(Quase todos nós somos oriundos indiretos de outros países. Isso nos ensina alguma coisa?)
“Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo da minha garganta, anjo negro perturbando a transparência, traço opaco. Insondável. Figura do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica da nossa preguiça familiar, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação em marcha, nem o adversário imediato que é preciso eliminar para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face escondida da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se abismam o entendimento e a simpatia”.
Julia Kristeva
Olá!
São Paulo é terra com grande mistura de povos. Aqui tem
absolutamente de tudo, mas é tanta gente junta que já não há divisões claras
entre os bairros e suas preponderâncias étnicas. Certo: locais como a Liberdade
ainda carregam nas tintas orientais, e a Vila Zelina ainda dá para ser chamada
de bairro lituano, mas o fato é que são exceções honorabilíssimas. O tempo em
que tínhamos uma Mooca dos italianos, uma Vila Maria dos portugueses ou um
Sapopemba dos nordestinos já vai longe.
É assim em toda parte? Tende a ser, me parece. A população
deve se tornar cada vez mais homogênea na sua mistura, e os bairros claramente
ocupados por uma determinada etnia serão mais raros. Mas eles ainda existem, e
também em Taubaté há um deles. É o Quiririm.
Este nome de origem indígena tem dois significados: o rio
que brota da chuva e o lugar do silêncio, que, com alguma dose de poesia, podem
ser costurados entre si. É um distrito destacado do centro urbano, na beira da
rodovia que sobe a serra para Campos
do Jordão e de onde se pode ver as extensas plantações de arroz que ficam
no alagadiço formado no sopé da Serra da Mantiqueira. Em suas ruas estreitas,
imperam as cantinas e trattorias, revelando a ascendência de seus
moradores, italianos da imigração oficial para a substituição da mão de obra
escrava na área cafeeira do Vale do Paraíba.
Logo na primeira vez que vim aqui, após forrar a pança em um
dos estabelecimentos, vi a placa que falava sobre um museu dedicado à imigração
italiana. Sendo eu também um oriundi, fui até lá fazer o quilo dopopranzo.
O museu foi constituído no casarão da família Indiani, que
foi uma das mais prósperas da localidade. Construído em abril de 1903, tem em
seus degraus a marca de sua inauguração.
Toda a pintura do prédio são mantenças dos originais
executados por Basilio Indiani, um dos membros da primeira geração da família
que habitou o lugar.
Seus cômodos foram divididos em espaços temáticos, que
procuram dar conta de diferentes aspectos regionais e de como, de uma forma ou
de outra, foram influenciados pela cultura italiana. Há um quarto e uma cozinha
típicos do interior…
… uma sala de aula…
… o espaço esportivo…
… as manifestações folclóricas...
… e espaços expositivos transitórios.
O casarão é belíssimo, bem como sua vista. A parte externa
permite observar o cuidado com o qual os muratori italianos tinham
cuidados com detalhes e sutilezas.
Da varanda do alto, podemos ver o galpão que consiste no
segundo compartimento deste museu, dedicado à vida rural do distrito.
Esta parte demonstra o Quiririm como região de várias
olarias, centro de fornecimento para a expansão têxtil e ferroviária da cidade
de Taubaté.
Em um lado, os meios de transporte em ordem histórica,
partindo de uma caleça até chegar em um simpático Gordini.
Daí para frente, vem uma grande quantidade de máquinas
agrícolas, até uma enorme colheitadeira, cada uma com sua utilização devidamente
explicada por painéis.
Embora o termo "lugar de fala" seja usado
erroneamente (leia sobre este interessante conceito sociológico aqui),
digamos que eu o tenha quando o assunto é imigração italiana. É que eu faço
parte dos descendentes daquela imensa leva que povoou o brasil entre os séculos
XIX e XX, para substituir a mão de obra escrava e preencher os imensos claros
populacionais, trazendo macarrões e tarantelas. Tenho gente de meu parentesco
na mesma Mooca onde nasci, no Brás, no Bixiga e na Barra Funda, todos redutos
clássicos, além do norte paranaense, também lá repleto de oriundi. Vou
falar sobre minha árvore paterna. Sobre o lado materno, será em outra
oportunidade, para não os cansar, meus raros leitores.
