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terça-feira, 20 de agosto de 2024

Globalização: o que ela é e o que ela não é

(Globalização é um dos termos que mais causam complicações nas nossas cabeças. Mas, em si, ele não é mais do que um conceito da Sociologia)

“A marca do mundo moderno é a imaginação dos seus beneficiários e a contra-afirmação dos oprimidos. A exploração e a recusa em aceitar a exploração como inevitável ou justa constituem a perene antinomia da era moderna, unidas numa dialética que está longe de alcançar seu máximo no século XX”.

Wallerstein

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Aqui, no Brasil, somos grandes misturas cosmopolitas. Tem gente de toda parte, e assim continua. Dia desses, por exemplo, estava dando um giro pelo Pari e fui fazer uma barba na régua em um estabelecimento de um bengalês. Minha imaginação já flutuou rumo a Hollywood, e fiquei pensando se não apareceria algum hindu acompanhado de uma cimitarra para aparar meus pelos do pescoço. Burro e preconceituoso: um barbeiro não é um verdugo e as cimitarras são árabes, e não indianas. Mas não podia deixar de contar a experiência aqui para vocês. O pessoal de Bangladesh faz parte de um movimento mais ou menos recente de imigração, motivados pela velha miséria ou pela velha fuga da guerra, que inclui nigerianos, camaroneses, bolivianos, haitianos, sírios e tantos outros povos que vêm aqui para dar continuidade nesse fenômeno inexplicável chamado vida.

O brasileiro é uma sopa de letrinhas. Penso em mim mesmo e descubro um pequeno volteio pela Europa. Das descendências conhecidas, é perfeitamente possível depreender outras. Senão vejamos: dos ascendentes espanhóis, é lícito supor que façam parte dos povos mouros que vieram do Oriente Médio, via norte da África. Já dos italianos, há a denúncia da origem francesa pelo sobrenome. Pelo lado armênio, é conjecturável que se traga mais raízes asiáticas, além de alguma coisa eslava. Isso porque minha ascendência é simples e bem conhecida. Se for falar da patroa, os caminhos são ainda mais tortuosos, porque vai incluir uma boa parte de ascendentes de origem desconhecida, vindos dos povos autóctones da América, dos lobos da estepe da Rússia e até com alguma semente da África subsaariana.

Esse é o mundo, um grande gral onde são maceradas culturas e etnias, cada vez mais imbricados por conta das facilidades do meio digital. Somos metáforas da globalização, e isso nos ajudará a entender o quanto este conceito tem sido usado de maneira pouco esclarecida.

Isso tudo porque, de uns tempos para cá, certos termos foram colocados em um mesmo cartucho e chacoalhados todos juntos, como se um fosse consequência do outro, ou como se fossem coisas associadas, o que não são. Eu mesmo já fui "acusado" de uma série de coisas, dentre as quais de petista e comunista, coisas que eu não sou. Também já me disseram que eu sou prosélito do ateísmo e com tendências muçulmanas. Se isso não é uma contradição, nada mais é. E, principalmente, me acusaram do supremo crime de ser "defensor dos direitos humanos". Como assim, uma pessoa pode ser defensora dos direitos humanos? Penso eu que, por ser da área de humanas, já automaticamente me colocam em uma gaveta onde os lenços são sempre os mesmos, não vejo outro motivo para isso.

Isso tudo costuma vir acompanhado de vociferações contra um tal de globalismo, a adesão a um suposto projeto de globalização. Bom, quem fala sobre isso não sabe do que está falando. Portanto, nada me resta a não ser acrescentar um capítulo a esta série. Afinal de contas o que a globalização é e o que ela não é?



O que é?

A globalização é um fenômeno histórico que observa como o mundo como um todo tem se tornado cada vez mais integrado e independente de fronteiras. Não se trata de uma ideologia ou de uma tendência política, mas de uma constatação histórico-sociológica de um fenômeno que ocorreu a partir do momento em que a humanidade passou a dispor de meios de integrar seus diferentes territórios. Portanto, o termo globalização é passivo: surgiu a partir da constatação de um fenômeno, e não de uma construção ideológica.

Qual foi o principal motor da globalização?

Lembram de quando assistíamos os desenhos dos Jetsons? Naquele momento, imaginava-se um mundo de caminhos mais curtos, especialmente pela via da logística. Seria muito mais rápido ir de um lugar para outro através de foguetinhos, produtos inclusos. Acontece que a revolução imaginada veio através de outra senda, a das comunicações. Falar sobre a aproximação das pessoas é um chavão, mas é real. Nunca sonharia em conversar com os parentes do exterior, mas hoje isso seria possível. Da mesma forma, e principalmente, a comunicação instantânea promove e acelera o motor do mundo: os negócios, que incluem bens culturais também, como música, moda, e, especialmente, modos de pensar.

Sendo assim, por que se dá conotação ideológica à globalização?

Esclarecendo que tudo é ideológico, até mesmo as reflexões que fazemos no dia-a-dia, mas não façamos confusões. A globalização não é vantajosa em todos os seus aspectos, e há dores equivalentes aos processos de isolamento que se viviam nos tempos feudais, para dar um exemplo. Considera-se perigoso um mundo global quando se pensa na imigração como um mal, ou o livre mercado entre países podendo trazer crises tributárias nos países periféricos, bem como uma nova versão da divisão internacional do trabalho, onde há uma hiperespecialização que reduz o know-how para a tecnologia avançada daqueles que dispõe de produtos mais primários, Terra Brasilis inclusa. Mas a globalização tem a pecha de ideológica por uma confusão de termos. Há muita gente que conflita o termo sociológico “globalização” com o termo ideológico “globalismo”, e o ponto de contato entre ambos, além do radical da gramática, está no suposto uso dos mecanismos de globalização a serviço do globalismo.

Então, o que é esse tal de globalismo?

Trata-se de uma ideia difusa de que existiria uma movimentação ideológica para que todo o mundo caminhe para unificação de diversos aspectos, tal como um governo centralizado, uma moeda única, adoção de uma língua franca e outras ações que tornem possível um controle muito apertado e enfraqueçam as nações individualmente. Isso tudo estaria se desenrolando nos privilegiados porões de uma casta que dominaria todo o mundo a partir de então, como fariam marcianos que aqui chegassem com seus poderosos rifles de laser. Como tudo isso se baseia em dados empíricos, parece que de fato há alguma espécie de urdidura em movimento, e por isso a coisa funciona no âmbito psicológico, embora não guarde correspondência com a realidade. Descrever todo o corpo "teórico" do globalismo é muito difícil, porque ele, como qualquer teoria da conspiração, não é unívoco, embora contenha uma subjacência que conduz a resultados semelhantes.

Por que esse tema entrou em voga?

Como qualquer teoria da conspiração, esta também se baseia na costura de acontecimentos reais com uma linha feita de elementos imaginários. Como nós poderemos observar mais abaixo, há de fato uma série de fatores que demonstra a progressiva globalização ocorrida no transcurso da história, mas a ligação que se faz entre eles nada tem a ver com um plano maquiavélico de domínio global.

Por que globalização é vinculada ao comunismo?

Um dos principais axiomas do comunismo está expresso na frase “proletários de todo mundo, uni-vos”. Isso significa que a revolução preconizada por Marx deveria se expandir para todos os países, por força das iguais necessidades das classes menos abastadas. Para Marx e Engels, a nação é uma forma de proprietário, estendida para um Estado inteiro, o que não deixa de ser uma caracterização do modo burguês de encarar a economia. Entretanto, várias das aplicações do comunismo, como foi o stalinismo, preconizavam o comunismo de um só país. China, Coreia do Norte e Cuba não estão preocupadas em expandir seu sistema político, como pode ser visto em uma rápida observação do panorama mundial. Entretanto, a pecha permaneceu e acabou sendo associada à globalização por conta de um pretenso mistério na expansão dos blocos comunistas. Além disso, vamos e venhamos, qualquer forma de desgraça é vinculada ao comunismo, não bastando o que ele tem de ruim de fato.

Por que globalização é vinculada ao imperialismo?

Embora demonizem o comunismo, os países mais ricos do bloco capitalista também procuram expandir suas áreas de influência por todo lugar do mundo onde isso for possível. Isso é um fenômeno próprio do mercantilismo que procura espalhar seus produtos pelo maior território possível. Money is money, já diria o poeta ruim. A expansão dos mercados transcende fronteiras porque, mesmo que seu país chegue ao bilhão de habitantes, há mais outros sete bilhões do lado de fora. Ter um domínio político ajuda e muito na expansão dos mercados, já que é nesse âmbito que barreiras tarifárias caem, incentivos fiscais são dirigidos e portas se abrem. Entretanto, embora haja de fato uma expansão de influências, vinculá-la a um governo central é algo difícil de engolir, porque o que temos, primordialmente, são disputas de mercado.

Por que globalização é vinculada ao islamismo?

Aqui associamos uma teoria ao medo que temos do que consideramos exótico. Aqui no Brasil, temos a impressão de que a turma evangê é aquela que cresce sem parar, e é mesmo. Ocorre que na dimensão do planetinha é o Islamismo que prolifera sem parar, pelas mais diferentes vias. O Islamismo é tão apostólico quanto o Cristianismo, e isso significa que há uma vontade messiânica em se espalhar a palavra de Deus (no caso, de Alá), e isso leva a um movimento de espalhamento, o que casa com a tese de influência global. Repito que as teses gerais do globalismo são amplamente variáveis, e só estou colocando este tópico aqui porque vejo muita gente que é adepta das mesmas colocar esta religião no mesmo balaio de gatos.

O que é a tal Nova Ordem Mundial, entidade que estaria por trás do projeto globalista?

O globalismo não poderia ser disparado sem mentes por trás deles, já que a teoria reputa ser impossível que a globalização esteja ocorrendo por acaso. Essas mentes seriam compostas por membros das elites econômica e política, que planejaram constituir um governo central totalitário, que suprimiria as democracias e os governos locais, extinguindo o conceito de nação. Seu grito de guerra seria um imenso progresso científico e tecnológico. Vários eventos de impacto mundial seriam sinalizadores de que esse processo está em andamento, com a inclusão de um monte de bobagens que tem pouca ou nenhuma ligação entre si. É preciso muita paciência para buscar informações sobre isso e não se desmanchar em bocejos.

E a aldeia global, que vem sendo falada desde a década de 60?

