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terça-feira, 31 de outubro de 2023

O café filosófico do quotidiano – comparações entre tempos são justas?

(Parece óbvio que gostamos mais das nossas próprias lembranças do que as dos outros. Mas... isso é certo?)

Olá!

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É evidente que em Taubaté não há quantidade de lojas de tudo, como há em Terra da Garoa, mas também não estamos falando de um vilarejo com meia dúzia de bodegas. Especialmente com a patroa, sempre consegue-se achar comércios com aquelas coisas que pouco me interessam, mas que tem um ou outro artigo interessante, e, bem procurado, dá para fazer meu tempo passar. E aconteceu de novo. Estando em uma casa de badulaques, lá pelo miolo de uns trecos de cerâmica, achei esse surpreendente conjunto de porta-filtro e jarro, branco como um táxi recém lavado:

O método, como um todo, é uma cópia quase perfeita do clássico Hario V60, marca japonesa que é referência para cafés percolados, pelos seus resultados muito satisfatórios, como pudemos ver com outros métodos que são quase irmãos gêmeos.

A diferença mais flagrante é o diâmetro do seu vazador, um pouco maior do que o da V60, o que pode até ser uma vantagem para cafés que exijam um escoamento mais rápido. No mundo dos cafés especiais, filtragem rápida pode ser a diferença entre um produto saboroso ou amargoso.

Bem aquecida, a porcelana ajuda a manter uma temperatura uniforme, de modo a não se perder a qualidade do café. É uma boa vantagem, além do garbo retrô que é meio moda hoje em dia.

De fato, é uma peça que remete à década de 60 ou 70, quando as peças de esmalte já não estavam mais tão em moda, mas o vidro temperado ainda não estava em alta, principalmente por conta de seu custo mais alto.

 

Nome do utensílio: Filtro de porcelana

Tipo de técnica: coador cônico espiral (percolação)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um coador de papel cônico é introduzido em um porta-filtros de porcelana, com fundo denteado e guias espirais, que retém as partículas enquanto a água faz a extração do café, desembocando em um recipiente de vidro refratário por ação da gravidade.

Resíduos: Mínimos

Temperatura de saída: média

Nível de ritual: médio


 

Vejo muita rapaziada montando seus novíssimos apartamentos com reedições de geladeiras consagradas Frrrrrrrrrigidaire, fogões de cores berrantes, batedeiras em forma de torpedo e outras cositas com ar de década de 50. Todas as coisas se movem através do tempo, às vezes de forma cíclica, às vezes em linha reta. Algumas coisas vêm e voltam, e, por isso, a tal onda retrô faz bastante sucesso. Por outro lado, tem coisas que ficam e custam a voltar. Basta que se pensem em alguns nomes que são retomados, outros que não são. Mateus e Tiagos foram nomes da moda na época de meus filhos. Poucos coetâneos meus tem esses nomes, cuja época estava mais para Alexandres e Marcelos. Em termos de nomes femininos, tem muita menina chamada Sandra ou Patrícia com a mesma idade que eu, enquanto Larissa e Carolina são frequentes entre as amigas dos filhos. Por sua vez, nomes como Gastão ou Josefina têm sido cada vez mais raros.

E eu fico aqui pensando… As gerações passadas (sem pensar nos coffee lovers*) adorariam esse método, que é elegante, bonito, bem ornado com qualquer mesa. Já as recentes devem olhá-lo torto, porque obriga a lavar rápido e bem para não ficar manchado, tem muitas peças e depende de xícaras que a acompanhem. Mas será que as gerações são tão marcadas assim mesmo? Será que os mais velhos são só da estética, e os mais jovens só da praticidade? Sei não.

Todos nós temos aquela tendência em falar "no meu tempo isso, no meu tempo aquilo". Não é preciso incômodo com isso, é só um modo de falar e de manifestar que o auge da vida já passou, que ficou em outro lugar. E vamos falar a verdade: é apenas e tão somente uma figura de linguagem chamada elipse, onde um termo não expresso fica claramente subentendido. No caso, no meu tempo de infância, no meu tempo de juventude, épocas boas que são recordadas com os filtros positivos da memória ativados. 

O fato é que não temos um tempo, mas impressões de um tempo. Eu, por exemplo, me pego falando bem sobre os carros da época em que eu sonhava em comprar o primeiro. Hoje em dia, vejo os meninos falando de coreanos e japoneses sem ter a menor noção de diferenciação, pior ainda com relação às suas tecnologias e implementações. Fiquei quase chocado ao saber que meu carro tem faróis de neblina. No “meu tempo”, havia maravilhas automobilísticas como freio a tambor nas quatro rodas, barras de torção, carburador de câmara simples, cruzetas de roda e outros mecanismos que hoje causam espanto, dada à sua qualidade quase artesanal e nível de segurança baixo. Foram avanços e tanto, mas que não são mais aproveitáveis com a tecnologia atual. Isso indica que o “meu tempo” era ruim? Não, e também não era melhor que a atualidade. Era o que havia para aquele momento.

