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terça-feira, 20 de agosto de 2024

Globalização: o que ela é e o que ela não é

(Globalização é um dos termos que mais causam complicações nas nossas cabeças. Mas, em si, ele não é mais do que um conceito da Sociologia)

“A marca do mundo moderno é a imaginação dos seus beneficiários e a contra-afirmação dos oprimidos. A exploração e a recusa em aceitar a exploração como inevitável ou justa constituem a perene antinomia da era moderna, unidas numa dialética que está longe de alcançar seu máximo no século XX”.

Wallerstein

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Aqui, no Brasil, somos grandes misturas cosmopolitas. Tem gente de toda parte, e assim continua. Dia desses, por exemplo, estava dando um giro pelo Pari e fui fazer uma barba na régua em um estabelecimento de um bengalês. Minha imaginação já flutuou rumo a Hollywood, e fiquei pensando se não apareceria algum hindu acompanhado de uma cimitarra para aparar meus pelos do pescoço. Burro e preconceituoso: um barbeiro não é um verdugo e as cimitarras são árabes, e não indianas. Mas não podia deixar de contar a experiência aqui para vocês. O pessoal de Bangladesh faz parte de um movimento mais ou menos recente de imigração, motivados pela velha miséria ou pela velha fuga da guerra, que inclui nigerianos, camaroneses, bolivianos, haitianos, sírios e tantos outros povos que vêm aqui para dar continuidade nesse fenômeno inexplicável chamado vida.

O brasileiro é uma sopa de letrinhas. Penso em mim mesmo e descubro um pequeno volteio pela Europa. Das descendências conhecidas, é perfeitamente possível depreender outras. Senão vejamos: dos ascendentes espanhóis, é lícito supor que façam parte dos povos mouros que vieram do Oriente Médio, via norte da África. Já dos italianos, há a denúncia da origem francesa pelo sobrenome. Pelo lado armênio, é conjecturável que se traga mais raízes asiáticas, além de alguma coisa eslava. Isso porque minha ascendência é simples e bem conhecida. Se for falar da patroa, os caminhos são ainda mais tortuosos, porque vai incluir uma boa parte de ascendentes de origem desconhecida, vindos dos povos autóctones da América, dos lobos da estepe da Rússia e até com alguma semente da África subsaariana.

Esse é o mundo, um grande gral onde são maceradas culturas e etnias, cada vez mais imbricados por conta das facilidades do meio digital. Somos metáforas da globalização, e isso nos ajudará a entender o quanto este conceito tem sido usado de maneira pouco esclarecida.

Isso tudo porque, de uns tempos para cá, certos termos foram colocados em um mesmo cartucho e chacoalhados todos juntos, como se um fosse consequência do outro, ou como se fossem coisas associadas, o que não são. Eu mesmo já fui "acusado" de uma série de coisas, dentre as quais de petista e comunista, coisas que eu não sou. Também já me disseram que eu sou prosélito do ateísmo e com tendências muçulmanas. Se isso não é uma contradição, nada mais é. E, principalmente, me acusaram do supremo crime de ser "defensor dos direitos humanos". Como assim, uma pessoa pode ser defensora dos direitos humanos? Penso eu que, por ser da área de humanas, já automaticamente me colocam em uma gaveta onde os lenços são sempre os mesmos, não vejo outro motivo para isso.

Isso tudo costuma vir acompanhado de vociferações contra um tal de globalismo, a adesão a um suposto projeto de globalização. Bom, quem fala sobre isso não sabe do que está falando. Portanto, nada me resta a não ser acrescentar um capítulo a esta série. Afinal de contas o que a globalização é e o que ela não é?



O que é?

A globalização é um fenômeno histórico que observa como o mundo como um todo tem se tornado cada vez mais integrado e independente de fronteiras. Não se trata de uma ideologia ou de uma tendência política, mas de uma constatação histórico-sociológica de um fenômeno que ocorreu a partir do momento em que a humanidade passou a dispor de meios de integrar seus diferentes territórios. Portanto, o termo globalização é passivo: surgiu a partir da constatação de um fenômeno, e não de uma construção ideológica.

Qual foi o principal motor da globalização?

Lembram de quando assistíamos os desenhos dos Jetsons? Naquele momento, imaginava-se um mundo de caminhos mais curtos, especialmente pela via da logística. Seria muito mais rápido ir de um lugar para outro através de foguetinhos, produtos inclusos. Acontece que a revolução imaginada veio através de outra senda, a das comunicações. Falar sobre a aproximação das pessoas é um chavão, mas é real. Nunca sonharia em conversar com os parentes do exterior, mas hoje isso seria possível. Da mesma forma, e principalmente, a comunicação instantânea promove e acelera o motor do mundo: os negócios, que incluem bens culturais também, como música, moda, e, especialmente, modos de pensar.

Sendo assim, por que se dá conotação ideológica à globalização?

Esclarecendo que tudo é ideológico, até mesmo as reflexões que fazemos no dia-a-dia, mas não façamos confusões. A globalização não é vantajosa em todos os seus aspectos, e há dores equivalentes aos processos de isolamento que se viviam nos tempos feudais, para dar um exemplo. Considera-se perigoso um mundo global quando se pensa na imigração como um mal, ou o livre mercado entre países podendo trazer crises tributárias nos países periféricos, bem como uma nova versão da divisão internacional do trabalho, onde há uma hiperespecialização que reduz o know-how para a tecnologia avançada daqueles que dispõe de produtos mais primários, Terra Brasilis inclusa. Mas a globalização tem a pecha de ideológica por uma confusão de termos. Há muita gente que conflita o termo sociológico “globalização” com o termo ideológico “globalismo”, e o ponto de contato entre ambos, além do radical da gramática, está no suposto uso dos mecanismos de globalização a serviço do globalismo.

Então, o que é esse tal de globalismo?

Trata-se de uma ideia difusa de que existiria uma movimentação ideológica para que todo o mundo caminhe para unificação de diversos aspectos, tal como um governo centralizado, uma moeda única, adoção de uma língua franca e outras ações que tornem possível um controle muito apertado e enfraqueçam as nações individualmente. Isso tudo estaria se desenrolando nos privilegiados porões de uma casta que dominaria todo o mundo a partir de então, como fariam marcianos que aqui chegassem com seus poderosos rifles de laser. Como tudo isso se baseia em dados empíricos, parece que de fato há alguma espécie de urdidura em movimento, e por isso a coisa funciona no âmbito psicológico, embora não guarde correspondência com a realidade. Descrever todo o corpo "teórico" do globalismo é muito difícil, porque ele, como qualquer teoria da conspiração, não é unívoco, embora contenha uma subjacência que conduz a resultados semelhantes.

Por que esse tema entrou em voga?

Como qualquer teoria da conspiração, esta também se baseia na costura de acontecimentos reais com uma linha feita de elementos imaginários. Como nós poderemos observar mais abaixo, há de fato uma série de fatores que demonstra a progressiva globalização ocorrida no transcurso da história, mas a ligação que se faz entre eles nada tem a ver com um plano maquiavélico de domínio global.

Por que globalização é vinculada ao comunismo?

Um dos principais axiomas do comunismo está expresso na frase “proletários de todo mundo, uni-vos”. Isso significa que a revolução preconizada por Marx deveria se expandir para todos os países, por força das iguais necessidades das classes menos abastadas. Para Marx e Engels, a nação é uma forma de proprietário, estendida para um Estado inteiro, o que não deixa de ser uma caracterização do modo burguês de encarar a economia. Entretanto, várias das aplicações do comunismo, como foi o stalinismo, preconizavam o comunismo de um só país. China, Coreia do Norte e Cuba não estão preocupadas em expandir seu sistema político, como pode ser visto em uma rápida observação do panorama mundial. Entretanto, a pecha permaneceu e acabou sendo associada à globalização por conta de um pretenso mistério na expansão dos blocos comunistas. Além disso, vamos e venhamos, qualquer forma de desgraça é vinculada ao comunismo, não bastando o que ele tem de ruim de fato.

Por que globalização é vinculada ao imperialismo?