É um termo cunhado pelo teórico da comunicação Marshall Mcluhan, que vislumbrou um mundo cujas fronteiras físicas seriam derrubadas através dos meios digitais de comunicação. Por conta dessa assertiva, ganhou fama como um profeta dos novos tempos, já que a internet de fato se tornou esse meio de aproximação entre todos os lugares do mundo, mas essa é uma verdade apenas parcial. Isso porque a internet era apenas incipiente no seu tempo de atuação, mas não inexistente. Mas o principal engano que ocorre com esse conceito está em sua própria origem. Mcluhan vislumbrou um mundo que se aproximou em torno da televisão, um meio de comunicação unidirecional, que sintetiza uma opinião unívoca. Dessa forma, a aldeia pensada por Mcluhan se aproximaria mais da distopia orwelliana do Grande Irmão, onde teríamos uma cultura preponderante lançando sua influência sobre toda a tribo do que um espaço multiarticulado, como acontece com as redes sociais. Talvez por isso o termo passe uma impressão tão autoritária.

Afinal, a globalização é algo bom ou ruim?

Nem uma coisa, nem outra. É só um reflexo do caminho pelo qual o planetinha azul vai trilhando. Pode-se facilmente argumentar pró e contra, como as vantagens em se conhecer culturas, acessar produtos, viajar. Por outro lado, cabe o oposto: suprimir culturas, sufocar produtores, superlotar ecossistemas. A constatação do fenômeno tem a serventia de prevenir efeitos deletérios, mas sabemos bem que normalmente corremos atrás de nossos respeitáveis rabos, mesmo com numerosas advertências.

Mas a globalização é só uma amostra do progresso ou uma destruição do modus vivendi da maneira que conhecemos até hoje?

Vai depender muito do ponto de vista. Nós, seres humanos, já passamos por fases revolucionárias, que mudaram radicalmente a arquitetura das relações humanas. Essa é mais uma delas, baseada em um modelo assimétrico de influências, fortemente baseados em um fluxo cuja direção vai do mais poderoso ao mais frágil, que tende a ter seus valores diminuídos, sejam políticos, econômicos, culturais e sociais. Mas quando não foi assim? Talvez pela primeira vez em nossa história seja possível trazer cultura externa às nossas sociedades na mesma medida em que nossas culturas interiores sejam não só mantidas, mas exportadas. Não sei, pode ser que isso esteja ocorrendo. Ou que os recursos mais facilmente compartilhados sejam mais bem distribuídos do que nunca, embora eu não creia nisso. O que não há dúvidas é que o mundo está cada vez menor, pelas diferentes revoluções que tem ocorrido nos mais diferentes aspectos do dinamismo global.

Como podemos perceber a globalização no Brasil?

Nos mercados, na internet, no que ainda existe de rádio e tevê, na moda e mesmo em meios mais abstratos, como nos costumes. O mais óbvio são os sem número de produtos importados que vieram substituir os produtos nacionais. Outro ponto é o acesso à produção cultural inabitual nos tempos de eu-menino, como é o caso dos doramas coreanos. Mais um: comer fora era pizza, feijoada ou mineirices. Para comer algo japonês, só na Liberdade. Hoje tem de tudo de toda parte. Quem mora em São Paulo sabe que é possível arranjar restaurante de qualquer parte do mundo, ainda que não exista uma colônia constituída, como são a costelas australianas e os uísques irlandeses.

Para além das teorias de conspiração, é possível dizer que existe algo como uma ideologia globalista?

Sim, e seu nome é capitalismo. Não se trata de uma questão de intenção pura e simples, mas da lógica do funcionamento do sistema. Façamos uma brincadeira: eu fabrico cataventos e vendo na minha vizinhança. Quando todas as crianças já tiverem meu produto, o que farei? Vou procurar compradores em outros quarteirões, outros bairros, outras cidades, outros estados, outros países. Meu público-alvo nada tem a ver com a minha nação, mas com minha necessidade de buscar sempre mais clientela. Portanto, quando um empresário se vê na necessidade de expandir seus mercados, olhará para políticas e ideias que favoreçam seu comércio: baixas tarifas, impostos convidativos, mão-de-obra mais em conta (com suas consequentes políticas de imigração) e assim por diante. Sendo assim, os países centrais do capitalismo transpõem fronteiras nacionais em busca de lucros, e isso forma uma espécie de integração mundial, onde quem tem dinheiro, tem também a prioridade sobre a carne seca. Quem tem recursos financeiros se sobrepõe a quem tem recursos naturais, que são adquiridos pela força das imposições mercadológicas, gerando uma relação desigual no comércio mundial. Mas repito: não se trata de uma lógica de governo central, mas de funcionamento intrínseco mesmo.

Onde iremos parar?

É difícil dizer se a globalização se aprofundará a ponto de não ser distinguível se estamos na Tanzânia ou na Finlândia. De fato, quando olhamos através de um prisma imediato, dá a impressão de que em breve teremos um mundo homogêneo, com poucas diferenças notáveis entre os diferentes povos. Mas temos os dados da realidade, e eles nos mostram ainda um mundo muito diverso, sem esse borrão visível entre as culturas. Além disso, é preciso observar o quanto as sociedades terão capacidade de resistir à uniformização que parece afetar sua existência como nação. É bastante provável que as sociedades se modifiquem, mas não cheguem ao ponto de se extinguir, assim como nós, como indivíduos, preservamos algo de si mesmos ainda que nos abramos à influência do ambiente. Mas isso é só um palpite. 

Então é isso, por enquanto. O assunto é amplo e não o esgoto com essa dúzia de perguntas e respostas, até mesmo porque não quero fazê-lo. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É meio antiguinho e não representa tão bem o pensamento atual sobre o tema, mas não deixa de fornecer informações importantes sobre o momento em que nos tocamos que as fronteiras começariam a deixar de existir.

WALLERSTEIN, Immanuel. O Sistema Mundial Moderno. Porto: Afrontamento, 1974. 

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Democracia: o que ela é e o que ela não é

(A democracia parece tão óbvia... mas nada mais é óbvio nos dias atuais)

“É assim que tendemos a pensar na morte de democracias: nas mãos de homens armados (...) porém, há outra maneira de arruinar uma democracia. É menos dramática, mas igualmente destrutiva. Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”.

Levitsky e Ziblatt

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Quando nós vamos ficando mais velhos, vamos ficando também um pouco mais desatentos com certas particularidades do mundo que nos rodeia. Provavelmente isso aconteça (pelo menos é o que percebo no meu caso) porque, à medida que vamos ganhando conhecimento e experiência, achamos intuitivamente que todo mundo dança o mesmo xaxado, e que, ao mencionar um fenômeno qualquer, todos saibam perfeitamente bem do que estamos falando. Com isso, tendemos a achar que tudo é elementar, e que todos compreendem bem o que estamos falando.

Bem, não é assim que a banda toca. Um exemplo bem simples aconteceu dia desses, quando eu perguntei se algum dos estagiários queria uma mariola. Uns olharam estranhos, outros desconfiados, como se eu estivesse oferecendo um ilícito. Ah, leitor, você também não sabe o que é mariola? Nada mais é do que aqueles tabletinhos de banana cozida no tacho, coisa comum nesses botecos da vida, mas para quem ia a eles na fase de infância. Hoje, essas coisas são conseguidas no mercado ou na internet.

As coisas mudam, e os valores são coisas abstratas, e mudam também. Há diferenças entre o que as coisas valiam para meu pai, para mim, e para meus filhos, e para os estagiários também. Meu pai viu o golpe de 64, eu nasci em plena ditadura, meu filho já tinha um país democrático. Os estagiários, mais jovens ainda, às vezes confundem a democracia, assim como não sabiam quantas vezes já tinham comido mariola sem saber. Por isso, há valores diferentes em jogo para cada um de nós, e, por isso, nem sempre se tem uma dimensão exata do que é a democracia. Vamos falar dela então.

O que é democracia?

Começando pela palavra em si: democracia vem da combinação das palavras gregas demos (povo) e kratia (poder), ou seja, o poder exercido pelo povo. É um sistema de governo onde o poder central é exercido por governantes escolhidos de alguma forma pela população. Naturalmente, é uma definição muito singela, já que muitas características devem ser levadas em conta para que um regime possa ser considerado de fato democrático. Por exemplo, um regime democrático autêntico garante isonomia entre seus cidadãos, ou seja, que todos sejam tratados com igualdade e equilíbrio pela lei. Isso significa que todos devem ser tratados pelo mesmo conjunto de regras jurídicas. Além disso, é preciso que a população como um todo tenha acesso à participação política efetiva.

 

Mas por que certas pessoas desfrutam de privilégios?

É preciso sopesar o que estamos falando. Quando há, por exemplo, um concurso para juízes, há restrições para a inscrição. Há a precondição de haver formação em Direito, pelo fato da especialização do cargo. Entretanto, todos aqueles que preenchem o requisito são candidatos hábeis para o concurso, e isso é o que se espera da condição democrática. Em outros casos, o favor da lei existe justamente para propiciar algum tipo de possibilidade de equilíbrio social para cidadãos que, apresentando certas limitações, têm sua oportunidade de exercício da cidadania igualmente limitada. É o caso clássico do velhinho no ônibus, que tem muito mais necessidade de ficar sentado do que outra pessoa mais jovem. Isso tudo não é privilégio. Estes acontecem quando uma situação de posição social permite que alguém se livre do ônus que recai sobre todos. O exemplo mais simples que posso pensar no momento é a prisão especial, que é aplicada pelo simples fato de um cidadão ter formação superior. Este era um grande problema de isonomia porque não havia explicação para sua adoção: não há correlação atenuante ao fato de alguém ter diploma além do privilégio social.

 

Ok. Mas a democracia é só isso?

Não. A democracia inclui a garantia da participação política direta de todos os cidadãos que compõem a república, com o mais baixo nível possível de restrições. Isso inclui não somente o direito de votar e ser votado, mas o de se manifestar publicamente sem restrições, a não ser, é claro, as que redundem em crimes. Não é porque eu sou livre para me manifestar que eu possa xingar as genitoras de quem me é divergente. O nome disse é isegoria e esse palavrão designa algo que vem desde os gregos: o direito à expressão das posições políticas.

 

Falando nisso, como foi o nascedouro da democracia entre os gregos? O modelo lá criado persiste até hoje?

