(Globalização é um dos termos que mais causam complicações nas nossas cabeças. Mas, em si, ele não é mais do que um conceito da Sociologia)
“A marca do mundo moderno é a imaginação dos seus beneficiários e a contra-afirmação dos oprimidos. A exploração e a recusa em aceitar a exploração como inevitável ou justa constituem a perene antinomia da era moderna, unidas numa dialética que está longe de alcançar seu máximo no século XX”.
Wallerstein
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Aqui, no Brasil, somos grandes misturas cosmopolitas. Tem
gente de toda parte, e assim continua. Dia desses, por exemplo, estava dando um
giro pelo Pari e fui fazer uma barba na régua em um estabelecimento de um
bengalês. Minha imaginação já flutuou rumo a Hollywood, e fiquei pensando se
não apareceria algum hindu acompanhado de uma cimitarra para aparar meus pelos
do pescoço. Burro e preconceituoso: um barbeiro não é um verdugo e as
cimitarras são árabes, e não indianas. Mas não podia deixar de contar a experiência
aqui para vocês. O pessoal de Bangladesh faz parte de um movimento mais ou
menos recente de imigração, motivados pela velha miséria ou pela velha fuga da
guerra, que inclui nigerianos, camaroneses, bolivianos, haitianos, sírios e
tantos outros povos que vêm aqui para dar continuidade nesse fenômeno
inexplicável chamado vida.
O brasileiro é uma sopa de letrinhas. Penso em mim mesmo e
descubro um pequeno volteio pela Europa. Das descendências conhecidas, é
perfeitamente possível depreender outras. Senão vejamos: dos ascendentes espanhóis,
é lícito supor que façam parte dos povos mouros que vieram do Oriente Médio,
via norte da África. Já dos italianos, há a denúncia da origem francesa pelo
sobrenome. Pelo lado armênio, é conjecturável que se traga mais raízes
asiáticas, além de alguma coisa eslava. Isso porque minha ascendência é simples
e bem conhecida. Se for falar da patroa, os caminhos são ainda mais tortuosos,
porque vai incluir uma boa parte de ascendentes de origem desconhecida, vindos
dos povos autóctones da América, dos lobos da estepe da Rússia e até com alguma
semente da África subsaariana.
Esse é o mundo, um grande gral onde são maceradas culturas e
etnias, cada vez mais imbricados por conta das facilidades do meio digital.
Somos metáforas da globalização, e isso nos ajudará a entender o quanto este
conceito tem sido usado de maneira pouco esclarecida.
Isso tudo porque, de uns tempos para cá, certos termos foram
colocados em um mesmo cartucho e chacoalhados todos juntos, como se um fosse
consequência do outro, ou como se fossem coisas associadas, o que não são. Eu
mesmo já fui "acusado" de uma série de coisas, dentre as quais de
petista e comunista, coisas
que eu não sou. Também já me disseram que eu sou prosélito do ateísmo e com
tendências muçulmanas. Se isso não é uma contradição, nada mais é. E,
principalmente, me acusaram do supremo crime de ser "defensor dos direitos
humanos". Como assim, uma pessoa pode ser defensora dos direitos humanos?
Penso eu que, por ser da área de humanas, já automaticamente me colocam em uma
gaveta onde os lenços são sempre os mesmos, não vejo outro motivo para isso.
Isso tudo costuma vir acompanhado de vociferações contra um
tal de globalismo, a adesão a um suposto projeto de globalização. Bom, quem
fala sobre isso não sabe do que está falando. Portanto, nada me resta a não ser
acrescentar um capítulo a esta série. Afinal de contas o que a globalização é e
o que ela não é?
O que é?
A globalização é um fenômeno histórico que observa como o
mundo como um todo tem se tornado cada vez mais integrado e independente de
fronteiras. Não se trata de uma ideologia ou de uma tendência política, mas de
uma constatação histórico-sociológica de um fenômeno que ocorreu a partir do
momento em que a humanidade passou a dispor de meios de integrar seus
diferentes territórios. Portanto, o termo globalização é passivo: surgiu a
partir da constatação de um fenômeno, e não de uma construção ideológica.
Qual foi o principal motor da globalização?
Lembram de quando assistíamos os desenhos dos Jetsons?