Meu avô, doravante nonno, veio da Itália fugido da
guerra. Era tecelão de ofício, embora muito jovem. Convocado pelo duce
para a trincheira, escapoliu no primeiro navio em que conseguiu se enfiar, um
vapor sueco de nome Arno. Os italianos entraram contrafeitos na guerra, e
sempre representaram o ponto fraco do Eixo. Portanto, a morte ou a prisão eram
destinos muito reais aos soldados. O nonno veio aportar em Santos, e,
misturando-se com as famílias que foi conhecendo pelo caminho, foi parar no
interior de São Paulo, na lavoura de café, o ouro negro da época. Quando via os
festivos conveses de novelas como Terra Nostra, o nonno dava upas semelhantes
aos de cavalos. Foram mais de quarenta dias enfiados em um porão, em meio à
carga indefinida e dividindo os poucos grãos com outros desgraçados e com os
ratos, sem a menor higiene e com grandes chances de doenças, fazendo uma
amostragem da seleção natural em um espaço de um salão. Vendo toda aquela
alegria retratada falsamente na tela da tevê, já virava de costas com seus
costumeiros maus bofes. Já a nonna, esta brasileira, teve uma história menos
aventurosa. Seus pais vieram da Itália especificamente para os plantios, e
foram se conhecer em uma dessas andanças infinitas pelas terras vermelhas.
O nonno era mezzadro, em uma espécie de sociedade de
capital e trabalho onde havia um dono da terra e um lavrador, e o produto final
era dividido em dois. Atenção: o que era dividido não era o lucro, mas o
faturamento. Todo o encargo com a lavoura, incluindo compra de insumos,
remuneração de mão-de-obra, uso de ferramentas, beneficiamento dos produtos e
mais o que houvesse era suportado pelo meeiro trabalhador, enquanto ao
capitalista não restava custos. Sabe o que isso significava? Que por não poucas
vezes o lavrador ficava no prejuízo. Com isso, o nonno foi circulando pelo
interior de São Paulo e do Paraná, e por este motivo cada um dos seus filhos
nasceu em um lugar: Tupã, Osvaldo Cruz, Astorga, Dobrada, Monte Azul Paulista
são algumas dessas cidades, nem lembro mais qual tio é de qual.
Esse modelo de vida cansa. Em um determinado momento, o vecchio
juntou os trapos e os filhos e se mandou para São Paulo, tentar a sorte nas
fábricas. Não tardou a conseguir um emprego de tessitore, experiente na
área que era, e daí foi se tornar mais um dos milhões anônimos de sobrenome
sonoro e elegante, mas que não significava muita coisa na fila do pão. Sim, os
Matarazzo, Martinelli, Crespi, Scarpa e Ramenzoni eram poucos - os Ferrari,
Rossi e Conti que povoavam os cortiços e melecavam as mãos de graxa não criaram
impérios e fervilhavam como formigas em bairros operários.
O que se passa na cabeça de quem deixa sua terra para procurar
outro canto para ficar? Manter-se como seu original ou adaptar-se por completo
à sua nova realidade? Talvez seja lícito dizer que há casos e casos.
Certas imigrações se dão em caráter irrevogável. São aquelas
em que não resta muita esperança de retorno. Nestes casos, aquele que vai a
outro país tende a tentar mais rapidamente sua adaptação. Mas sempre é uma
decisão difícil, dada a carga de incerteza que traz. Era o caso da nonna, não
era o caso do nonno. Ela saiu, na pessoa de seus pais, da maneira possível, de
maneira mais estruturada, com passagens compradas e destino certo, tudo ao
contrário do futuro marido. É certo que, hoje em dia, é mais fácil de se pensar
em ir ao exterior para conseguir uns cobres e voltar, já que não se pensa mais
em passar um mês completo em um navio, mas algumas horas de voo. Quem vinha fare
l’America até meados do século passado fazia tudo de caso pensado, fugindo
da fome e não cogitando voltar para ela.