A democracia grega tinha um modelo bem diferente do que costumamos ver hoje em dia. Os historiadores dão a ela o nome de democracia direta, porque os cidadãos se expressavam diretamente nas assembleias, que eram realizadas nos grandes espaços públicos conhecidos como Ágora. Obviamente é impossível realizar esse modelo modernamente, pensando como rápido exemplo a cidade de São Paulo. Onde seria possível dar voz simultânea a mais de 9 milhões de eleitores, mesmo com o espaço virtual da internet?

 

Então a democracia não é só eleição?

Não. Vai muito além disso, e, por vezes, o voto não alcança decisões democráticas. O próprio critério de utilização de concursos para o provimento de funcionários públicos é um exemplo. Na verdade, o que melhor define uma democracia é o Estado Democrático de Direito, uma conformação social onde se estabelece que ninguém, seja o rico ou o pobre, o gordo ou o magro, o bonito ou o feio, o patrício ou o plebeu, estará fora das determinações da lei, incluindo o próprio Estado. Se é fato que todo o poder emana do povo, como está descrito nas principais constituições do mundo, é preciso que haja sistemas que impeçam o Estado de exercer poder ilegalmente sobre as pessoas. A tripartição de poderes é um mecanismo que procura limitar mutuamente os componentes estatais de produzirem exercício indevido na sociedade. Isso está mais na raiz da democracia do que a própria eleição.

 

Por que países de notórias ditaduras se autoproclamam repúblicas democráticas?

Vamos lembrar que democracia é, no plano linguístico, uma palavra, pronta para ser usada da forma que der na telha do usuário. Eu posso dizer que sou um exímio surfista sem nunca ter feito mais que mascar parafina. Esses países, que se apresentam como democracias revolucionárias, nada mais são do que encarniçadas ditaduras, normalmente das mais sanguinárias. Mas há um sentido (e não uma justificativa): como o teórico pano de fundo dos regimes comunistas é um governo que não pertence às elites, o comitê gestor que administra o Estado seria, em tese, de representantes populares, que trariam as necessidades dos diferentes estratos através de escolhas entre seus membros, para que os rumos governamentais fossem decididos pelos comitês centrais. Na prática, entretanto, o que se viu foram ditaduras cuja maneira de agir se baseia na vontade própria de poucas pessoas.

 

Uma escolha popular não justificaria uma tirania? Não é democrático escolher não ser democrático?

Aqui podemos falar em duas questões. A primeira é de um daqueles jogos de palavras, do tipo “um deus onipotente pode criar uma pedra que nem ele mesmo pode carregar”. O sentido de democracia não está em se colocar totalmente desprotegida em nome de uma liberdade absoluta de escolha pelo povo, senão as leis não fariam sentido. E a outra é que, sim, a democracia carrega consigo mesma as suas contradições, como ocorre com tudo na vida. Todo sistema democrático maduro, sabendo-se disso, possui predisposições que evitam danos ao sistema.

 

O que vale mais em uma democracia? A liberdade ou a igualdade?

Se nós formos um bocado concessivos, em outros tempos poderíamos dizer que esta era a diferença de base entre direita e esquerda, mas isso já se foi, já que hoje o embate é entre pacotes prontos. Entretanto, o mais importante é saber que uma não exclui a outra. É possível ser livre dentro de determinados parâmetros, e é possível perseguir o máximo possível de igualdade nas oportunidades.

 

Como a democracia pode ser positiva se nem no seu nascedouro ela foi consensual? Gênios como Aristóteles eram críticos à ideia.

Há uma confusão aí. É verdade que Aristóteles criticou a democracia como forma degenerada da politeia, essa sim o poder exercido por grandes camadas de cidadãos. Porém, nosso nobre patrono não trabalhava sob o conceito atual de democracia, e sim com algo que estaria mais próximo de uma anarquia ou, pior ainda, de uma anomia, ou seja, uma sociedade sem lei.

 

A democracia é de fato a ditadura da maioria?

Não, de forma alguma. Mas é muito fácil inserir essa assertiva em um discurso. Quando há uma eleição, de fato a maioria dá um ditame. Mas que tipo de ditame? Um que decide um rumo político, econômico, social, trabalhista e etc ou que remova direitos? Uma das características mais caras da democracia é exatamente garantir que minorias preservem seus direitos, mesmo que difiram do que pensa a maioria.

 

Quem é representado na democracia representativa?

Para suplantar as dificuldades da democracia direta grega, foi criado um sistema onde os interesses comuns eram segregados dentro das diferentes camadas em uma sociedade e eleitos representantes que catalisassem esses pontos de coalisão. Os atuais partidos políticos nada mais são do que grupamentos que congregam esses representantes, e, em países mais sérios que o Brasil, já são, por si só, designativos dos interesses das parcelas populacionais que se alinham a esses.

 

A democracia permite que presidentes sejam eleitos tendo menos votos que seu oponente. Como esse pode ser considerado um sistema perfeito?

Não é, aí é que está. Regimes perfeitos são tão utópicos quanto uma verdade absoluta ou um fato irrefutável. A democracia se apresenta como melhor que outros regimes porque, nela, os governos têm fim. A alternância no poder é a garantia de que, ao longo do tempo, os próprios mecanismos políticos se regulem, e não se eternizem malefícios insanáveis. O caso citado na pergunta diz respeito aos Estados Unidos, que, por duas vezes nas últimas décadas, tiveram presidentes eleitos com menos votos que seus adversários diretos. É um modelo entre outros, e pode ser considerado democrático porque há uma lei que o estabelece e é cumprida à risca. Se favorece uma distorção, cabe a eles, estadunidenses, reformá-lo.

Obviamente essas perguntas e essas respostas mal começam a dar cobertura para um assunto tão cheio de nuances, mas serve para iniciar a conscientização da necessidade de se questionar coisas que achamos muito evidentes, mas que não são. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Pode parecer que a democracia, com seus mecanismos de autorregulação, seja capaz de se manter indefinidamente como melhor sistema político. Só que não. É possível corroê-la ao ponto de extingui-la, como está bem explicado no livro abaixo, a quem recomendo fortemente:

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Navegações de cabotagem – o Parque do Campolim de Sorocaba, suas pedras e a evolução (?) das religiões

(Pedras tem memórias? Religiões evoluem sempre no mesmo sentido?)

“Um evento é sempre filho de outro, e não devemos nunca esquecer o parentesco” – esse foi o comentário feito por um chefe banto a Casalis, o missionário africano. Assim, em todos os tempos, os historiadores, na medida em que pretenderam ser mais que meros cronistas, fizeram o melhor possível para mostrar não meramente a sucessão, mas sim a conexão entre os eventos que registravam.

Tylor

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A pandemia teve dessas coisas. Durante o transcurso dela, aprendemos a utilizar os meios digitais para tarefas que habitualmente faríamos em carne e osso. Isso incluiu muitas coisas, como reuniões de família, por exemplo. Em um aniversário, bem no momento mais crítico das indefinições, compramos um pedaço de bolo em cada casa e cantamos a famosa trovinha via Skype©, em um exercício de afeto que procurava resolver a distância pela tecnologia possível. Fosse a vinte anos atrás, não seria possível tanta sofisticação.

Outras coisas foram andando pelo mesmo caminho, o que nos colocou diante de médicos pela telinha do celular, o que tornava pouco importante o ponto geográfico que o doutor se encontrava, e outros quesitos passaram a significar mais, como disponibilidade e preço.

As coisas foram se normalizando paulatinamente, demorando muito mais do que os quinze dias previstos para a duração do primeiríssimo lockdown, a ponto de nos acostumarmos com os médicos com os quais nos tratamos, e, uns mais, outros menos, passamos a frequentar presencialmente.

Acontece que há o critério da distância, como falei. Consultava uma endocrinologista de Pouso Alegre que, alvíssaras, se mudou recentemente para São Paulo. Não fosse isso, teria que baixar minha ficha. Mas há um médico de Sorocaba que gostaria de receber a visita da patroa, um neurologista, para um exame físico presencial. Ora, Sorocaba está a 100 km, factível a consulta, portanto.

Peguei uma folga e fomos até lá em uma quinta-feira, tempo ameno e trânsito razoável. Nessas coisas de horário certo, é bom usar a teoria mineira e chegar às 06h da manhã para o compromisso às 06h da tarde. Exageros à parte, chegamos com antecedência de duas horas, já prevendo um almoço antes. Só que, por mais que pegasse a comida de grão em grão, não dava para demorar todo esse tempo na mesa. O jeito era dar um passeio pelas ruas, por algum shopping, ou até em um parque, por que não? É o que fizemos. Fomos gastar os solados e fazer o quilo por uma horinha no Parque Carlos Alberto de Souza, mais conhecido como Campolim, localizado no bairro de mesmo nome.

A pessoa que denomina o parque foi um cidadão emérito da cidade de Sorocaba que viveu entre 1933 e 1997, o que nos faz deduzir que ele não era nascido por aqueles lados. Não consegui maiores informações sobre sua importância histórica. Se alguém souber, por favor, mande notícias nos comentários.

O bairro do Campolim é de classe social privilegiada, com belas casas e cercado de clínicas estéticas e consultórios médicos, que se encontra em amplo processo de verticalização, como ocorre com o paulistano Pinheiros.


O parque foi construído nas margens de um córrego, de forma a produzir uma bacia de contenção à moda dos parques de Curitiba (vide), o que diminui muito os problemas de enchentes e ainda dá aproveitamento social à área.

Os lagos formados pelas barreiras têm também a função de manter alguma fauna na região altamente urbanizada, o que é representado pela quantidade de aves nas ilhotas, especialmente biguás…

… e nas encostas, onde havia muitas galinhas d'água e corós.

Bem na entrada do parque, há um Marco da Paz, semelhante ao que temos no Pátio do Colégio, em Sampa. Criado pelo italiano Gaetano Brancati Luigi, é um monumento que possui um sino e uma pomba, sendo que aqui é composta por duas mãos com os dedos entrelaçados, dando um ar diferenciado à obra. Está espalhado por vários lugares do Brasil e do mundo, e tem o intento de lembrar as agruras da guerra e a importância da paz entre os povos.

O parque em si é simples, funcional, ocupando uma área que seria pouco aproveitada de outra forma, principalmente com trilhas para caminhada em saibro e areia, seguindo o curso natural do córrego.

Há os espaços de brinquedos para as crianças, um cachorródromo e um paço para feiras e eventos artísticos. A própria prefeitura aproveita o parque para fazer festas diversas.

