balenciagas artificialmente descolados. Era tempo de economizar no que era possível para sobrar para outras coisas. Eu tinha cordas e peles para comprar, não dava para ter os calçados do momento, e nem tempo de ficar babando nas lojas do Brás, já então um destino comercial do Brasil inteiro.

O descolamento ficava ainda mais claro quando eu ia tocar para algum público, em um bar, um festival, um clube ou outra coisa qualquer. Enquanto a maioria da galera da música tinha guarda-roupa todo próprio (por vezes maquiagem também), a roupa que eu usava para ensaiar era a mesma que eu usava para tocar, que era a mesma que eu usava para ir à escola, e era a mesma que ia para o trabalho. Eram tempos em que o salário de eu-rapazola ia integral para o orçamento doméstico, e as escolhas de gastos tinham balizas muito bem delimitadas. A gandola de general era a mesma no ensaio e no show, o cap confederado era o mesmo também. Assim era com a camisa de flanela e com a calça rasgada, muitas vezes remendadas com patches da banda favorita. O tênis sujo era o que eu usava quando tocava baixo, e os pés descalços ficavam assim para o ensaio da bateria e para o show também, dependendo da minha função naquele dia. O cabelão não era hidratado, naturalmente armado pela genética, sem brilho e eventualmente amarrado. Um cavanhaquezinho eventual completava o visual.

Fazendo essa descrição, parece que estou falando sobre uma corrente que veio logo no começo da década seguinte: os grunges, que se caracterizavam exatamente por causa dessa indumentária despojada. Eu posso arrogantemente me colocar como uma prefiguração dessa moda? Inicialmente, eu humildemente diria que não, mas, se eu parar para pensar, faz algum sentido essa afirmação. Evidentemente, não é o caso da rapaziada de Seattle ter visto fotos minhas e ter dito “é isso!”. Só que é válido imaginar que as agruras que passamos foram parecidas, e isso nos aproximou, de certa forma.

O caso mais emblemático é o das camisas de flanela. Por que eu as usava? Em primeiro lugar, são relativamente baratas, se observada sua flexibilidade. Ao contrário de uma camisa de microfibra ou poliéster, a flanela é mais quente, o que, em uma cidade com variações bruscas de temperatura como São Paulo, quebra um bom galho. A não ser nos dias verdadeiramente frios, ela é suficiente para agasalhar sem exageros. Estando aberta, inclusive os punhos, ganham um respiro que admite uso em dias mais quentes. Além disso, pode ser usada como uma blusa de fato, colocada sobre uma camiseta. Esqueçam do xadrez das festas juninas: há flanelas de qualquer cor. Por isso tudo, o custo/benefício da flanela é favorável a quem vem das famílias de pouco orçamento. Com o preço de uma blusa California Racing (popular na época) eu comprava fácil um guarda-roupa completo de camisas desse gênero.

No final das contas, e antes de cair no mainstream, a filosofia grunge era exatamente essa: não é a roupa que conta, mas quem a veste. Os shows das grandes bandas até o surgimento deste fenômeno eram performances grandiosas, onde o item de menor relevância era a música em si, e, principalmente, a mensagem que ela trazia. Shows, desta forma, não eram para quem gosta de música, mas de fogos de artifício. A estética grunge vai no sentido contrário: não é preciso olhar para um palco como se se estivesse vendo uma divindade, mas gente como a gente, tão deprimida e revoltada quanto. Dessa forma, minha maneira simples de vestir prenunciava a simplificação do processo de show business, de maneira completamente inconsciente.

O som grunge também bate em certas medida com o que eu praticava. Cru, sem arranjos performáticos e exageros do heavy metal, mas com mais sofisticação do que a porradaria punk. Era mais ou menos isso que eu tocava com os meus amigos, exceção feita à última das bandas, essencialmente de rock progressivo.

Isso significa que eu era um grunge? Não, dizer isso é um anacronismo. Toda a minha “história modística” se dá antes da tendência, e chamá-la de grunge não faz nenhum sentido. É como aquela velha história de que Cristo era comunista. Por mais que seus métodos e discursos fossem assemelhados à conduta socialista de hoje em dia, o fato é que não existia esse termo a dois mil anos atrás. Portanto, não vamos seguir este caminho. Isso não faz sentido nem quando baixamos a coisa em termos de sentenças lógicas.