Naquele momento, imaginava-se um mundo de caminhos mais curtos, especialmente
pela via da logística. Seria muito mais rápido ir de um lugar para outro
através de foguetinhos, produtos inclusos. Acontece que a revolução imaginada
veio através de outra senda, a das comunicações. Falar sobre a aproximação das
pessoas é um chavão, mas é real. Nunca sonharia em conversar com os parentes do
exterior, mas hoje isso seria possível. Da mesma forma, e principalmente, a
comunicação instantânea promove e acelera o motor do mundo: os negócios, que
incluem bens culturais também, como música, moda, e, especialmente, modos de
pensar.
Sendo assim, por que se dá conotação ideológica à
globalização?
Esclarecendo que tudo é ideológico, até mesmo as reflexões
que fazemos no dia-a-dia, mas não façamos confusões. A globalização não é
vantajosa em todos os seus aspectos, e há dores equivalentes aos processos de
isolamento que se viviam nos tempos feudais, para dar um exemplo. Considera-se
perigoso um mundo global quando se pensa na imigração como um mal, ou o livre
mercado entre países podendo trazer crises tributárias nos países periféricos,
bem como uma nova versão da divisão internacional do trabalho, onde há uma
hiperespecialização que reduz o know-how para a tecnologia avançada daqueles
que dispõe de produtos mais primários, Terra Brasilis inclusa. Mas a
globalização tem a pecha de ideológica por uma confusão de termos. Há muita
gente que conflita o termo sociológico “globalização” com o termo ideológico “globalismo”,
e o ponto de contato entre ambos, além do radical da gramática, está no suposto
uso dos mecanismos de globalização a serviço do globalismo.
Então, o que é esse tal de globalismo?
Trata-se de uma ideia difusa de que existiria uma
movimentação ideológica para que todo o mundo caminhe para unificação de
diversos aspectos, tal como um governo centralizado, uma moeda única, adoção de
uma língua franca e outras ações que tornem possível um controle muito apertado
e enfraqueçam as nações individualmente. Isso tudo estaria se desenrolando nos
privilegiados porões de uma casta que dominaria todo o mundo a partir de então,
como fariam marcianos que aqui chegassem com seus poderosos rifles de laser.
Como tudo isso se baseia em dados empíricos, parece que de fato há alguma
espécie de urdidura em movimento, e por isso a coisa funciona no âmbito psicológico,
embora não guarde correspondência com a realidade. Descrever todo o corpo
"teórico" do globalismo é muito difícil, porque ele, como qualquer
teoria da conspiração, não é unívoco, embora contenha uma subjacência que
conduz a resultados semelhantes.
Por que esse tema entrou em voga?
Como qualquer teoria da conspiração, esta também se baseia
na costura de acontecimentos reais com uma linha feita de elementos
imaginários. Como nós poderemos observar mais abaixo, há de fato uma série de
fatores que demonstra a progressiva globalização ocorrida no transcurso da
história, mas a ligação que se faz entre eles nada tem a ver com um plano
maquiavélico de domínio global.
Por que globalização é vinculada ao comunismo?
Um dos principais axiomas do comunismo está expresso na
frase “proletários de todo mundo, uni-vos”. Isso significa que a revolução
preconizada por Marx deveria se expandir para todos os países, por força das
iguais necessidades das classes menos abastadas. Para Marx e Engels, a nação é
uma forma de proprietário, estendida para um Estado inteiro, o que não deixa de
ser uma caracterização do modo burguês de encarar a economia. Entretanto,
várias das aplicações do comunismo, como foi o stalinismo, preconizavam o
comunismo de um só país. China, Coreia do Norte e Cuba não estão preocupadas em
expandir seu sistema político, como pode ser visto em uma rápida observação do
panorama mundial. Entretanto, a pecha permaneceu e acabou sendo associada à
globalização por conta de um pretenso mistério na expansão dos blocos
comunistas. Além disso, vamos e venhamos, qualquer forma de desgraça é
vinculada ao comunismo, não bastando o que ele tem de ruim de fato.
Por que globalização é vinculada ao imperialismo?
Embora demonizem o comunismo, os países mais ricos do bloco
capitalista também procuram expandir suas áreas de influência por todo lugar do
mundo onde isso for possível. Isso é um fenômeno próprio do mercantilismo que
procura espalhar seus produtos pelo maior território possível. Money is
money, já diria o poeta ruim. A expansão dos mercados transcende
fronteiras porque, mesmo que seu país chegue ao bilhão de habitantes, há mais
outros sete bilhões do lado de fora. Ter um domínio político ajuda e muito na
expansão dos mercados, já que é nesse âmbito que barreiras tarifárias caem, incentivos
fiscais são dirigidos e portas se abrem. Entretanto, embora haja de fato uma
expansão de influências, vinculá-la a um governo central é algo difícil de
engolir, porque o que temos, primordialmente, são disputas de mercado.
Por que globalização é vinculada ao islamismo?
Aqui associamos uma teoria ao medo que temos do que
consideramos exótico. Aqui no Brasil, temos a impressão de que a turma evangê é
aquela que cresce sem parar, e é mesmo. Ocorre que na dimensão do planetinha é
o Islamismo que prolifera sem parar, pelas mais diferentes vias. O Islamismo é
tão apostólico quanto o Cristianismo, e isso significa que há uma vontade
messiânica em se espalhar a palavra de Deus (no caso, de Alá), e isso leva a um
movimento de espalhamento, o que casa com a tese de influência global. Repito
que as teses gerais do globalismo são amplamente variáveis, e só estou
colocando este tópico aqui porque vejo muita gente que é adepta das mesmas
colocar esta religião no mesmo balaio de gatos.
O que é a tal Nova Ordem Mundial, entidade que estaria
por trás do projeto globalista?
O globalismo não poderia ser disparado sem mentes por trás
deles, já que a teoria reputa ser impossível que a globalização esteja
ocorrendo por acaso. Essas mentes seriam compostas por membros das elites
econômica e política, que planejaram constituir um governo central totalitário,
que suprimiria as democracias e os governos locais, extinguindo o conceito de
nação. Seu grito de guerra seria um imenso progresso científico e tecnológico.
Vários eventos de impacto mundial seriam sinalizadores de que esse processo
está em andamento, com a inclusão de um monte de bobagens que tem pouca ou
nenhuma ligação entre si. É preciso muita paciência para buscar informações
sobre isso e não se desmanchar em bocejos.
E a aldeia global, que vem sendo falada desde a década de
60?
É um termo cunhado pelo teórico da comunicação Marshall
Mcluhan, que vislumbrou um mundo cujas fronteiras físicas seriam derrubadas
através dos meios digitais de comunicação. Por conta dessa assertiva, ganhou
fama como um profeta dos novos tempos, já que a internet de fato se tornou esse
meio de aproximação entre todos os lugares do mundo, mas essa é uma verdade
apenas parcial. Isso porque a internet era apenas incipiente no seu tempo de
atuação, mas não inexistente. Mas o principal engano que ocorre com esse
conceito está em sua própria origem. Mcluhan vislumbrou um mundo que se
aproximou em torno da televisão, um meio de comunicação unidirecional, que
sintetiza uma opinião unívoca. Dessa forma, a aldeia pensada por Mcluhan se
aproximaria mais da distopia orwelliana do Grande Irmão, onde teríamos uma
cultura preponderante lançando sua influência sobre toda a tribo do que um
espaço multiarticulado, como acontece com as redes sociais. Talvez por isso o
termo passe uma impressão tão autoritária.
Afinal, a globalização é algo bom ou ruim?
Nem uma coisa, nem outra. É só um reflexo do caminho pelo
qual o planetinha azul vai trilhando. Pode-se facilmente argumentar pró e
contra, como as vantagens em se conhecer culturas, acessar produtos, viajar.
Por outro lado, cabe o oposto: suprimir culturas, sufocar produtores,
superlotar ecossistemas. A constatação do fenômeno tem a serventia de prevenir
efeitos deletérios, mas sabemos bem que normalmente corremos atrás de nossos
respeitáveis rabos, mesmo com numerosas advertências.
Mas a globalização é só uma amostra do progresso ou uma
destruição do modus vivendi da maneira que conhecemos até hoje?
Vai depender muito do ponto de vista. Nós, seres humanos, já
passamos por fases revolucionárias, que mudaram radicalmente a arquitetura das
relações humanas. Essa é mais uma delas, baseada em um modelo assimétrico de
influências, fortemente baseados em um fluxo cuja direção vai do mais poderoso
ao mais frágil, que tende a ter seus valores diminuídos, sejam políticos,
econômicos, culturais e sociais. Mas quando não foi assim? Talvez pela primeira
vez em nossa história seja possível trazer cultura externa às nossas sociedades
na mesma medida em que nossas culturas interiores sejam não só mantidas, mas
exportadas. Não sei, pode ser que isso esteja ocorrendo. Ou que os recursos
mais facilmente compartilhados sejam mais bem distribuídos do que nunca, embora
eu não creia nisso. O que não há dúvidas é que o mundo está cada vez menor,
pelas diferentes revoluções que tem ocorrido nos mais diferentes aspectos do
dinamismo global.
Como podemos perceber a globalização no Brasil?
Nos mercados, na internet, no que ainda existe de rádio e
tevê, na moda e mesmo em meios mais abstratos, como nos costumes. O mais óbvio
são os sem número de produtos importados que vieram substituir os produtos
nacionais. Outro ponto é o acesso à produção cultural inabitual nos tempos de
eu-menino, como é o caso dos doramas coreanos. Mais um: comer fora era pizza,
feijoada ou mineirices. Para comer algo japonês, só na Liberdade. Hoje tem de
tudo de toda parte. Quem mora em São Paulo sabe que é possível arranjar
restaurante de qualquer parte do mundo, ainda que não exista uma colônia constituída,
como são a costelas australianas e os uísques irlandeses.
Para além das teorias de conspiração, é possível dizer
que existe algo como uma ideologia globalista?
Sim, e seu nome é capitalismo. Não se trata de uma questão
de intenção pura e simples, mas da lógica do funcionamento do sistema. Façamos
uma brincadeira: eu fabrico cataventos e vendo na minha vizinhança. Quando
todas as crianças já tiverem meu produto, o que farei? Vou procurar compradores
em outros quarteirões, outros bairros, outras cidades, outros estados, outros
países. Meu público-alvo nada tem a ver com a minha nação, mas com minha
necessidade de buscar sempre mais clientela. Portanto, quando um empresário se
vê na necessidade de expandir seus mercados, olhará para políticas e ideias que
favoreçam seu comércio: baixas tarifas, impostos convidativos, mão-de-obra mais
em conta (com suas consequentes políticas de imigração) e assim por diante.
Sendo assim, os países centrais do capitalismo transpõem fronteiras nacionais
em busca de lucros, e isso forma uma espécie de integração mundial, onde quem
tem dinheiro, tem também a prioridade sobre a carne seca. Quem tem recursos
financeiros se sobrepõe a quem tem recursos naturais, que são adquiridos pela
força das imposições mercadológicas, gerando uma relação desigual no comércio
mundial. Mas repito: não se trata de uma lógica de governo central, mas de
funcionamento intrínseco mesmo.
Onde iremos parar?
É difícil dizer se a globalização se aprofundará a ponto de
não ser distinguível se estamos na Tanzânia ou na Finlândia. De fato, quando
olhamos através de um prisma imediato, dá a impressão de que em breve teremos
um mundo homogêneo, com poucas diferenças notáveis entre os diferentes povos.
Mas temos os dados da realidade, e eles nos mostram ainda um mundo muito
diverso, sem esse borrão visível entre as culturas. Além disso, é preciso
observar o quanto as sociedades terão capacidade de resistir à uniformização
que parece afetar sua existência como nação. É bastante provável que as
sociedades se modifiquem, mas não cheguem ao ponto de se extinguir, assim como
nós, como indivíduos, preservamos algo de si mesmos ainda que nos abramos à
influência do ambiente. Mas isso é só um palpite.
Então é isso, por enquanto. O assunto é amplo e não o esgoto
com essa dúzia de perguntas e respostas, até mesmo porque não quero fazê-lo. Bons
ventos a todos!
Recomendação de leitura:
É meio antiguinho e não representa tão bem o pensamento
atual sobre o tema, mas não deixa de fornecer informações importantes sobre o
momento em que nos tocamos que as fronteiras começariam a deixar de existir.
WALLERSTEIN, Immanuel. O Sistema Mundial Moderno.
Porto: Afrontamento, 1974.
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