Os tais meninos talvez riam dos carros do passado, que realmente não tinham a mesma eficiência dos atuais, e eu poderia dizer que aqueles eram carros de verdade, que dependiam mais da interação com o motorista do que os hodiernos, que são comandados quase que pela força do pensamento, com tantos auxílios que tornam difícil a diferenciação de quem é bom motorista. Quem está certo?

Parece-me pouco efetivo firmar posição unicamente pelo critério afetivo, mas o fato é que será ele o primeiro a pular na frente. Isso tudo faz lembrar que nossa percepção sobre o passado é distorcida, mas que nós, caniços pensantes, a temos estruturalmente igual. Desta forma, as lembranças da Jovem Guarda que minha mãe teria se ainda fosse viva seriam mais ou menos as mesmas que eu tenho com relação à Década Perdida: aquilo é que era boa música.

Isso tudo posto, podemos perguntar: as músicas que marcaram a geração de meus pais eram melhores ou piores que as que marcaram a minha geração? Por extensão, podemos pensar nas coisas que validam a nostalgia de cada uma das gerações. Vamos tentar fazê-lo? 

Tudo começa se relembrando que os bons historiadores e analistas insistem que é preciso já haver um distanciamento temporal para se conseguir uma visão mais desapaixonada. Mais de trinta anos após a Década Perdida, já temos esse componente bem catalisado. Década perdida?

Essa é uma das maneiras com as quais é conhecida a década de 80 no Brasil, exatamente o auge da minha juventude, quando comecei a trabalhar, entrei na faculdade, formei minhas bandas, comecei a namorar e tantas outras coisas mais ou menos decisivas na minha vida. A transformação não se resumiu a mim, mas ao Brasil também. É neste momento em que saímos do período da ditadura e entramos em um sonho que virou um pesadelo: a transição democrática foi acompanhada pela realidade social que caiu à nossa frente como um meteoro - a desigualdade era muito maior do que os números do período militar podia fazer supor.

O resultado foi um desnível gigantesco entre expectativa e realidade, e a desilusão foi uma mera consequência. Daí, toda uma geração patinou em um país que não saía do lugar, estagnado economicamente e perdido em suas contradições. É por isso que surgiu essa história de década perdida, comigo bem no meio dela.

O fato é que, se a década de 80 foi perdida, não significa que a de 60 foi ganha, muito pelo contrário. Vivia-se o momento da Jovem Guarda, movimento musical que se aproximou muito do iê-iê-iê dos Beatles e seus asseclas, que dividia baladas românticas com um pop dançante. Ela ocorreu concomitantemente aos Anos de Chumbo, período da história brasileira marcada pelo poderio militar e cerceamento de direitos. A ditadura que terminou em 80 é exatamente a mesma que começou em 60, com o agravante de toda a fervura que ocorria naquele momento. Como dividiam-se as cabeças entre aqueles que entendiam ser proveitosa a manutenção da democracia, ainda que com um governo impopular, e aqueles que enxergavam vantagens na tomada do governo pelos militares, tínhamos uma polarização meio parecida com a que vemos hoje.

Sendo assim, a Jovem Guarda arrefeceu aquilo que a década perdida atiçou: um espírito de rebeldia. É verdade que o mundo gira e é sempre o mesmo - torcia-se o nariz para as danças sensuais, para os cabelos compridos e saias curtas, mas o fato é que o grosso da Jovem Guarda era bastante despolitizado, função exercida naqueles dias pelo pessoal da MPB, que tomava peia no lombo e se exilava no exterior, como ocorreu com os cabeças da Tropicália, exempli gratia. E também é verdade que a década de 80 começou morna, falando de coisas mais corriqueiras, como os mesmos namoros e as novas amizades coloridas, mas era como se tateássemos em busca de até onde poderíamos chegar. Mesmo musiquetas que falavam apenas de moderada sacanagem eram censuradas, como aconteceu com duas faixas do disco de estreia da Blitz, o marco zero da música que se praticaria dali para a frente.

Como eu disse, na década de 60 havia uma camada artística que também fez muito sucesso, mas que manteve seu espírito crítico aguçado: era a MPB, combinação de ritmos regionais que trazia uma música que era o espelho do Brasil. Já a Jovem Guarda plasmava a música que se praticava no hemisfério Norte, logicamente com recursos mais modestos, e aqui se protegia dos desafios que os artistas da MPB se submeteram. Era a juventude que queria viver seus dias encantados durante um período que pegava fogo, e a música era seu escape. Meio alienados? Pode ser que sim, mas é possível compreender que alguém não queira se enfiar em problemas nos quais era possível cair sem fazer força. Se há uma justificativa para a “flacidez” dos jovem-guardistas, era que o perigo era muito maior.