Por exemplo, digamos que o costume dos adeptos do visual grunge seja tão arraigado que constatamos que todos os que têm camisas de flanela são grunges. Desta forma, podemos baixar a seguinte sentença:

Todos aqueles que usavam camisas de flanela eram grunges.

Também podemos dizer que o som grunge é fundamentalmente composto por um rock básico com letras profundas. Suas guitarras são distorcidas e os vocais são rasgados, viscerais. As temáticas não falam de demônios, como as dos grupos de heavy metal, a não ser dos interiores. Também não são diretamente políticas, como as dos punks. Falam mais sobre as contradições de um mundo dissonante com as realidades internas. Isso não é inédito na música, mas é um distintivo dos grunges, e foi com eles que essa abordagem esteve presente na música no começo da década de 90. Então, podemos dizer que…

Todos os que falavam de angústia na década de 90 eram grunges.

… o que, pela mecânica dos silogismos, resulta na seguinte conclusão:

Todos aqueles que usavam camisas de flanela falavam de angústia na década de 90.

Isso obviamente é falacioso, mas por que, se as premissas parecem válidas? E mais: se é preciso que haja distribuição onde em ao menos uma das premissas espere-se atingir a universalidade, o que dizer daqui, onde ambas as premissas são universais (todos)?

Não há como evitar fazer uma breve recapitulação. Um silogismo tem o objetivo de extrair, a partir de duas premissas, uma conclusão válida, que talvez nem seja verdadeira, mas que não pode produzir nenhum absurdo. O que liga as duas premissas é o que conhecemos por termo médio, um elemento que pode ser enxergado em ambas, mas que fica excluído da conclusão porque já cumpriu sua função de concatenar as premissas. As regras dos silogismos estipulam que as premissas precisam, em pelo menos um momento, que o termo médio seja abrangido em sua totalidade. Do contrário, nada poderá ser concluído. Olhando para o silogismo proposto, temos que o termo médio em ambos está no predicado. Ele precisa estar se referindo a todos os membros da categoria proposta ao menos em uma das premissas.

Ora, temos então duas distribuições totalizantes, e não somente uma, já que tanto na premissa maior quanto na menor a categoria está apontada na totalidade, certo? Bem, não.

Embora tanto a premissa maior quanto a premissa menor falem de totalidades, é uma universalidade falsa, porque não diz respeito ao termo médio. E isso traz um defeito. Falamos em todos os que usam camisas de flanela e todos os que falam de angústia, mas não falamos de todos os grunges em nenhum momento, e isso provoca uma ilusão em quem olha para o silogismo. Flanelados podem ser dançarinos de quadrilhas, idosos, andarilhos e qualquer outra pessoa que aprecie o tecido. Lamentosos podem ser da MPB, do samba, do (eca!) sertanejo. Além disso, a filosofia grunge não exclui camisas que não sejam de flanela, nem canções que não falem de miséria humana. Por isso, a articulação entre as frases contém um defeito lógico, e isso faz dela uma falácia formal, chamada de termo médio não distribuído, da mesma família dos ilícitos maior e menor.

O termo médio é discreto, pelo fato de não aparecer na conclusão de um silogismo. Este modelo de pensamento precisa de uma mediação, porque as premissas não são suficientes para que se perceba o encadeamento lógico. Como Aristóteles queria reduzir o pensamento a formulações, percebeu que era necessário em elemento de ligação entre premissas, algo que fosse comum a ambas e pudesse estabelecer um vínculo racional.

Já expliquei que, no exemplo dado, temos uma falácia formal, que é dedutível por si mesma. No caso, o termo médio, além de não ser tomado em sua máxima extensão em nenhuma das duas, liga duas premissas que não possuem identificação entre si, e isso resulta no pensamento absurdo.

Minhas fotos estão lá, esperando a próxima mudança. Quem vive de aluguel é assim mesmo, pulando de galho em galho. Às vezes me sinto como o eu-lírico da canção Pais e Filhos, do Legião Urbana: “Já morei em tanta casa que nem me lembro mais”. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livro que fala sobre a principal figura do movimento grunge, a mais emblemática de todas, que minha nora inclusive utilizou em sua monografia de formação na faculdade de jornalismo.

CROSS, Charles. Mais Pesado que o Céu: Uma biografia de Kurt Cobain. Rio de Janeiro: Globo, 2002.

Navegações de cabotagem – o Mercado Municipal de Guararema e o mercado, divindade moderna

(Mercado é um termo tanto afetivo, quanto aterrorizante. Tudo depende a que estamos nos referindo)

“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que devemos esperar nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse”

Adam Smith

Olá!

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Este texto só não fez parte do anterior porque eu queria tratar de outro tema. Até porque era só atravessar a rua. Quando falamos do centro de Guararema, uma cidade que nasceu em função de um rio, pensamos naquela espécie de parque linear que acompanha os contornos do Rio Paraíba do Sul, onde estão os bares, os restaurantes e o comércio em geral, mas há algumas travessas onde continuamos a encontrar coisas boas. Da mesma forma que fui conhecer a Casa da Memória, também achei que seria legal conhecer o Mercado Municipal local, modelo de negócio que é muito comum em todo o Vale do Paraíba. Vamos até lá.

Os mercados municipais são, na sua maioria, entrepostos que serviam para distribuir produtos agrícolas utilizáveis nas viagens dos tropeiros, razão pela qual são sempre equipamentos históricos muito importantes, porque é praticamente um distintivo de que aquela localidade era rota dos caminhos de expansão do Brasil.

Eles ficavam em grandes praças públicas, onde era possível estacionar as tropas para alimentar os animais e fazer as negociações e escambos de produtos.

Como os ciclos de subida do litoral para as regiões produtoras e auríferas se deram há alguns séculos, a arquitetura dos mercadões costuma pertencer aos mesmos períodos históricos, salvo os casos em que ocorreu uma descaracterização dos edifícios originais.

No caso deste mercado em específico, ele teve uma reforma recente e, portanto, está trincando de novo, com todas as coisas nos seus devidos lugares, com os tijolos maciços expostos e estruturas em arco dando um bom exemplo de soluções de época.

O Mercado Municipal de Guararema não é gigantesco como seu correlato paulistano, com seus produtos gourmetizados, ou mesmo seu irmão de Taubaté, verdadeira feira livre coberta. É mais uma atração turística que contém produtos locais e convencionais, alguns típicos da região.

Alguns deles são marcantes na região, que é rica na produção de verduras (faz parte do Cinturão Verde de São Paulo), orquídeas e cachaça.

Desta última, a amplitude da gama de produtos faz com que surjam algumas coisas exóticas, como a cachaça de caranguejo, uma daquelas velhas misturas que se dizem afrodisíacas. O velho efeito placebo (quando funciona).

Nós falamos muito de mercados em seu contexto predial, como o local em que vamos fazer nossas comprinhas e queimar nossos escassos níqueis. Esse é seu sentido mais popular e que guarda até uma certa afetividade. Eu-criança, por exemplo, tinha uma escala mensal de idas ao mercado. Quando era tempo de pagamento, minha mãe ia até um supermercado para “fazer despesa”, ou seja, a compra grande do mês, que precisava resistir até o próximo salário. Ficava um tanto longe, mas como não tínhamos carro, o negócio era levar um carrinho de feira para as necessidades mais imediatas e esperar o caminhão entregar o restante no final do dia. Gostava um bocado dessa compra porque eu me punha a pilotar o carrinho de mercado, e sempre me sobrava uma bolachinha recheada. Quando as coisas acabavam antes do previsto, ou para comprar perecíveis e inesperados, já aí a operação se dava nos empórios e mercearias, genericamente tratados por mercadinhos. Era famosa a “Venda do Chico”, que até virou ponto de referência naqueles tempos em que os bairros ainda tinham um certo ar interiorano: servia para indicar a rua que subia para a Vila Santa Clara, para “apear” do ônibus, para achar o começo da Estrada do Oratório. Era lá que se compravam esses remanescentes menores, mais caros que o supermercado, mas bem mais perto de casa.

Só que esse não é o sentido único dessa palavra, sendo que sempre que a ouvimos no noticiário, trememos nas pernas. O mercado parece uma espécie de divindade que guia a economia de um país para o Olimpo ou para o precipício, muitas vezes de forma imprevisível, e que nos empobrece ou faz respirar. Isso tudo coloca essa entidade no mesmo patamar de outros deuses quaisquer, ou seja, somente os iniciados conseguem se comunicar e interpretar seus sinais, os economistas. Mas, como toda e qualquer atividade humana, também aqui conseguimos achar fundamentos filosóficos, e é o que tentarei fazer agora. Acompanhem o tio.

Estudar a etimologia da palavra mercado já nos ajuda a entender algumas coisas. A referência direta é ao latim mercatus, o lugar onde os antigos romanos se encontravam para realizar o comércio. A raiz mais profunda da palavra, entretanto, vem de Mercúrio, o deus romano correspondente ao Hermes grego, e que regia os negócios, a oratória e as trapaças. Parece tudo coligado? Pois é mesmo. Os comerciantes eram todos como raposas prontas para dar o bote nos manés, a ponto de ser criado um provérbio que tinha o enunciado de caveat emptor, ou “cuidado, comprador”. Servia para alertar que o incauto está sempre prestes a tomar prejuízo nas operações comerciais. Talvez isso explique os códigos de defesa do consumidor. Não que todos os comerciantes queiram nos golpear, mas, se fosse possível distinguir os bons dos maus, não teríamos tantas piadas a esse respeito.

Mas o mercado, no ponto de vista racional, é algo mais abstrato, uma espécie de espaço que abarca os componentes que faz girar os recursos de uma determinada sociedade. Os principais fenômenos que fazem parte desse espaço são a oferta e a demanda. Para isso, precisamos pensar um pouquinho em como surge o comércio.

Imagine você em um tempo antigo, já dominando as técnicas agropecuárias, mas precisando se virar por si próprio, o que lhe faz perceber que há momentos em que te sobra coisas que você plantou para comer, e há os momentos em que te faltam outros objetos de necessidade. Tendo seu vizinho esses mesmos objetos, é lícito imaginar que você queira conseguir com ele alguns que lhe sobrem. Como a solidariedade humana é um conto da carochinha, ele certamente concordará em trocar contigo alguns produtos, desde que haja um consenso entre ambos de que há justiça no ato. Esse é o escambo, a forma mais primitiva de comércio. Tudo funciona nessa base, apenas trocando a mercadoria física por dinheiro.

Agora imagine que você tenha algo que todos queiram ou precisem muito, como uma erva que cure uma determinada doença que tem se espalhado em epidemia. Essa erva, antes ordinária, passa a ser preciosa, e você poderá exigir muito mais do que conseguiria por ela em situações normais. As pessoas ao seu redor estarão dispostas a oferecer mais por ela, e, com isso, diante de uma procura grande, a oferta vai se tornando mais e mais escassa, te autorizando a cobrar ainda mais por ela.

Só que chegará um limite. Você pode pedir tanto por sua erva milagrosa que não haverá quem queira ou possa pagar o preço que você propõe, preferindo enfrentar a epidemia sem o conforto oferecido. Neste caso, sua erva começará a ficar estocada e estragando, até que o movimento se inverta e você aceite comerciá-la por menos. Pode ocorrer ainda que um de seus vizinhos consiga uma muda da tal planta e passe também ele a oferecer o produto, de modo a passar a existir uma oferta mais abundante. Para conseguir esvaziar os estoques mais rapidamente, você passa a aceitar retribuições menores pela sua venda, o que também pode acontecer pelo chato do vizinho. É a tal da concorrência.

Esses são os princípios básicos que norteiam o mercado, cuja lei geral é regida por oferta e procura: os preços são guiados pela articulação entre ambos, que se movimentam de formas inversas. A oferta maior faz com que o preço caia, enquanto a demanda maior faz com o preço suba. Vale o inverso - oferta menor, preço maior; demanda menor, preço menor.

Os economistas defendem essa lei da mesma forma que os astrônomos defendem a gravidade e os biólogos, a seleção natural. Isso ocorre porque parece existir uma espécie de algoritmo  por trás de um movimento natural. Mas a observação da vida prática demonstra que muitos fatores podem perturbar essa ordem, como a formação de cartéis e a intervenção governamental. No primeiro caso, os empresários de um determinado setor agem em conluio para impedir que os preços caiam, como são os clássicos casos de especulação imobiliária. Basta que se olhe o tempo que demora para um prédio ser preenchido totalmente. Meu melhor exemplo é quando passo pelo elevado onde começa a Radial Leste. Transito às oito da noite e vejo os novos prédios da Baixada do Glicério. Apesar de novos, eles já têm mais de cinco anos, e pelo menos a metade deles está apagada. Ninguém nesta cidade dorme a esse horário, portanto, são apartamentos vazios. Se os apartamentos são caríssimos e não são vendidos, por que seus preços nunca caem? Teorizo que a venda de metade deles já é suficiente para dar retorno à construtora, e o que vier daí para frente é lucro, na mais pura acepção da palavra. Isso não é possível de fazer se todas as construtoras não agirem da mesma forma. Compreendem por que o preço do imóvel não cai? E isso porque estou falando do Glicério, uma parte pobre da cidade.

