(A morte do papa ressuscita uma velha profecia)
“Só entendemos as profecias quando elas acontecem”
Pascal
Olá!
Morreu o Papa Francisco. Em outras épocas, eu estaria
aflito, preocupado com as diretrizes que a Igreja Católica iria tomar. Para
além das piedades e caridades, mudanças no Vaticano poderiam apresentar avanços
ou retrocessos políticos, e, dessa forma, influenciar a vida nas paróquias,
onde vivíamos e militávamos. Isso acontecia porque a igreja era bem mais
presente na vida das pessoas, e, se já sentíamos impactos nas mudanças de
bispos, quanto mais não se esperava com a chegada de um papa novo. Hoje em dia,
despido de fé, cumpre a mim o interesse pela curiosidade e pela reconhecida
influência que, embora menor, ainda se exerce sobre as sociedades ocidentais.
É preciso esclarecer alguns pontos. Um filho do proletariado
deveria se incomodar com os destinos da Igreja Católica? Para quem olha para a
face mais conservadora, que proíbe as pessoas de se entenderem com seus
próprios corpos, que mantém uma estrutura antiquada e que renega as mudanças do
mundo, de fato não faz muito sentido. Só que quando lembramos que era das CEBs
que vinha o estudo disponível para os bairros periféricos, que veio dela muita
defesa de direitos humanos na ditadura e que é a partir dela que as Santas Casas
foram criadas, notamos que se deram momentos em que havia apenas ela para
recorrermos.
É bem verdade que o fenômeno evangélico, onde os pastores se
metem muito mais na vida dos fiéis estendem sua influência de maneira muito
mais estreita em suas assembleias, obnubilaram significativamente a presença
católica na sociedade, mas é preciso lembrar que isso é fenômeno recente, e o Cristianismo
como um todo moldou decisivamente os pensares e fazeres dos latinos, nós
inclusos.
O que explica melhor minha expectativa, no entanto, é que eu
não só era um frequentador das naves, mas das sacristias. Eu fiz de tudo na
igreja. Fui um catequista incômodo, porque dizia a rapazes e moças que
deveríamos cuidar de controlar nossos impulsos, mas sempre ter um subterfúgio
de látex para quando fosse impossível resistir. Eu era um músico que tocava
trechos de Cio da Terra nos ofertórios ou de Pérola Azulada no Dia da Terra. Eu
era, principalmente, um instrutor de coroinhas que recomendava aqueles cuidados
óbvios que vocês devem estar pensando. É… não tinha como dar certo. Mas
funcionou por quase vinte anos. Eis o bumbo da minha bateria com a iconografia
dos tempos em que eu mandava minhas pancadas na São Francisco.
Essa relativa liberdade existia porque eu trabalhava com os franciscanos, a ala mais progressista dos católicos. Confrontados com setores mais conservadores, muito mais ligados à forma ortodoxa dos cultos e mantença de costumes, pareciam fazer parte de outra religião. Então qualquer mudança poderia parecer desejável, só que o medo era que fosse para trás. É preciso lembrar que o papado de João Paulo II foi longuíssimo, com mais de 26 anos, e a igreja ficou estacionada por todo esse tempo, dado seu perfil pouco dado a grandes guinadas. Foi até surpreendente a eleição do argentino moderado, em um cardinalato formado na sua maioria por nomeações mais conservadoras. Isso é o que dava mais medo.
Os franciscanos, mesmo com meu afastamento da religião,
continuam guardando meu respeito. Quando a pandemia começou, lá estavam eles,
na linha de frente do apoio à população de rua, que depende diretamente da
existência de pessoas para fazerem esmolas. O Chá do Padre forma filas todos os
dias no largo de São Francisco. A ceia de Natal dos pobres, os cursos para
estudantes carentes, o apoio aos idosos, o acolhimento de estrangeiros, o
aviamento de reciclagem, praticamente todas as ações sociais do centro de São
Paulo estão vinculadas aos franciscanos.
Esse aspecto caritativo e a escolha do nome adotado pelo
cardeal Bergoglio fez eu dar uma das maiores barrigadas da minha vida. Quando
ele optou pelo nome Francisco, inédito no rol de papas até então, o pessoal da
São Francisco exultou com a homenagem ao poverello de Assis. “Bando de
burros”, pensei eu, sem empatia alguma. Frente às pouco comentadas (mas
conhecidas no meio) rusgas entre jesuítas e franciscanos, tolamente pensei que
a homenagem iria para São Francisco Xavier, este sim nome emérito da ordem do
novo papa. No final das contas, o burro fui eu, porque o entendimento foi
acertado, e eu, arrotando conhecimento e empáfia, falei uma grande merda. Mais
um aprendizado para aquele que vos fala.
Mas eu queria falar sobre a rememoração de uma profecia que
sempre acontece por ocasião da morte de um papa. Desde que me conheço por
gente, assisti a quatro passagens de bastão: começando pela morte de Paulo VI,
as de João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco I, envolvendo cinco
papas ao total. A que veio após a morte de Paulo VI foi ainda na minha
infância, mas fiquei marcado pelo medo da profecia de São Malaquias, já
bastante explorada pela mídia da época, a ponto de ser necessário um longo
sermão do vigário da região, Padre Antônio, informando que ninguém precisava
ficar alarmado. Pois é, fake news não vem de hoje.
A tal da profecia dos papas é um texto atribuído a um abade
irlandês do século XII, São Malaquias de Armagh. O texto descreve, através de
designativos, uma visão em que o clérigo teria vislumbrado a sucessão de papas
que ocorreria através dos tempos, partindo do momento dessa revelação até o que
seria o último dos sumos pontífices, o Papa Pedro Romano, ao término dos
tempos. Como ele enumera 112 papas nesta lista, então estaríamos, em algumas
contagens, com o papa recém falecido sendo ele próprio o Pedro Romano ou sendo
o seguinte, que será escolhido no conclave que está acontecendo agora,
dependendo da interpretação que se fizer das contagens. Como o Papa Francisco
já morreu, parece que a aposta vai recair neste que vem em breve.
A questão é que a profecia somente aparece escrita quatro
séculos depois do início da lista, em uma coletânea de textos coligida pelo
monge Arnoldo Wion chamada de Árvore da Vida. Lá, a profecia dos papas lista-os
por designativos, e não pelo nome próprio. Eles dizem respeito à origem, a
fatos marcantes da vida do pontífice ou mesmo de aproximações com o nome de
batismo. Neste escrito, nota-se que os primeiros papas descritos têm uma
precisão impressionantemente grande. Por exemplo, o 13º papa da lista é
Clemente III, que é apontado como “de schola exiet”, que significa “ele
virá da escola”. O nome próprio deste papa é Paolo Scolari, o que demonstra uma
proximidade muito grande. Já Urbano IV, francês da região de Champagne, é
designado “Jerusalém de Champagne”, e por aí afora. É impressionante, mas a
questão é que essa precisão se perde a partir do século XVI, justamente quando
se dá a publicação do livro de Wion. Os designativos passam a ser mais
genéricos, podendo ser encaixado com justificativas mais amplas, sendo que
várias vezes era necessário forçar a barra para dar liga. Designativos como
“fogo ardente”, “fé destemida”, “de boa religião” podem ser atribuídos
praticamente a qualquer cristão, com muito mais facilidade que os primeiros
vaticínios, e assim a profecia continua se “realizando”.
Somado ao fato de não se encontrarem outras fontes que
contenham a profecia, tal fenômeno denuncia que não há historicidade neste
texto. Para os adeptos da tese de que o último papa seria Francisco, já deram
com a cara no muro. Quanto aos que julgam ser o próximo, veremos. Quando você
sai do campo e vai para a arquibancada, acha o jogo mais maluco ainda, e tem
gente ressuscitando essa história por chacota, mas há pessoas religiosas, de
dentro da igreja que leva a história a sério.
