(Fui cumprir a promessa, e não gostei do que vi. Mas dá para assistir)
“O homem inventou o ideal para negar o real”
Nietzsche
Olá!
Eu tinha certeza de que me arrependeria. Sabe quando você
tem tanta convicção de um negócio que parece impossível que ele não aconteça,
pelo simples fato de que você ainda tem alguma espécie de fé na humanidade?
Pois é, aconteceu… e eu estou aqui porque gosto de cumprir minhas
promessas.
O fato é que, ainda recentemente, sugeri uma série que nem
estava lançada, mas que, mesmo aqueles que não são ligados nelas já sabiam de
sua premente liberação, dizendo que a analisaria tão logo estivesse disponível.
É a já famosa série Senna, lançada na Netflix. Como usei minha relação com a
memória do piloto para basear um post
sobre falácias, achei justo assisti-la e fazer alguma apreciação crítica, se
possível com alguma injunção filosófica.
O arrependimento é por causa da exatidão do meu diagnóstico
anterior ao filme. Não que eu seja um vate consagrado, ou um renomado haríolo, mas
é que todo o conjunto de circunstâncias era favorável à maneira com a qual a
obra foi desenrolada. Eu tinha a torcida para que tivéssemos alguma novidade
desconhecida, ou que, mesmo sabendo se tratar de ficção baseada na realidade,
houvesse um perfil mais humano de alguém que, ao fim e ao cabo, era justamente
isso: humano.
Em primeiro lugar e sendo justo: há virtudes e não há
dificuldades em assistir a série em seu âmbito técnico e até mesmo artístico.
As cenas de pista são muito boas, começando pela reprodução histórica, com os
patrocínios corretos, os equipamentos, automóveis e vestuários muito fiéis ao
que existiram de fato. As passagens de corrida são de tirar o fôlego, e nisso
estamos no ponto alto. As interpretações são ok como um todo, e é fácil notar o
esforço dos atores em se aproximar de falas e trejeitos dos personagens que
representam. Algum desavisado poderá achar que o ator Gabriel Leone,
intérprete de Senna, é um canastrão que transmite pouca emoção. É um erro
pensar assim. Senna se expressava exatamente daquele jeito, linear, sem grandes
espasmos ou esgares, e nisso ele esteve brilhante. Outros personagens reais
estão bem construídos e os fictícios também não estão mal. As coisas não pegam
nesse ponto, definitivamente. E esta é a parte que permite assistir a série sem
sobressaltos.
O que ocorre é que temos a sensação de estar diante da mesma
mecânica de uma teoria da conspiração: um processo de cherry
picking que junta fatos (muitos fictícios) por cima de um pano de fundo
inautêntico, feito para passar a sensação de perfeição. Em uma rememoração dos
30 anos de um ídolo, quando todos os espíritos estão em estado de catarse pela
tragédia ocorrida, há um reforço completo para a constituição do ídolo no seu
sentido nietzscheano, ou seja, em uma transformação do real em ideal.
A série peca especialmente no aspecto “o mundo contra Ayrton
Senna”. De acordo com o que vimos, ele foi prejudicado no Mundial de kart, na
Fórmula 3, pelo companheiro de equipe, pelos dirigentes da federação, por deus
e pelo diabo (por deus não, ele era cristão). Isso foi repetido à exaustão no
mundo real, elevado com vitaminas e ferro para a série, como se fosse
necessário barrar a qualquer custo a ascensão do brasileiro.
A questão é que uma série baseada em uma vida real, mas
povoada de eventos fictícios (legitimamente) apresenta-se como se fosse toda
verdadeira, sem nenhum esforço de se explicar que não se trata de uma
biografia. E as pessoas sentem a necessidade de receber essa história contada
com contornos de tragédia grega, porque ela parece trazer mesmo algum tipo de
justificativa para suas próprias vidas.
Parece que temos a necessidade platônica de ter uma reserva
de perfeição a perseguir. De tanto correr atrás de vontade de atingir a
verdade, parece que nos encontramos na disponibilidade de sermos enganados. A
vontade de verdade é uma vontade de engano, uma vontade de sermos saciados por
uma completude que não existe, mas que entendemos intimamente ser possível, e
uma predisposição em acreditar em algo que substitua a perfeição, como se
perfeito fosse.
Nietzsche dizia que a verdade é incompatível com a
linguagem. Isso acontece porque a função desta última, a comunicação, precisa
lançar mão de generalizações para construir uma lógica. Em miúdos, podemos
dizer que a verdade seria uma correspondência entre realidade e discurso, do
contrário teríamos falsidade ou mentira. Acontece que, para tentar fazer isso,
é preciso que se fale sobre mais de uma pessoa, ou de um fato, ou de um
fenômeno ao mesmo tempo, o que não dá para fazer. Assim, se eu quero dizer que
a humanidade é racional, eu deixo de considerar cada um dos seres humanos como
eles são para trazer uma informação que eles têm em comum. Mas isso não é
verdade. Há gente irracional e, mesmo aos que damos o nome de racional, há
lapsos em que sua irracionalidade impera, às vezes em maior quantidade do que
ocorre o oposto. Basta que você se veja dentro de um estádio e lembre quantas
vezes chamou o técnico de burro, o árbitro de ladrão, o goleiro de frangueiro e
o centroavante de caneludo. Nestes momentos, não é o pretenso analista de
desempenho que fala, mas o torcedor enfurecido, que esquece de quantas vezes
técnico, árbitro, goleiro e centroavante fizeram seu ofício como deviam. Tudo
isso para concluir que a linguagem é generalizante, enquanto o mundo é composto
por indivíduos. Individualidade, segundo os melhores dicionários, são as
características que tornam o indivíduo único dentre os demais. Dessa forma, se
tentamos atribuir via linguagem uma verdade absoluta, aplicável a qualquer
circunstância, fracassamos miseravelmente.
Mas e a ideia como conceito? Não estaria aí a correta
acepção da verdade? É aí que nasce a vontade de verdade. É preciso que exista
algo fora, que não corresponde à realidade, para traduzir algo que seria
pretensamente a verdade. E aí deixamos de olhar para as coisas mesmas para
decifrar o que elas são, e passamos a dirigir para elas um modelo de perfeição.
Percebem como isso se encaixa perfeitamente não somente à filosofia platônica
de mundo das ideias, mas também ao princípio metafísico de coisas como vida
eterna, céu, paraíso, morada dos deuses? Por essa razão, o ser humano tem
vontade de verdade - onde ele falha como indivíduo, conforta-se com uma
esperança. Mas o que ele tem para si é a si mesmo.
O conceito de vontade de verdade é de Nietzsche, mas ele
teve desenvolvimento extra com Foucault. Ele parte da premissa de que, se há
uma vontade de verdade que busca preencher claros no entendimento, há condições
para manipular como esses claros serão preenchidos. Isso é feito instituindo
uma verdade oficial, que coloca à margem todos aqueles que discordam dela.
Dessa forma, é removida a particularidade de cada um de nós, seu próprio campo
visual, e se busca forçar um consenso sobre qualquer assunto que se possa
divergir.
A questão é de não existir uma verdade absoluta, algo que
vai contra preconizações dogmáticas, em especial ao discurso com modelo
religioso. Se não houvesse uma vontade de verdade inerente ao ser humano, ela
não poderia ser manipulada, e construções como a da série que ora analiso não
teriam o mesmo poder de convencimento que tem.
Atenção: vontade de verdade não é sinônimo de verdade. A
verdade continua existindo, seja ela o que for - um conceito abstrato ou um
reflexo da realidade. A vontade de verdade é uma tendência em atribuir valores
a tudo, especialmente nos quesitos morais. Existe uma concepção de certo e
errado que pode ser atribuída como um decreto a qualquer atitude que se tome, e
normalmente quem legisla sobre esses valores são divindades, que, ao fim e ao
cabo, são a condensação de princípios de uma determinada sociedade. Foucault se
apega à questão sexual, mas qualquer pauta moral pode ser regida por esse mesmo
princípio, mesmo sobre pontos onde não há questões morais legítimas, como pode
ser exemplificado na falácia naturalista (vide).
Dito tudo isso, quando vemos os quesitos biográficos
desenvolvidos na série, vemos que eles não são elaborados de modo a trazer o
Senna humano, mas o Senna heroico. Não faz problema algum de se contar a
história de maneira fictícia, mas, nesse caso, atribuí-la a um personagem real
se torna uma falsificação. O exemplo mais gritante é a quase ausência de uma
personagem Adriane Galisteu. Sabemos que Senna não era o garanhão retratado na
série, mas ele teve seus romances e esse foi o último, ponto final. Se ela o
utilizou como escada na carreira ou não, não importa. Isso é irrelevante.
Relevante é a existência dela, e isso não foi dado a ser contado, supostamente
por uma birra que não arrefeceu em trinta anos.
Mas há outros aspectos esquisitos. É estranho que eles
explorem malandragem mecânicas que seriam muito mais críveis nas mãos do Nelson
Piquet do que em verdadeiras virtudes de pilotagem como as aceleradas
consecutivas nas curvas para manter a rotação sempre alta. Os seus familiares
eram raros em autódromos, e pouquíssima gente penetrava madrugada adentro para
acompanhar suas corridas como se fossem uma final de Copa do Mundo. Isso eu
posso afirmar porque acompanhei não somente todos os seus títulos no Japão,
como suas derrotas também. Fazia isso por conta do meu interesse pelo esporte,
como continuo fazendo, com um pouco menos de frequência, até hoje. Não havia
rojões, nem gritos, nem festas nas ruas.
A vida de Senna poderia ser mais bem explorada, trazendo
aspectos complexos que foram omitidos. Não se fala em aspectos como o conflito
com a McLaren, equipe que lhe consagrou e que foi quase largada para trás
quando já não era o melhor carro do grid. Não explorou detalhes das
controvérsias que teve com o ídolo brasileiro em ocaso, Nelson Piquet, o que
poderia dar um capítulo interessante. Falou pouquíssimo da exuberante temporada
de 1993, talvez pelo fato de que foi justamente o período Galisteu e do chororô
pelo carro do “outro planeta”.
Mas a série fez e continua fazendo sucesso de público. Neste
momento histórico do Brasil, temos algo semelhante ao que ocorreu em 1994:
carência de pessoas que nos façam sentir enaltecidos como povo, e a série cai
como uma luva em dois sentidos. O primeiro, para o pessoal da minha média de
idade, que lembra com saudade das proezas do ídolo; o segundo, para as gerações
seguintes, que não conseguiram ter para si algo parecido. São os mesmos vinte e
quatro anos sem copa do mundo, mesma política polarizada (até pior), mesma
indefinição sobre o país como noção. Além disso, o automobilismo veio como um
lenitivo esportivo porque durante 19 anos o Brasil viu seus pilotos ganharem
oito títulos mundiais. Se levarmos em conta os anos em que houve brasileiros na
disputa do título (contando os vice-campeonatos), o número sobe para 12. Ou
seja, o brasileiro se acostumou a ver protagonismo em uma das poucas áreas possíveis,
o que é uma sonora bobagem. O automobilismo premia quem tem recursos, e não um
talento natural inerente à nacionalidade. Fittipaldi, Piquet e Senna chegaram
lá porque tiveram, de uma forma ou de outra, suporte para tanto. Então é um
patriotismo falso, porque não tem nada a ver com a pátria.
Mas ainda assim as coisas poderiam ter sido diferentes. A
vontade de verdade que pulula em nosso espírito seria receptiva com uma
biografia mais próxima do piloto extraordinário e do ser humano factível e falível,
com os mesmos defeitos que temos e que, por isso mesmo, dono de feitos ainda
mais impressionantes. Ariano Suassuna já dizia que Jesus, sendo Deus, era capaz
de suportar dores, e, por isso mesmo, a devoção com Nossa Senhora ganhava muito
valor, sendo ela humana como todo o povo. A mesma coisa poderia acontecer aqui.
Achei uma oportunidade perdida.
Missão dada, missão cumprida, mesmo que tenha sido por mim
mesmo. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Já havia recomendado o livro Além do Bem e do Mal no texto deste
link, então vou recomendar a base teórica de Foucault, para complementar o que
escrevi no presente post.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo:
Loyola, 1996