Todas as vezes em que nos encontramos em uma terra que não é
nossa, mesmo que seja dentro de nossa própria cidade, achamos que somos
estrangeiros. Esse sentimento é, obviamente, exacerbado quando estamos de fato
longe de nossa área de convívio, mas ocorre quando, por exemplo, trafego por um
bairro onde há muita diferença entre mim e o status social daqueles que habitam
naquela parte. Isso vale para qualquer lado: se eu estou nos jardins ou na
periferia. É que ser estrangeiro é também uma metáfora. Na medida em que não
nos adequamos a um determinado meio, achamo-nos, a nós mesmos, como “sapos de
fora”. Dou o exemplo da minha patroa. Ela pertencia a um dos famosos grupos de
zap da família, onde tratavam daquelas amenidades típicas: como vai, como está,
feliz aniversário, amém. Chegou a época da eleição, e, com ela, um
posicionamento geral que confrontava o dela própria. Sabemos como funciona a
máquina de fake news e ódio quando colocada em movimento, e deu no deu. A
patroa saiu do grupo e resiste até hoje em voltar a ele. Por outro lado,
aproximou-se mais do grupo do prédio em que moramos, muito mais afeito às suas
tendências políticas e ideológicas, por incrível que pareça. Não era
estrangeira em nenhum dos dois, de fato. Mas sentiu-se como tal no primeiro, e
tendente à fuga ou à expulsão, como acontece quando certas etnias imigram para
países pouco afeitos à sua presença.
Isso demonstra que o pertencimento não uma coisa meramente
telúrica, como gostariam que fosse os nacionalistas, mas algo que está na
própria psique das pessoas, tão moldada a um sistema de usos e costumes que as
lapida. Entretanto, conforme observa a filósofa franco-búlgara Julia Kristeva,
temos uma relação dupla com o estrangeiro. Ao mesmo tempo que os admiramos por
não serem os mesmos que nós, que se entregam ao desconhecido e carregam
particularidades que fogem do nosso prosaico dia-a-dia, por outro os tememos,
exatamente no mesmo condão: são diferentes de nós, sabem de coisas que não
sabemos, trazem uma forma de conhecimento que não está entre nosso meio. Somos
estrangeiros para nós mesmos, conforme diz o título de sua obra, porque temos
um olhar dividido. Nós reconhecemos os estrangeiros que habitam em nós, porque
sempre temos algum tipo de desajuste com as nossas comunidades. É que o ser
humano moderno, banhado de seu individualismo, não tem como se achar membro de
uma comunidade, como faziam os antigos iluministas do século XIX ou
totalitaristas do século XX. Por esse motivo, toda reação contra o estrangeiro
é estranha, porque todos somos estrangeiros. Mas há momentos em que uma ou
outra visão preponderam, e problemas podem acontecer.
A reação em forma dúbia que temos com os estrangeiros
prossegue como uma demonstração de nossos preconceitos. Não nos incomodamos
quando quem vem é mais ou menos do mesmo substrato que nos compõe, mas reagimos
pesadamente quando a etnia vindoura bate com o alvo do que não gostamos, mesmo
que veladamente. Sejamos francos… Incomodam-nos haitianos, bolivianos,
nigerianos. Portugueses e eslavos são muito mais bem vindos. Já os anteriores,
quando chegam contingentes um pouco maiores, sempre dizemos que já não há
emprego para quem aqui está, que fará para quem chega. Não gostamos de grandes
levas de estrangeiros que chegam ao país, mesmo sendo o Brasil composto
essencialmente da mistura que falei acima. E isso se espalha mais e mais pelo
mundo todo.
É uma visão daquele que acha que uma casa terá que ser
dividida com mais pessoas, e não que novas casas serão construídas. O discurso
é fácil porque é mal pensado, meramente intuitivo e cheio de ideias
empacotadas, que se contrapõe ao que elas deveriam carregar de melhor: uma
nação dita religiosa deveria se gabar de sua misericórdia, e não de seus
preconceitos.
É contraditório, mas é real. Conhecer um pouco de nosso
passado pode ajudar a refletir melhor e tirar esse ranço ao novo, marca do
reacionarismo. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Primeiro, o livro que mencionei no decorrer do texto, meio
complicadinho de ler, mas que traz uma visão bastante inédita.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994.
Depois, o endereço do museu em questão, muito bom de ser
visitado com a pança cheia:
Museu da Imigração Italiana de Quiririm "José
Indiani" e Museu da Agricultura
Av. Líbero Indiani, 550
Quiririm
Taubaté/SP
A aproximadamente 130 Km do centro de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário