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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Navegações de cabotagem – O Museu da Imigração Italiana do Quiririm e os estrangeiros que habitam em nós (e que nem sempre nos fazem aprender)

(Quase todos nós somos oriundos indiretos de outros países. Isso nos ensina alguma coisa?)

“Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo da minha garganta, anjo negro perturbando a transparência, traço opaco. Insondável. Figura do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica da nossa preguiça familiar, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação em marcha, nem o adversário imediato que é preciso eliminar para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face escondida da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se abismam o entendimento e a simpatia”.

Julia Kristeva

Olá!

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São Paulo é terra com grande mistura de povos. Aqui tem absolutamente de tudo, mas é tanta gente junta que já não há divisões claras entre os bairros e suas preponderâncias étnicas. Certo: locais como a Liberdade ainda carregam nas tintas orientais, e a Vila Zelina ainda dá para ser chamada de bairro lituano, mas o fato é que são exceções honorabilíssimas. O tempo em que tínhamos uma Mooca dos italianos, uma Vila Maria dos portugueses ou um Sapopemba dos nordestinos já vai longe.

É assim em toda parte? Tende a ser, me parece. A população deve se tornar cada vez mais homogênea na sua mistura, e os bairros claramente ocupados por uma determinada etnia serão mais raros. Mas eles ainda existem, e também em Taubaté há um deles. É o Quiririm.

Este nome de origem indígena tem dois significados: o rio que brota da chuva e o lugar do silêncio, que, com alguma dose de poesia, podem ser costurados entre si. É um distrito destacado do centro urbano, na beira da rodovia que sobe a serra para Campos do Jordão e de onde se pode ver as extensas plantações de arroz que ficam no alagadiço formado no sopé da Serra da Mantiqueira. Em suas ruas estreitas, imperam as cantinas e trattorias, revelando a ascendência de seus moradores, italianos da imigração oficial para a substituição da mão de obra escrava na área cafeeira do Vale do Paraíba.

Logo na primeira vez que vim aqui, após forrar a pança em um dos estabelecimentos, vi a placa que falava sobre um museu dedicado à imigração italiana. Sendo eu também um oriundi, fui até lá fazer o quilo dopopranzo.

O museu foi constituído no casarão da família Indiani, que foi uma das mais prósperas da localidade. Construído em abril de 1903, tem em seus degraus a marca de sua inauguração.

Toda a pintura do prédio são mantenças dos originais executados por Basilio Indiani, um dos membros da primeira geração da família que habitou o lugar.

Seus cômodos foram divididos em espaços temáticos, que procuram dar conta de diferentes aspectos regionais e de como, de uma forma ou de outra, foram influenciados pela cultura italiana. Há um quarto e uma cozinha típicos do interior…

… uma sala de aula…

… o espaço esportivo…

… as manifestações folclóricas...


… e espaços expositivos transitórios.

O casarão é belíssimo, bem como sua vista. A parte externa permite observar o cuidado com o qual os muratori italianos tinham cuidados com detalhes e sutilezas.

Da varanda do alto, podemos ver o galpão que consiste no segundo compartimento deste museu, dedicado à vida rural do distrito.

Esta parte demonstra o Quiririm como região de várias olarias, centro de fornecimento para a expansão têxtil e ferroviária da cidade de Taubaté.

Em um lado, os meios de transporte em ordem histórica, partindo de uma caleça até chegar em um simpático Gordini.

Daí para frente, vem uma grande quantidade de máquinas agrícolas, até uma enorme colheitadeira, cada uma com sua utilização devidamente explicada por painéis.

Embora o termo "lugar de fala" seja usado erroneamente (leia sobre este interessante conceito sociológico aqui), digamos que eu o tenha quando o assunto é imigração italiana. É que eu faço parte dos descendentes daquela imensa leva que povoou o brasil entre os séculos XIX e XX, para substituir a mão de obra escrava e preencher os imensos claros populacionais, trazendo macarrões e tarantelas. Tenho gente de meu parentesco na mesma Mooca onde nasci, no Brás, no Bixiga e na Barra Funda, todos redutos clássicos, além do norte paranaense, também lá repleto de oriundi. Vou falar sobre minha árvore paterna. Sobre o lado materno, será em outra oportunidade, para não os cansar, meus raros leitores.

Meu avô, doravante nonno, veio da Itália fugido da guerra. Era tecelão de ofício, embora muito jovem. Convocado pelo duce para a trincheira, escapoliu no primeiro navio em que conseguiu se enfiar, um vapor sueco de nome Arno. Os italianos entraram contrafeitos na guerra, e sempre representaram o ponto fraco do Eixo. Portanto, a morte ou a prisão eram destinos muito reais aos soldados. O nonno veio aportar em Santos, e, misturando-se com as famílias que foi conhecendo pelo caminho, foi parar no interior de São Paulo, na lavoura de café, o ouro negro da época. Quando via os festivos conveses de novelas como Terra Nostra, o nonno dava upas semelhantes aos de cavalos. Foram mais de quarenta dias enfiados em um porão, em meio à carga indefinida e dividindo os poucos grãos com outros desgraçados e com os ratos, sem a menor higiene e com grandes chances de doenças, fazendo uma amostragem da seleção natural em um espaço de um salão. Vendo toda aquela alegria retratada falsamente na tela da tevê, já virava de costas com seus costumeiros maus bofes. Já a nonna, esta brasileira, teve uma história menos aventurosa. Seus pais vieram da Itália especificamente para os plantios, e foram se conhecer em uma dessas andanças infinitas pelas terras vermelhas.

O nonno era mezzadro, em uma espécie de sociedade de capital e trabalho onde havia um dono da terra e um lavrador, e o produto final era dividido em dois. Atenção: o que era dividido não era o lucro, mas o faturamento. Todo o encargo com a lavoura, incluindo compra de insumos, remuneração de mão-de-obra, uso de ferramentas, beneficiamento dos produtos e mais o que houvesse era suportado pelo meeiro trabalhador, enquanto ao capitalista não restava custos. Sabe o que isso significava? Que por não poucas vezes o lavrador ficava no prejuízo. Com isso, o nonno foi circulando pelo interior de São Paulo e do Paraná, e por este motivo cada um dos seus filhos nasceu em um lugar: Tupã, Osvaldo Cruz, Astorga, Dobrada, Monte Azul Paulista são algumas dessas cidades, nem lembro mais qual tio é de qual.

Esse modelo de vida cansa. Em um determinado momento, o vecchio juntou os trapos e os filhos e se mandou para São Paulo, tentar a sorte nas fábricas. Não tardou a conseguir um emprego de tessitore, experiente na área que era, e daí foi se tornar mais um dos milhões anônimos de sobrenome sonoro e elegante, mas que não significava muita coisa na fila do pão. Sim, os Matarazzo, Martinelli, Crespi, Scarpa e Ramenzoni eram poucos - os Ferrari, Rossi e Conti que povoavam os cortiços e melecavam as mãos de graxa não criaram impérios e fervilhavam como formigas em bairros operários.

O que se passa na cabeça de quem deixa sua terra para procurar outro canto para ficar? Manter-se como seu original ou adaptar-se por completo à sua nova realidade? Talvez seja lícito dizer que há casos e casos.

Certas imigrações se dão em caráter irrevogável. São aquelas em que não resta muita esperança de retorno. Nestes casos, aquele que vai a outro país tende a tentar mais rapidamente sua adaptação. Mas sempre é uma decisão difícil, dada a carga de incerteza que traz. Era o caso da nonna, não era o caso do nonno. Ela saiu, na pessoa de seus pais, da maneira possível, de maneira mais estruturada, com passagens compradas e destino certo, tudo ao contrário do futuro marido. É certo que, hoje em dia, é mais fácil de se pensar em ir ao exterior para conseguir uns cobres e voltar, já que não se pensa mais em passar um mês completo em um navio, mas algumas horas de voo. Quem vinha fare l’America até meados do século passado fazia tudo de caso pensado, fugindo da fome e não cogitando voltar para ela. 

Todas as vezes em que nos encontramos em uma terra que não é nossa, mesmo que seja dentro de nossa própria cidade, achamos que somos estrangeiros. Esse sentimento é, obviamente, exacerbado quando estamos de fato longe de nossa área de convívio, mas ocorre quando, por exemplo, trafego por um bairro onde há muita diferença entre mim e o status social daqueles que habitam naquela parte. Isso vale para qualquer lado: se eu estou nos jardins ou na periferia. É que ser estrangeiro é também uma metáfora. Na medida em que não nos adequamos a um determinado meio, achamo-nos, a nós mesmos, como “sapos de fora”. Dou o exemplo da minha patroa. Ela pertencia a um dos famosos grupos de zap da família, onde tratavam daquelas amenidades típicas: como vai, como está, feliz aniversário, amém. Chegou a época da eleição, e, com ela, um posicionamento geral que confrontava o dela própria. Sabemos como funciona a máquina de fake news e ódio quando colocada em movimento, e deu no deu. A patroa saiu do grupo e resiste até hoje em voltar a ele. Por outro lado, aproximou-se mais do grupo do prédio em que moramos, muito mais afeito às suas tendências políticas e ideológicas, por incrível que pareça. Não era estrangeira em nenhum dos dois, de fato. Mas sentiu-se como tal no primeiro, e tendente à fuga ou à expulsão, como acontece quando certas etnias imigram para países pouco afeitos à sua presença.

Isso demonstra que o pertencimento não uma coisa meramente telúrica, como gostariam que fosse os nacionalistas, mas algo que está na própria psique das pessoas, tão moldada a um sistema de usos e costumes que as lapida. Entretanto, conforme observa a filósofa franco-búlgara Julia Kristeva, temos uma relação dupla com o estrangeiro. Ao mesmo tempo que os admiramos por não serem os mesmos que nós, que se entregam ao desconhecido e carregam particularidades que fogem do nosso prosaico dia-a-dia, por outro os tememos, exatamente no mesmo condão: são diferentes de nós, sabem de coisas que não sabemos, trazem uma forma de conhecimento que não está entre nosso meio. Somos estrangeiros para nós mesmos, conforme diz o título de sua obra, porque temos um olhar dividido. Nós reconhecemos os estrangeiros que habitam em nós, porque sempre temos algum tipo de desajuste com as nossas comunidades. É que o ser humano moderno, banhado de seu individualismo, não tem como se achar membro de uma comunidade, como faziam os antigos iluministas do século XIX ou totalitaristas do século XX. Por esse motivo, toda reação contra o estrangeiro é estranha, porque todos somos estrangeiros. Mas há momentos em que uma ou outra visão preponderam, e problemas podem acontecer.

A reação em forma dúbia que temos com os estrangeiros prossegue como uma demonstração de nossos preconceitos. Não nos incomodamos quando quem vem é mais ou menos do mesmo substrato que nos compõe, mas reagimos pesadamente quando a etnia vindoura bate com o alvo do que não gostamos, mesmo que veladamente. Sejamos francos… Incomodam-nos haitianos, bolivianos, nigerianos. Portugueses e eslavos são muito mais bem vindos. Já os anteriores, quando chegam contingentes um pouco maiores, sempre dizemos que já não há emprego para quem aqui está, que fará para quem chega. Não gostamos de grandes levas de estrangeiros que chegam ao país, mesmo sendo o Brasil composto essencialmente da mistura que falei acima. E isso se espalha mais e mais pelo mundo todo. 

É uma visão daquele que acha que uma casa terá que ser dividida com mais pessoas, e não que novas casas serão construídas. O discurso é fácil porque é mal pensado, meramente intuitivo e cheio de ideias empacotadas, que se contrapõe ao que elas deveriam carregar de melhor: uma nação dita religiosa deveria se gabar de sua misericórdia, e não de seus preconceitos.

É contraditório, mas é real. Conhecer um pouco de nosso passado pode ajudar a refletir melhor e tirar esse ranço ao novo, marca do reacionarismo. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Primeiro, o livro que mencionei no decorrer do texto, meio complicadinho de ler, mas que traz uma visão bastante inédita.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.


Depois, o endereço do museu em questão, muito bom de ser visitado com a pança cheia:

Museu da Imigração Italiana de Quiririm "José Indiani" e Museu da Agricultura

Av. Líbero Indiani, 550

Quiririm

Taubaté/SP

A aproximadamente 130 Km do centro de São Paulo

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