E por que diabos (epa!) alguém faria toda essa história da
carochinha? A troco do que? São boas perguntas. A consequência direta é dar
credibilidade para uma profecia, algo normalmente muito difícil de fazer, como
provam outras técnicas, como a ambiguidade. Manter uma aura de mistério sempre
prenuncia a necessidade de um iniciado que interprete o dito, o que dá uma
autoridade a esse vate, porque somente ele e poucos outros mantém contato
direto com as divindades. Também é possível pensar em problemas de tradução,
seja das palavras, seja das intenções, o que pode distorcer a versão
apresentada. Ou pode simplesmente ser uma chacota, ou ainda uma vontade de
concretizar um desejo, talvez até de boas intenções. Há ainda a intenção de dar
consistência para algumas predisposições morais que, com a existência de uma
profecia, ganha aspecto mais divinatório, e, portanto, com a chancela da
divindade que lhe dá cobertura. O fato é que a manobra é falaciosa e
exemplificativa de um artifício muito utilizado quando se quer dar a impressão de
que uma profecia foi cumprida. O nome que os historiadores dão a ela é vaticinium
ex eventu, ou vaticínio após o evento.
A ideia é simples. Ao atribuir um fato qualquer a uma fonte
muito antiga, eu ganho a possibilidade de dizer que estava adivinhando um
evento que, na verdade, eu já conhecia. Ou seja, eu “prevejo” fatos passados
como se eles ainda fossem acontecer no momento em que faço o vaticínio. É um
modo que, a um primeiro olhar, parece ingênuo nos dias de hoje, mas que
funciona muito bem com eventos antigos, ou seja, onde há dificuldade de
estabelecer a cronologia exata dos eventos. A própria dedução de que a profecia
dos papas é furada se dá por meios indiretos, notadamente pela mudança do teor
das descrições, que mudam do certeiro para o ambíguo em um momento específico,
o que é a melhor certidão de que tem carne por baixo do angu.
A melhor explicação psicológica vem do viés de juízo
retrospectivo, aquele famoso efeito eu-já-sabia que tenta nos colocar como
renomados analistas dos mais variados assuntos. Falei com detalhes sobre ele neste
texto, mas, só para criar um elo com o que estou discutindo agora, trata-se
da tendência em acreditar que algo do passado era mais passível de previsão do
que era de fato após a sua concretização.
Esse é só o exemplo que me inspirou o texto. O vaticinium ex
eventu é sobejamente utilizado em épocas antigas. Bons exemplos vêm da própria
Bíblia. Historiadores sérios (inclusive cristãos) perceberam que muitas
das profecias contidas nos Evangelhos foram escritas após os fatos que preveem.
Isso porque, partindo da premissa de que o Evangelho mais antigo, o de São
Marcos, foi escrito cerca de 40 anos após os fatos que procura descrever,
deduz-se que todos os eventos ocorridos no período que vai da morte de Jesus
até a escrita do texto já eram conhecidos. A destruição do templo de Jerusalém,
por exemplo, já era um acontecimento, e não uma predição. Outro caso está no
livro de Daniel, que é preciso nas incursões de Antíoco IV na Judéia, mas
tropeça nas previsões sobre sua morte. Isso significa que ele é escrito durante
o reinado do déspota em questão, e não antes de sua chegada ao palco dos
eventos.
Sendo assim, podemos concluir que nossa sanha por grandes
eventos traz predisposições para aceitar manobras falaciosas, que deem qualquer
fundamento maior a eles, mesmo que nasçam do absurdo. Que o novo papa seja digno
digno de admiração até mesmo de nós, ateus. Isso significará que ele será bom
para a humanidade inteira. Amém! Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Nada como ir à própria fonte. Tem um endereço onde podemos
ler a árvore da vida completa, com a dificuldade de ser o texto original em
latim, mas que é facilmente compreensível na parte da profecia.
WION, Arnold. Lignum Vitae. Disponível em: https://archive.org/details/bub_gb_a4o8AAAAcAAJ/page/n3/mode/1up.
Acesso em 26.04.2025.