Já o governo pode interferir no mercado de forma oposta. Um exemplo acontece quando o dólar ameaça subir, fazendo com que o preço dos importados subam na mesma proporção. Neste caso, é possível que o governo pegue uma parte dos dólares que estão na reserva internacional (dinheiro que fica “embaixo do colchão” para pagar dívidas com entidades estrangeiras) e os disponibilizem aos operadores financeiros. Com isso, usa uma lei do mercado para atuar contra seus próprios princípios, aumentando artificialmente a oferta de dólares para diminuir o seu valor no mercado interno.

Os fatores que influenciam o tal do mercado são tão vastos e detalhados que é um desafio até hoje aos economistas para bem compreendê-lo e entender como se pode fazer previsões sobre ele, como compete a qualquer ciência. Um dos economistas mais definidores dos mecanismos de mercado foi Alfred Marshall, que criou o conceito de ponto de equilíbrio financeiro, que consiste no momento em que oferta e procura chegam a um “consenso” e estabilizam os preços de um determinado produto.

A primeira coisa na análise de Marshall, um  britânico da então nascente escola neoclássica, é distinguir o mercado de curto e de longo prazo. É como quando queremos analisar a teoria da evolução acontecendo diante dos nossos olhos: precisamos olhar a nível microscópico. No caso do mercado de curto prazo, estamos falando de bens de consumo imediato, que, se não forem comercializados, poderão estragar ou perder propriedades, como a erva que usei no exemplo. No longo prazo, é como se olhássemos por um telescópio, analisando um todo. É quando pensamos em bens duráveis, que podem resistir melhor ao tempo, como no caso dos apartamentos*. Nestes casos, a movimentação de preços não é tão imediata como nos casos de curto prazo. De qualquer forma, Marshall criou uma forma visual de análise de uma situação de mercado, que ficou conhecida como cruz de Marshall.

Esse gráfico funciona da seguinte forma: em um plano cartesiano, onde as coordenadas dizem respeito a quantidades (x) e preços (y), são inseridas duas linhas curvas: uma que representa a variação de preço da demanda e outra, a variação da oferta. A oferta, que está na perspectiva de quem vende, nasce do preço mínimo aceitável para a venda de um produto e vai crescendo à medida que se procura uma maior lucratividade pelo aumento das quantidades produzidas. Sob o ângulo de quem consome, a curva de procura vai do preço mais alto para pequenas quantidades oferecidas até o preço mais baixo que estimula novas compras. Vou utilizar uma moderna planilha gerada por um avançado módulo financeiro para exemplificar o gráfico:

Gráfico 

Percebam que a informação central do gráfico é o ponto de interseção chamado de equilíbrio, e é nele em que o mercado de um determinado produto se estabilizará. Variações muito grandes de preços ou produtos tenderão ao fracasso, já que o ponto de equilíbrio é atrativo - preços muito altos serão refutados, preços muito baixos trarão prejuízos. Por outro lado, quantidades muito pequenas serão consumidas de imediato, sendo insignificantes no mercado, enquanto quantidades muito altas são inviáveis financeiramente.

Como essa, muitas outras ferramentas foram criadas por diferentes economistas para tentar compreender esse tal de mercado, uma entidade tão estranha quanto qualquer outra que transcenda a realidade em si mesma, razão pela qual vou parar por aqui, porque eu mesmo já estou ficando cansado. Mas é o suficiente para demonstrar que não é um mundo tocado pela caridade, mas pelo interesse das pessoas. É um mal em si mesmo? Deve ser, mas tem coisas com as quais precisamos lidar como elas são, e não como queríamos que elas fossem.

As ações do deus mercado são válidas também aqui, no pequeno mercado de Guararema? Certamente sim, com a diferença de que aqui eu posso puxar um papo com a menina que serve o café e que me conta da paz que encontrou em sua vida, ou do rapaz da cachaça que me engabela com as vantagens reprodutivas da cachaça com caranguejo. Talvez esse Deus não seja de misericórdia como falam dos outros. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Para quem curte Economia, é uma das obras essenciais.

MARSHALL, Alfred. Princípios de Economia. Col. Os Economistas. São Paulo: abril cultural, 1982.

Para quem quiser visitar o Mercado:

Mercado Municipal de Guararema

R. Major Paula Lopes, 125

Centro

Guararema/SP 

A aproximadamente 75 km do centro de São Paulo

*Minha hipótese permanece válida porque, do ponto de vista do vendedor, há as necessidades imediatas, como pagamento de salários e compras de materiais são imediatas, embora se trate de bens duráveis. Se é possível considerar para eles um bem durável, isso significa que já lhes foi possível fazer reserva suficiente para especular.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Navegações de cabotagem – a Casa da Memória de Guararema e o que é a memória quando ela volta à cabeça

(Memórias puxam memórias. Mas como elas são os tijolinhos da construção do conhecimento?)

“A memória age como a lente convergente na câmera escura: reduz todas as dimensões e produz, dessa forma, uma imagem bem mais bela do que o original”.

Schopenhauer

Olá!

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Dei uma passeadinha com a patroa para comemorar o aniversário de casamento. Não há novidade nenhuma nisso, mas, como as coisas estão enroladas no meu pedaço, a coisa teve que ser curta e próxima. As mudanças minha para Taubaté e do fedelho mais velho de Curitiba custaram uma exorbitância, e não deu para concretizar grandes projetos.

Acontece que tem lugares agradáveis aqui por perto de São Paulo mesmo. E uma pousada baratinha (mas sem baratas) é suficiente para passar uns momentos legais em boa companhia. Achei uma dessas a cerca de 70 km, na cidade de Guararema, que não é novidade para mim, porque já passei por essas bandas.

Não fiquei só internado na chácara, porém. Fui dar minhas bandas para comer alguma coisa e passear pela agradável cidade, e fui encontrar, bem no centrinho, um pequeno museu de artigos históricos da região, chamado de Casa da Memória.

A intenção é resgatar um pouco da história das famílias que construíram a cidade, muito mais do que contar a história do município em si. Eles dão muita importância em passar essa visão aos visitantes.

Por essa razão, nota-se um tom pessoal em casa um dos objetos que estão expostos nas proteções de vidro, como se fossem coisas que pudéssemos achar nas salas das casas de nossas avós.

São hábitos, costumes e habilidades que cada um dos cidadãos compartilha com o restante de sua comunidade, dando tons de universalidade para quem vem de fora e de comunitarismo para quem é da casa.

As histórias nem sempre são felizes, nem sempre são tristes, mas podem ser sintetizadas nestes objetos que representam tempos de paz e de batalha.

Representam o trabalho dos indivíduos espelhado na sociedade, na medida em que são reconhecidos por todos como objeto comum do passado.

Muitos dos objetos expostos são de meu testemunho também, que foram substituídos por meios mais modernos e mais eficazes. Alguns puxam pela memória a marotagem dos antigos comerciantes, que aproveitavam o material ferroso dos ponteiros para atraí-los com ímãs colocados discretamente no canto dos visores.

Alguns itens são verdadeiramente afetivos, porque lembram nossas avós e madrinhas, nossos tempos de criança e das diversões simples que praticávamos. Era uma forma de brincar de adulto utilizar as máquinas e utensílios para fazer o pão e o café nosso de cada dia.

Enfim, são as pequenas coisas que constroem a memória coletiva de uma população.

O nome oficial deste lugar tem o acréscimo de “Dona Nini”. Pelo que vi no site da prefeitura, é uma senhora exemplar que sintetiza todas as virtudes do morador comum de Guararema. Desta forma, ao invés de homenagear algum grandão que nunca nem de longe lidou com objetos prosaicos como os expostos, buscou-se dar relevo ao próprio povo que formou a cidade. 

É meio brega esse meio quase sentimentalismo, mas é que essas coisas da memória estão no nosso dia-a-dia, e podem ser percebidas nos mais simples fatos. Mas não são somente uma coleção de objetos que nos trazem afeto e conforto, ou que nos fazem pensar nas coisas boas do passado. A memória, e talvez essa seja a sua melhor função, é o repositório de informações que utilizamos para adquirir conhecimento. Basta que pensemos em uma mera operação matemática, do tipo 2+2=4. Para fazê-la, vamos resgatar elementos abstratos de nossa memória, como os conceitos de algarismos, de seus valores, de operações de adição e de igualdade. Mas também buscamos fatores concretos: quando pegamos o lápis para rabiscar a conta no papel, resgatamos o desenho dos números e dos operadores, por exemplo. Então percebam que todo o fluxo de dados que percorre a consciência tem como elemento primário a busca de informações na memória. Uma informação nova é armazenada na memória, e quando é trazida de volta é uma reminiscência.

Isso não foi percebido apenas nos dias de hoje, mas há registros esparsos desde há muito, e que redundou em interessantes discussões na Antiguidade Clássica, representadas especialmente na oposição das visões de Platão e Aristóteles.

Platão entendia que as memórias eram elementos inatos que eram reavivados de acordo com racionalidade. Segundo ele pensava, todos nascemos com a capacidade intelectual de acessar as formas perfeitas do mundo das ideias, porque a alma é eterna e carrega consigo, aprioristicamente, todos os conhecimentos do universo. Quando encarna, entretanto, a alma passa a conviver com os sentidos, que distorcem a cognição. Isso acontece porque permanece na alma a capacidade de reconhecer as formas das coisas, mas que somente são captadas na materialização imperfeita da concretude. Parece coisa de espírita, e talvez seja mesmo.

Mas o que são essas tais formas? Lembram das discussões dos filósofos da physis, que buscavam o elemento essencial de todas as coisas, a sua substância, a sua arché? Eles buscavam a essência em uma materialidade que fosse comum a tudo, enquanto Platão faz sua teoria em um outro sentido: não é a matéria que explica a natureza, mas a sua forma, ou seja, um paradigma que é comum a todos os existentes daquela espécie que é absorvida. Dessa forma, quando olhamos para uma banana (estou olhando para uma banana na feira da Água Branca), independentemente de ser nanica, prata, ouro, maçã, figo, pão, São Tomé, da terra ou vermelha, captamos a forma “banana” e a reconhecemos como tal. 

E como um contribuinte pode fazer para considerar conhecer? Aí cabe a atitude filosófica de abstrair o objeto concreto e resgatá-lo do modelo ideal. A banana que vejo sobre a banca é uma concreção do modelo banana, assim como todas as outras que lá estão. A cada exemplar, tenho um resgate, e lá eu devo saber que há algo que é próprio de cada uma das bananas e algo que é comum a todas elas. Por exemplo: umas são mais curvas, outras menos. Se eu for usar instrumentos, perceberei que mesmo aquelas que parecem idênticas possuem discretas diferenças em seu ângulo de curvatura (a tal ilusão dos sentidos que Platão tanto fala). O que é comum a todas e que as caracteriza como tal é a existência da curvatura, e isso pertence à sua forma. Essa forma reside em nós previamente, acessíveis unicamente através do intelecto.

Sendo assim, todas as vezes que captamos um novo objeto, nada mais fazemos do que restituir os modelos que previamente conhecemos no mundo das ideias. Esse é o processo de reminiscência platônico, que considera a memória algo eterno e permanente, assim como seria a própria alma.

Já Aristóteles vira essa lógica de cabeça para baixo. Os processos cognitivos também se baseiam em memória e reminiscência, mas de maneira totalmente diferente.

A primeira coisa que Aristóteles estabelece é que não existe um mundo intelectual destacado da própria realidade, mas somente a realidade em si mesma. Isso implica em sua teoria do conhecimento: se você quer conhecer as coisas, você precisa ir até às próprias coisas. E você não pode ir até às próprias coisas se não for para vê-las, para ouvi-las, para respirá-las, para senti-las. E isso tudo só é acessível através dos sentidos, com tudo o que há de defeitos neles. Desta forma, estava estabelecido o primeiro confronto entre idealismo e realismo da história conhecida. Platão certamente se virou na cova ao saber das teses de seu pupilo.

Aristóteles entende que somente com a memória somos capazes de estabelecer juízos. O seu processo consiste em gravações de imagens mentais derivadas dos contatos com os objetos. Quando percebemos alguma coisa, fixamos a conformidade deste objeto em nossa mente como se fosse uma escrita, de modo a criar um registro que só não é permanente porque o tempo pode fazê-lo desvanecer. De todo modo, é com essas imagens mentais que se articula o nosso raciocínio. Se o contato com o objeto não é suficiente para criar a imagem, então ele não estará no nosso campo cognitivo.

Dessa forma, a memória é, para Aristóteles, tanto uma operação cognitiva quanto uma condição orgânica. É indispensável à memória que ela funcione bem, e, embora não se conhecesse os processos de Alzheimer nos tempos de Aristóteles, é um bom exemplo que podemos ter para entendermos como a memória precisa estar funcional para exercer suas funções.

Agora, com relação ao modo como a mente opera com os conteúdos da memória, precisamos compreender alguns conceitos aristotélicos que diferem um pouco daquilo que usamos hoje em dia no senso comum: imaginação, fantasia e fantasma.

Quando buscamos uma imagem mental em nossa memória para compor um raciocínio, o que temos de resultado não é algo exatamente igual ao objeto com o qual tomamos contato através dos sentidos. Ela depende do quão bem gravada ficou a representação do objeto. Algumas vezes, comparando com uma impressora a jato, a tinta está acabando e a impressão sai toda falhada. Em outras vezes, pegamos o papel com a mão molhada e a impressão é borrada. De qualquer forma, a imagem armazenada não é igual à imagem real. Sendo assim, entre o objeto colhido pela sensibilidade e a imagem mental que temos armazenada da memória temos um processo de resgate denominado fantasia, ou seja, a operação mental com os fantasmas, ou seja de novo, as representações dos objetos sensíveis. Em miúdos, quando você olha uma hipotética xícara de café, você guarda isso na memória em forma de imagem que, quando maior o detalhe obtido, maior será a fidelidade da gravação. Ao rememorar essa xícara, a mente obtém não a xícara em si mesma, mas uma cópia da imagem mental que servirá para realizar suas operações mentais, e essa cópia tem suas diferenças com o original, e damos a ela o nome de fantasma. Toda essa operação é a fantasia, a capacidade que o cérebro tem de operar com fantasmas.

Aristóteles informa ainda que não há como produzir conhecimento sem que se faça uso de imagens, que é parte integrante da intelecção, no final das contas, porque as imagens constituem os seus tijolinhos. A imaginação é a atividade voluntária de resgatar os conteúdos da memória e adicioná-los aos raciocínios de forma a produzir encadeamentos lógicos. Sem imaginação, não temos como dar elementos para a produção de conhecimento.

Fantasmas não são aparições noturnas, mas concretizações de imagens mentais; fantasia não é devaneio intangível, mas processos de resgate de memórias, e imaginação não está ligada à criatividade, mas ao uso das imagens na composição dos pensamentos. E isso tudo ajuda a explicar o mecanismo das reminiscências em Aristóteles, completamente dissonante da eidética platônica. A reminiscência é uma atividade tipicamente humana de produzir conhecimento a partir da experiência vivida, do depósito de informações obtidos a partir do universo em si mesmo, e não de uma eternidade adquirida diretamente das almas, independentemente da matéria, como quereria seu mestre. Ou seja, as formas que estariam no mundo das ideias, na verdade estão no próprio intelecto que constrói o conhecimento, e a reminiscência é a maneira com a qual as formas são trazidas ao plano mental para efetuar suas relações lógicas e causais.

Talvez os religiosos gostem mais de Platão, e cientistas, de Aristóteles, por conta da primazia que cada um dá à metafísica e à materialidade, respectivamente. Entretanto, isso não pode ser estabelecido como uma regra. O mais importante é que cada um deu uma guia-mestra para a maneira com a qual a memória e seu resgate podem ser trabalhados no âmbito filosófico de modo a trazer reflexos no pensamento até os dias de hoje. Platão não falava de extrações do universo ideal de artefatos, então a Casa da Memória está mais para aqueles que apreciam Aristóteles e sua agregação de conhecimento através das imagens. Afinal de contas, saber juntar um ponteiro de balança com um ímã é conhecimento que salva alguns cobres do desanimado adquirente de batatas. Bons ventos a todos!

Recomendações:

O principal tratado de Aristóteles (mas não o único) sobre o tema vem do livrinho abaixo, que está em um contexto bem mais geral, mas que é daqueles que a gente lê em uma sentada só. 

ARISTÓTELES. Da Memória e Reminiscência. São Paulo: Loja Kindle, 2018. E-Book.


Com relação ao equipamento, segue o seu endereço. Vale a visita, bem como a todo o restante da cidade.

Casa da Memória Antonia Guilherme Franco (Dona Nini)

R. Dona Laurinda, 138

Centro

Guararema/SP 

A aproximadamente 75 km do centro de São Paulo