Este foi o modelo que a mídia da época exaltou. Mesmo com os inconvenientes listados, era melhor para um meio que apoiava o governo que se falasse de namoros e papos firmes do que da falta de liberdade ou da miséria varrida para baixo do tapete. Por outro lado, a música em si mesma é neutra, e ao menos cumpria sua função de divertir.

Por outro lado, olhamos para a década de 80 e percebemos uma assunção política não existente antes, e não se trata de querer polarizar a questão, mas não há como fugir do mesmo ponto de referência. A partir do meio da década, já se começou a falar mais dolorosamente sobre o jovem colocado diante de uma realidade muito distinta do sonho. As bandas que soavam divertidas começavam a olhar para a miséria, para o imobilismo, e muitas vezes respondiam não só com a raiva e com o desencanto, mas com a ironia e o nonsense.

Além disso, a Jovem Guarda se calçou fortemente naquilo que faziam os Beatles, mas, com exceção dos álbuns psicodélicos do Ronnie Von (ótimos, diga-se de passagem), a influência buscada foi aquela que os quatro de Liverpool produziram até Rubber Soul, ou seja, a parte mais simples do repertório, com muitas músicas para divertir e namorar. Não havia um compromisso com a evolução musical, mas com o seu aspecto ora lúdico, ora juvenil.

Na década de 80, há menos uniformidade. Bebia-se da fonte da moda, a new wave, mas em Brasília e São Paulo eram fortes as influências punks, e do Rio Grande do Sul veio um certo sabor regional. O Camisa de Vênus era o nervosíssimo representante do Nordeste, repleto de sarcasmo e minimalismo. Assim, de bandas que lidavam com um viés humorístico, passamos a um estado mais anárquico e com sabor de protesto por um lado, e mais confessional e intimista por outro. 

Os nomes são vários e conhecidos: Legião Urbana, Ira!, Capital Inicial, Nenhum de Nós, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Engenheiros do Hawaii, Titãs e tantos outros. Eles começam a tocar em temas que os jovem-guardistas não ousavam penetrar, e talvez essa seja a grande diferença entre ambos os grupos. Falam sobre relações abusivas (Camila, Camila), violência do estado (Proteção), suicídio (Pais e Filhos), ditaduras (Toda Forma de Poder), incerteza das escolhas (Infinita Highway), contra o establishment (Núcleo Base), contra o sistema (Homem Primata), contra o preconceito sexual (Nunca Exisitiu Pecado) e tantos outros temas. A Década Perdida repelia exatamente o que a jovem guarda mais desejava: o conformismo das histórias contadas individualmente, mesmo que não deixassem de falar sobre as aflições típicas da juventude. Por incrível que pareça, o movimento mais jovem acabou por ser mais denso, mesmo que não tenha dado em nada igualzinho o outro.

Deste modo, os dois fenômenos musicais que mais trouxeram influências do exterior para o Brasil se aproximam pela origem e pelo desfecho, e se distanciam pelo caminho trilhado. No fim das contas, parece que um é melhor que o outro, e faz com que eu, como indivíduo, prefira aquele que eu vivi, mas não há como dizer que é uma opinião inválida aquela que diz ser a música um meio de prazer, que, se o resultado é o mesmo, melhor que tenha-se passado dançando do que chorando, e não poderei discordar de quem pensa assim, porque o tempo bom não é o passado, nem o futuro, mas o tempo em que pudemos dizer que fomos mais felizes. A Jovem Guarda se passou no olho do furacão, e não em um momento em que ele parecia ter passado, por isso é compreensível que tenha sido uma espécie de tábua de salvação para quem vivia aquele momento, enquanto a Década Perdida, em termos musicais, não tem nada de perdida, porque foi o momento em que reaprendemos a gritar por nós e pelos nossos. E ainda que tecnicamente não haja tanta diferença entre ambas, a poética oitentista é, sim, mais profunda. Nesse sentido, o “meu tempo” foi o melhor de ambos. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Para quem se interessar em conhecer musicalmente a Jovem Guarda, recomendo a coleção abaixo, composta de 05 CDs, que contém o essencial do movimento. Pena que, por razões contratuais, o principal prócer não está presente, Roberto Carlos. Mas há músicas dele interpretada por outros cantores.

VÁRIOS ARTISTAS. 30 Anos de Jovem Guarda. Os reis do iê-iê-iê. Rio de Janeiro: PolyGram, 1995. 5 Vol.

Para falar da década de 80, a melhor fonte atualmente é o canal do Julio Ettore, que traz muitas histórias de bastidores das diversas bandas que compuseram aquele momento.

https://www.youtube.com/@julioettore

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