Embora demonizem o comunismo, os países mais ricos do bloco capitalista também procuram expandir suas áreas de influência por todo lugar do mundo onde isso for possível. Isso é um fenômeno próprio do mercantilismo que procura espalhar seus produtos pelo maior território possível. Money is money, já diria o poeta ruim. A expansão dos mercados transcende fronteiras porque, mesmo que seu país chegue ao bilhão de habitantes, há mais outros sete bilhões do lado de fora. Ter um domínio político ajuda e muito na expansão dos mercados, já que é nesse âmbito que barreiras tarifárias caem, incentivos fiscais são dirigidos e portas se abrem. Entretanto, embora haja de fato uma expansão de influências, vinculá-la a um governo central é algo difícil de engolir, porque o que temos, primordialmente, são disputas de mercado.

Por que globalização é vinculada ao islamismo?

Aqui associamos uma teoria ao medo que temos do que consideramos exótico. Aqui no Brasil, temos a impressão de que a turma evangê é aquela que cresce sem parar, e é mesmo. Ocorre que na dimensão do planetinha é o Islamismo que prolifera sem parar, pelas mais diferentes vias. O Islamismo é tão apostólico quanto o Cristianismo, e isso significa que há uma vontade messiânica em se espalhar a palavra de Deus (no caso, de Alá), e isso leva a um movimento de espalhamento, o que casa com a tese de influência global. Repito que as teses gerais do globalismo são amplamente variáveis, e só estou colocando este tópico aqui porque vejo muita gente que é adepta das mesmas colocar esta religião no mesmo balaio de gatos.

O que é a tal Nova Ordem Mundial, entidade que estaria por trás do projeto globalista?

O globalismo não poderia ser disparado sem mentes por trás deles, já que a teoria reputa ser impossível que a globalização esteja ocorrendo por acaso. Essas mentes seriam compostas por membros das elites econômica e política, que planejaram constituir um governo central totalitário, que suprimiria as democracias e os governos locais, extinguindo o conceito de nação. Seu grito de guerra seria um imenso progresso científico e tecnológico. Vários eventos de impacto mundial seriam sinalizadores de que esse processo está em andamento, com a inclusão de um monte de bobagens que tem pouca ou nenhuma ligação entre si. É preciso muita paciência para buscar informações sobre isso e não se desmanchar em bocejos.

E a aldeia global, que vem sendo falada desde a década de 60?

É um termo cunhado pelo teórico da comunicação Marshall Mcluhan, que vislumbrou um mundo cujas fronteiras físicas seriam derrubadas através dos meios digitais de comunicação. Por conta dessa assertiva, ganhou fama como um profeta dos novos tempos, já que a internet de fato se tornou esse meio de aproximação entre todos os lugares do mundo, mas essa é uma verdade apenas parcial. Isso porque a internet era apenas incipiente no seu tempo de atuação, mas não inexistente. Mas o principal engano que ocorre com esse conceito está em sua própria origem. Mcluhan vislumbrou um mundo que se aproximou em torno da televisão, um meio de comunicação unidirecional, que sintetiza uma opinião unívoca. Dessa forma, a aldeia pensada por Mcluhan se aproximaria mais da distopia orwelliana do Grande Irmão, onde teríamos uma cultura preponderante lançando sua influência sobre toda a tribo do que um espaço multiarticulado, como acontece com as redes sociais. Talvez por isso o termo passe uma impressão tão autoritária.

Afinal, a globalização é algo bom ou ruim?

Nem uma coisa, nem outra. É só um reflexo do caminho pelo qual o planetinha azul vai trilhando. Pode-se facilmente argumentar pró e contra, como as vantagens em se conhecer culturas, acessar produtos, viajar. Por outro lado, cabe o oposto: suprimir culturas, sufocar produtores, superlotar ecossistemas. A constatação do fenômeno tem a serventia de prevenir efeitos deletérios, mas sabemos bem que normalmente corremos atrás de nossos respeitáveis rabos, mesmo com numerosas advertências.

Mas a globalização é só uma amostra do progresso ou uma destruição do modus vivendi da maneira que conhecemos até hoje?

Vai depender muito do ponto de vista. Nós, seres humanos, já passamos por fases revolucionárias, que mudaram radicalmente a arquitetura das relações humanas. Essa é mais uma delas, baseada em um modelo assimétrico de influências, fortemente baseados em um fluxo cuja direção vai do mais poderoso ao mais frágil, que tende a ter seus valores diminuídos, sejam políticos, econômicos, culturais e sociais. Mas quando não foi assim? Talvez pela primeira vez em nossa história seja possível trazer cultura externa às nossas sociedades na mesma medida em que nossas culturas interiores sejam não só mantidas, mas exportadas. Não sei, pode ser que isso esteja ocorrendo. Ou que os recursos mais facilmente compartilhados sejam mais bem distribuídos do que nunca, embora eu não creia nisso. O que não há dúvidas é que o mundo está cada vez menor, pelas diferentes revoluções que tem ocorrido nos mais diferentes aspectos do dinamismo global.

Como podemos perceber a globalização no Brasil?

Nos mercados, na internet, no que ainda existe de rádio e tevê, na moda e mesmo em meios mais abstratos, como nos costumes. O mais óbvio são os sem número de produtos importados que vieram substituir os produtos nacionais. Outro ponto é o acesso à produção cultural inabitual nos tempos de eu-menino, como é o caso dos doramas coreanos. Mais um: comer fora era pizza, feijoada ou mineirices. Para comer algo japonês, só na Liberdade. Hoje tem de tudo de toda parte. Quem mora em São Paulo sabe que é possível arranjar restaurante de qualquer parte do mundo, ainda que não exista uma colônia constituída, como são a costelas australianas e os uísques irlandeses.

Para além das teorias de conspiração, é possível dizer que existe algo como uma ideologia globalista?

Sim, e seu nome é capitalismo. Não se trata de uma questão de intenção pura e simples, mas da lógica do funcionamento do sistema. Façamos uma brincadeira: eu fabrico cataventos e vendo na minha vizinhança. Quando todas as crianças já tiverem meu produto, o que farei? Vou procurar compradores em outros quarteirões, outros bairros, outras cidades, outros estados, outros países. Meu público-alvo nada tem a ver com a minha nação, mas com minha necessidade de buscar sempre mais clientela. Portanto, quando um empresário se vê na necessidade de expandir seus mercados, olhará para políticas e ideias que favoreçam seu comércio: baixas tarifas, impostos convidativos, mão-de-obra mais em conta (com suas consequentes políticas de imigração) e assim por diante. Sendo assim, os países centrais do capitalismo transpõem fronteiras nacionais em busca de lucros, e isso forma uma espécie de integração mundial, onde quem tem dinheiro, tem também a prioridade sobre a carne seca. Quem tem recursos financeiros se sobrepõe a quem tem recursos naturais, que são adquiridos pela força das imposições mercadológicas, gerando uma relação desigual no comércio mundial. Mas repito: não se trata de uma lógica de governo central, mas de funcionamento intrínseco mesmo.

Onde iremos parar?

É difícil dizer se a globalização se aprofundará a ponto de não ser distinguível se estamos na Tanzânia ou na Finlândia. De fato, quando olhamos através de um prisma imediato, dá a impressão de que em breve teremos um mundo homogêneo, com poucas diferenças notáveis entre os diferentes povos. Mas temos os dados da realidade, e eles nos mostram ainda um mundo muito diverso, sem esse borrão visível entre as culturas. Além disso, é preciso observar o quanto as sociedades terão capacidade de resistir à uniformização que parece afetar sua existência como nação. É bastante provável que as sociedades se modifiquem, mas não cheguem ao ponto de se extinguir, assim como nós, como indivíduos, preservamos algo de si mesmos ainda que nos abramos à influência do ambiente. Mas isso é só um palpite. 

Então é isso, por enquanto. O assunto é amplo e não o esgoto com essa dúzia de perguntas e respostas, até mesmo porque não quero fazê-lo. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É meio antiguinho e não representa tão bem o pensamento atual sobre o tema, mas não deixa de fornecer informações importantes sobre o momento em que nos tocamos que as fronteiras começariam a deixar de existir.

WALLERSTEIN, Immanuel. O Sistema Mundial Moderno. Porto: Afrontamento, 1974. 

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