E há pedras, muitas pedras. Elas estão ali desde muito antes dos primeiros indígenas que aqui chegaram e deram a este lugar o nome de “terra fendida" (o significado de Sorocaba em Tupi-Guarani).

Aliás, antes mesmo de qualquer animal ou outra forma de vida, essas pedras são testemunhas da própria formação do território, e o viram sendo tomado e transformado no que é hoje, uma cidade de grande porte, com todas as suas glórias e escórias. São donas da história, ainda que incomunicáveis conosco.

São mesmo? Em uma visão puramente material, as pedras são somente pedras, nada mais. A atribuição de características espirituais não faz parte desse universo. Mas se observarmos as culturas e as estatísticas, veremos que esse materialismo é bem mais raro do que a proposta inversa, então não há motivos para chacotas.

Esse modo de ver a realidade como possuidora de subjacências invisíveis aos olhos não é novo, nem velho. É antiquíssimo, na verdade, e nasceu praticamente ao mesmo tempo que os mecanismos evolutivos fizeram com que os bípedes implumes formassem as primeiras culturas. Desde o começo, a observação dos seres em movimento fazia com que se acreditasse em uma presença de energia vital que fornecesse ânimo para esse giro (anima, em latim, significa alma). É meio óbvio que esse princípio fosse atribuído primeiramente aos animais, humanos inclusos, mas a força vegetativa das plantas e a movimentação dos demais objetos construiu uma visão mais acurada. As primeiras impressões de que o universo ia além do que era possível captar pelos sentidos formaram as intenções em se estabelecer uma conexão com esse outro mundo, principalmente para se obter explicações sobre coisas que não estavam à disposição dos intelectos de então. De fato, quando olhamos para as antigas pedras, ou para as árvores centenárias que cercavam a região das tribos que ali habitavam, vemos que elas têm uma permanência muito mais longa do que a vida dos indivíduos em si, mas, de toda forma, mesmo esses seres permanentes são afetados pela comunidade que lhes cerca. Uma árvore tem seus galhos cortados e sua casca maculada, e uma pedra pode ser lascada ou garimpada, de forma a existir uma influência mútua, muito embora uma tenha carga de fixidez muito maior que as outras. Outro bom exemplo vem das condições climáticas. Em um veleiro antigo, o vento fazia toda a diferença. Se ele apontava para a direção exata de onde se queria ir, dizia-se que ele estava generoso; por outro lado, se ele estava ausente, poder-se-ia pensar que estava desgostoso. Era atribuída uma vontade e uma agência a uma condição meramente física, que, hoje sabemos, depende de fatores igualmente físicos. Dessa forma, os humanos começam a acreditar que há uma espécie de imaterialidade nesses seres que não manifestam vida. Podemos pensar nisso como a primeiríssima forma de religião: o animismo.

É preciso esclarecer que nunca houve uma religião chamada de animismo, assim como nunca houve outra chamada de politeísmo ou de monoteísmo, porque o termo diz respeito a uma forma, e não um conjunto de doutrinas que sistematizasse um pensamento transcendente. Por isso, podemos prosseguir.

Com o tempo, o pensamento animista foi se dirigindo para formas de canalizar a comunicação com a porção transcendente do mundo circunstante. Afinal de contas, se há uma anima que rege o material, deve ser possível movê-la para um sentido ou para o outro, de modo a influenciar sua atuação. Uma destas formas foi a sintetização em objetos que simbolizavam o espírito que se queria agradar, e nisto nasceram amuletos e talismãs, dentre outros elementos de culto. O objeto em si poderia ser uma escultura de madeira, um sachê de ervas, um conjunto de pedras disposto de maneira específica e assim por diante. Esses objetos, mais tarde conhecidos como fetiches (a mesma raiz etimológica de “feitiço”), deram a origem mais primária aos ídolos, que seriam a representação magnificada da divindade, que davam um conceito mais abrangente ao animismo do pormenor. Dessa forma, o ídolo teria a capacidade de representar com tanto grau de proximidade a transcendência à qual se refere que passa, ele mesmo, a ser sacralizado.

Ocorre que houve um momento tal que esses ídolos foram se identificando cada vez mais aos elementos que distinguem a vida humana, a ponto de se tornarem pessoais. Os ídolos já não são mais representações, mas incorporações de um determinado domínio, e cada uma delas passa a ser, ela própria, uma divindade. Esse seria o que mais tarde ficou conhecido como politeísmo, que ficou eternizado com o paganismo grego. Lá, o trovão em si deixou de ser divinizado, para ser personificado em Zeus, que agora era o regente desse elemento.

Os grandes mecanismos universos, no entanto, parecem ter conduzido a visão de transcendência ainda para outro ponto. Embora catástrofes pudessem ainda denunciar uma espécie de descontentamento divino, o fato é que a harmonia entre os fenômenos dá menos a ideia de uma rivalidade entre deidades, e mais de pensamento unificado, como se uma única mente tivesse orquestrado tudo aquilo que existe. Esse seria o nascedouro do monoteísmo, que, se visto sob um prisma demográfico, é prevalente em boa parte da população mundial.

Pode-se perceber que, ainda que as concepções sobre quantidade e localização das deidades fossem fundamentalmente diferentes, em todas elas temos uma transferência de características humanas. Comunitariamente, projetamos nós mesmos em nossas divindades, dando a elas aspectos humanos. Os deuses podem ser irascíveis, bondosos, piedosos, severos, tudo ao máximo, mas tudo partindo de sentimentos que nós mesmos podemos ter. Não há sentimentos exclusivamente divinos - a diferença está apenas no grau atribuído.

Mas à medida que o tempo avança, avança também a ciência e a tecnologia, bem como os ideais democráticos vão tornando mais e mais antiquada a concepção de um regente universal. Certas concepções divinas vão se tornando mais difusas, onde estas vão tomando um aspecto mais espiritual e menos pessoal, na forma de energia, contrapondo-se à imagem do deus entronizado, semelhantemente ao que acontece com o poder fragmentado nas mãos do povo, como se pudesse ser reconhecido nas pequenas coisas.

A aproximação com uma visão mais científica do que é a divindade é inevitável. As inúmeras explicações conseguidas pela atividade científica despovoam o imaginário das fúrias divinas, e a própria natureza volta a ser reconhecida como força por trás de tudo, já sem o teor divinizante anteriormente atribuído a ela.

Essa corrente de pensamento apareceu bem tardiamente, no momento em que a modernidade impôs a sistematização do conhecimento como ciências, no caso, a antropologia. No auge do surgimento da evolução biológica, outras aplicabilidades para a mesma lógica surgiram, e os pensadores viam que a religião era uma dessas áreas, com Edward Tylor à frente. Sua principal ideia era a de que o pensamento humano tinha uma certa homogeneidade, nascendo de forma semelhante em diferentes culturas e sendo modificado na medida em que as “pressões seletivas” iam moldando-o. Como o homem é mais ou menos uniforme, seu pensamento também o é, e, sendo assim, práticas mais antigas pertenceriam a culturas mais primitivas. O animismo seria o nascedouro de qualquer religião, que evoluiria através da linha imaginada, até chegar ao seu ponto atual.

A questão toda é que guardamos uma visão muito ocidentalizada do que é a religião. Essa linha de animismo-politeísmo-monoteísmo e hipóteses posteriores refletem muito o que ocorreu na Europa e nas suas áreas de influência, mas não dão cabo de uma explicação geral de como se desenrola a antropologia da religião. O grande problema está na cara de “melhoramentos” que a teoria tem, com o politeísmo sendo um aperfeiçoamento do animismo, e o monoteísmo como um aperfeiçoamento do politeísmo, o que não acontece nem na evolução biológica. Minhocas dão origens às sanguessugas, e ambas convivem muito bem, obrigado. Isso se comprova não somente na inversão de ordem que encontramos na formação de religiões não-ocidentais, como na permanência de práticas próximas ao animismo nas ditas religiões modernas.

Um bom exemplo de animismo moderno é o feng shui, que não é propriamente novo, mas que reavivou com muita força a partir dos anos 2000. Posição dos móveis e da própria casa na busca de melhores energias nada mais são do que atribuir aos objetos uma força transcendente.

Há ainda que se pensar no quanto religiões monoteístas ainda carregam boa quota de animismo. São velas, imagens, incensos que são muito assemelhados aos antigos fetiches, porque não só parecem carregar em si um poder mágico, mas também são protegidos pela comunidade que se dirige a eles. Os católicos têm muito disso. Aqui mesmo onde moro, um prédio pertencente a uma ordem religiosa, as velhinhas tem um voto de estar sempre carregando um escapulário, uma espécie de colar contendo um pedaço de feltro com algumas imagens e orações. Elas acreditam que estar com esse objeto na hora da morte lhes garantirá ida sem escala para o céu.  É um desvirtuamento da própria fé cristã, mas o fato é que a Igreja aceita e até incentiva esse tipo de conduta.

Evangélicos dirão: nós não temos essas práticas idólatras. Experimente rasgar uma Bíblia perto de um deles. Objetivamente, é uma resma de papel com tinta, nada mais do que isso, e as palavras lá escritas não se perderão como se perde o exemplar. Mas, no mínimo, te chamarão de satanista ou macumbeiro (que para eles é a mesma coisa).

Tylor não era um cristão que tentava propor os monoteísmos como uma forma mais avançada de religião com relação a outras, muito pelo contrário. Sua intenção era provar que o Cristianismo veio de uma religião mais primitiva, que estaria na base de sua constituição, e que ele não poderia se arrogar o atributo de uma fé pura e original, como é bastante comum que os próprios se insinuem. Entretanto, é o caso flagrante de teoria que só tem importância no contexto histórico, o que já é o bastante para entender como se processa o desenvolvimento das ideias.

Voltando ao mundo imanente, ficamos tão sossegados olhando os pássaros e as pedras que por pouco não perdemos o horário, e lá se iria mais o testemunho de uma minúscula história. Bons ventos a todos!

Recomendações:

As ideias de Tylor praticamente caíram no esquecimento, e por essa razão é muito difícil encontrar traduções diretas de seus livros hoje em dia, razão pela qual indico o compilado de textos abaixo, onde ainda é possível ler alguma coisa direta dele.

CASTRO, Celso (org.). Evolucionismo Cultural. Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

 

Quanto ao parque, seguem suas referências.

Parque Carlos Alberto de Souza (Campolim)

Avenida Antônio Carlos Comitre, s/n

Campolim

Sorocaba/SP 

A aproximadamente 105 km do centro de São Paulo