(A democracia parece tão óbvia... mas nada mais é óbvio nos dias atuais)
“É assim que tendemos a pensar na morte de democracias: nas mãos de homens armados (...) porém, há outra maneira de arruinar uma democracia. É menos dramática, mas igualmente destrutiva. Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”.
Levitsky e Ziblatt
Olá!
Clique aqui para ver mais itens desta série…
Quando nós vamos ficando mais velhos, vamos ficando também
um pouco mais desatentos com certas particularidades do mundo que nos rodeia.
Provavelmente isso aconteça (pelo menos é o que percebo no meu caso) porque, à
medida que vamos ganhando conhecimento e experiência, achamos intuitivamente
que todo mundo dança o mesmo xaxado, e que, ao mencionar um fenômeno qualquer,
todos saibam perfeitamente bem do que estamos falando. Com isso, tendemos a
achar que tudo é elementar, e que todos compreendem bem o que estamos falando.
Bem, não é assim que a banda toca. Um exemplo bem simples
aconteceu dia desses, quando eu perguntei se algum dos estagiários queria uma
mariola. Uns olharam estranhos, outros desconfiados, como se eu estivesse
oferecendo um ilícito. Ah, leitor, você também não sabe o que é mariola? Nada
mais é do que aqueles tabletinhos de banana cozida no tacho, coisa comum nesses
botecos da vida, mas para quem ia a eles na fase de infância. Hoje, essas
coisas são conseguidas no mercado ou na internet.
As coisas mudam, e os valores são coisas abstratas, e mudam
também. Há diferenças entre o que as coisas valiam para meu pai, para mim, e
para meus filhos, e para os estagiários também. Meu pai viu o golpe de 64, eu
nasci em plena ditadura, meu filho já tinha um país democrático. Os
estagiários, mais jovens ainda, às vezes confundem a democracia, assim como não
sabiam quantas vezes já tinham comido mariola sem saber. Por isso, há valores
diferentes em jogo para cada um de nós, e, por isso, nem sempre se tem uma
dimensão exata do que é a democracia. Vamos falar dela então.
Começando pela palavra em si: democracia vem da combinação
das palavras gregas demos (povo) e kratia (poder), ou seja, o
poder exercido pelo povo. É um sistema de governo onde o poder central é
exercido por governantes escolhidos de alguma forma pela população.
Naturalmente, é uma definição muito singela, já que muitas características
devem ser levadas em conta para que um regime possa ser considerado de fato
democrático. Por exemplo, um regime democrático autêntico garante isonomia
entre seus cidadãos, ou seja, que todos sejam tratados com igualdade e
equilíbrio pela lei. Isso significa que todos devem ser tratados pelo mesmo
conjunto de regras jurídicas. Além disso, é preciso que a população como um
todo tenha acesso à participação política efetiva.
Mas por que certas pessoas desfrutam de privilégios?
É preciso sopesar o que estamos falando. Quando há, por
exemplo, um concurso para juízes, há restrições para a inscrição. Há a
precondição de haver formação em Direito, pelo fato da especialização do cargo.
Entretanto, todos aqueles que preenchem o requisito são candidatos hábeis para
o concurso, e isso é o que se espera da condição democrática. Em outros casos,
o favor da lei existe justamente para propiciar algum tipo de possibilidade de
equilíbrio social para cidadãos que, apresentando certas limitações, têm sua
oportunidade de exercício da cidadania igualmente limitada. É o caso clássico
do velhinho no ônibus, que tem muito mais necessidade de ficar sentado do que
outra pessoa mais jovem. Isso tudo não é privilégio. Estes acontecem quando uma
situação de posição social permite que alguém se livre do ônus que recai sobre
todos. O exemplo mais simples que posso pensar no momento é a prisão especial,
que é aplicada pelo simples fato de um cidadão ter formação superior. Este era
um grande problema de isonomia porque não havia explicação para sua adoção: não
há correlação atenuante ao fato de alguém ter diploma além do privilégio
social.
Ok. Mas a democracia é só isso?
Não. A democracia inclui a garantia da participação política
direta de todos os cidadãos que compõem a república, com o mais baixo nível
possível de restrições. Isso inclui não somente o direito de votar e ser
votado, mas o de se manifestar publicamente sem restrições, a não ser, é claro,
as que redundem em crimes. Não é porque eu sou livre para me manifestar que eu
possa xingar as genitoras de quem me é divergente. O nome disse é isegoria e
esse palavrão designa algo que vem desde os gregos: o direito à expressão das
posições políticas.
Falando nisso, como foi o nascedouro da democracia entre
os gregos? O modelo lá criado persiste até hoje?
A democracia grega tinha um modelo bem diferente do que
costumamos ver hoje em dia. Os historiadores dão a ela o nome de democracia
direta, porque os cidadãos se expressavam diretamente nas assembleias, que eram
realizadas nos grandes espaços públicos conhecidos como Ágora. Obviamente é
impossível realizar esse modelo modernamente, pensando como rápido exemplo a
cidade de São Paulo. Onde seria possível dar voz simultânea a mais de 9 milhões
de eleitores, mesmo com o espaço virtual da internet?
Então a democracia não é só eleição?
Não. Vai muito além disso, e, por vezes, o voto não alcança
decisões democráticas. O próprio critério de utilização de concursos para o
provimento de funcionários públicos é um exemplo. Na verdade, o que melhor
define uma democracia é o Estado Democrático de Direito, uma conformação social
onde se estabelece que ninguém, seja o rico ou o pobre, o gordo ou o magro, o
bonito ou o feio, o patrício ou o plebeu, estará fora das determinações da lei,
incluindo o próprio Estado. Se é fato que todo o poder emana do povo, como está
descrito nas principais constituições do mundo, é preciso que haja sistemas que
impeçam o Estado de exercer poder ilegalmente sobre as pessoas. A tripartição
de poderes é um mecanismo que procura limitar mutuamente os componentes estatais
de produzirem exercício indevido na sociedade. Isso está mais na raiz da
democracia do que a própria eleição.
Por que países de notórias ditaduras se autoproclamam
repúblicas democráticas?
Vamos lembrar que democracia é, no plano linguístico, uma
palavra, pronta para ser usada da forma que der na telha do usuário. Eu posso
dizer que sou um exímio surfista sem nunca ter feito mais que mascar parafina.
Esses países, que se apresentam como democracias revolucionárias, nada mais são
do que encarniçadas ditaduras, normalmente das mais sanguinárias. Mas há um
sentido (e não uma justificativa): como o teórico pano de fundo dos regimes
comunistas é um governo que não pertence às elites, o comitê gestor que
administra o Estado seria, em tese, de representantes populares, que trariam as
necessidades dos diferentes estratos através de escolhas entre seus membros,
para que os rumos governamentais fossem decididos pelos comitês centrais. Na
prática, entretanto, o que se viu foram ditaduras cuja maneira de agir se
baseia na vontade própria de poucas pessoas.
Uma escolha popular não justificaria uma tirania? Não é
democrático escolher não ser democrático?
Aqui podemos falar em duas questões. A primeira é de um
daqueles jogos de palavras, do tipo “um deus onipotente pode criar uma pedra
que nem ele mesmo pode carregar”. O sentido de democracia não está em se
colocar totalmente desprotegida em nome de uma liberdade absoluta de escolha
pelo povo, senão as leis não fariam sentido. E a outra é que, sim, a democracia
carrega consigo mesma as suas contradições, como ocorre com tudo na vida. Todo
sistema democrático maduro, sabendo-se disso, possui predisposições que evitam
danos ao sistema.
O que vale mais em uma democracia? A liberdade ou a
igualdade?
Se nós formos um bocado concessivos, em outros tempos
poderíamos dizer que esta era a diferença de base entre direita e esquerda, mas
isso já se foi, já que hoje o embate é entre pacotes prontos. Entretanto, o
mais importante é saber que uma não exclui a outra. É possível ser livre dentro
de determinados parâmetros, e é possível perseguir o máximo possível de
igualdade nas oportunidades.
Como a democracia pode ser positiva se nem no seu
nascedouro ela foi consensual? Gênios como Aristóteles eram críticos à ideia.
Há uma confusão aí. É verdade que Aristóteles criticou a
democracia como forma degenerada da politeia, essa sim o poder exercido por
grandes camadas de cidadãos. Porém, nosso nobre patrono não trabalhava sob o
conceito atual de democracia, e sim com algo que estaria mais próximo de uma
anarquia ou, pior ainda, de uma anomia, ou seja, uma sociedade sem lei.
A democracia é de fato a ditadura da maioria?
Não, de forma alguma. Mas é muito fácil inserir essa
assertiva em um discurso. Quando há uma eleição, de fato a maioria dá um
ditame. Mas que tipo de ditame? Um que decide um rumo político, econômico,
social, trabalhista e etc ou que remova direitos? Uma das características mais
caras da democracia é exatamente garantir que minorias preservem seus direitos,
mesmo que difiram do que pensa a maioria.
Quem é representado na democracia representativa?
Para suplantar as dificuldades da democracia direta grega, foi
criado um sistema onde os interesses comuns eram segregados dentro das
diferentes camadas em uma sociedade e eleitos representantes que catalisassem
esses pontos de coalisão. Os atuais partidos políticos nada mais são do que
grupamentos que congregam esses representantes, e, em países mais sérios que o
Brasil, já são, por si só, designativos dos interesses das parcelas
populacionais que se alinham a esses.
A democracia permite que presidentes sejam eleitos tendo
menos votos que seu oponente. Como esse pode ser considerado um sistema
perfeito?
Não é, aí é que está. Regimes perfeitos são tão utópicos
quanto uma verdade absoluta ou um fato irrefutável. A democracia se apresenta
como melhor que outros regimes porque, nela, os governos têm fim. A alternância
no poder é a garantia de que, ao longo do tempo, os próprios mecanismos
políticos se regulem, e não se eternizem malefícios insanáveis. O caso citado
na pergunta diz respeito aos Estados Unidos, que, por duas vezes nas últimas
décadas, tiveram presidentes eleitos com menos votos que seus adversários
diretos. É um modelo entre outros, e pode ser considerado democrático porque há
uma lei que o estabelece e é cumprida à risca. Se favorece uma distorção, cabe
a eles, estadunidenses, reformá-lo.
Obviamente essas perguntas e essas respostas mal começam a dar cobertura para um assunto tão cheio de nuances, mas serve para iniciar a conscientização da necessidade de se questionar coisas que achamos muito evidentes, mas que não são. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Pode parecer que a democracia, com seus mecanismos de
autorregulação, seja capaz de se manter indefinidamente como melhor sistema
político. Só que não. É possível corroê-la ao ponto de extingui-la, como está
bem explicado no livro abaixo, a quem recomendo fortemente:
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias
Morrem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário