(Adaptar para sobreviver. Essa é uma assertiva tão válida
que acontece até onde não vemos)
Olá!
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Estou quase nos últimos dias dessa minha viagem. Duas coisas
determinam o término: o prazo que se esvai e o dinheiro que acaba. É uma dupla
ainda mais inexorável que o destino, mas não adianta chorar pelos cantos. O
melhor que tenho a fazer é ainda tentar achar mais algum cantinho para visitar,
e por aqui isso não é tarefa difícil. Vou até Senador José Bento, e por lá
pegar algumas paisagens.
Esta pequena cidade proclama sua região como Vale do Café
com Leite, porque fica na confluência entre as áreas dos laticínios e dos
cafeicultores, duas atividades nas quais Minas Gerais se celebrizou, uma há
muito tempo (e que foi sinônimo de política
nacional) e outra mais recente, aproveitando suas características naturais.
A cidade é toda cercada por morros, o que favorece as vistas e dificulta as construções. A tradicional igreja é dedicada a São Sebastião, e fica no topo de uma das incontáveis colinas.
Este é um dos santos mais populares do Brasil, em parte por
seu sincretismo com a Umbanda, onde ele é Oxóssi, o orixá da caça e das matas.
Para quem não sabe, esse modelo sincrético foi a maneira com
a qual os negros escravizados puderam continuar a exercer seus ritos e sua fé,
porque havia uma religião oficial no reino e nas primeiras repúblicas, o que
fazia com que fosse necessário o uso de subterfúgios.
Para além disso, o soldado Sebastião foi um dos muitos
mártires dos primeiros séculos do Cristianismo. Em certos períodos do governo
romano, algumas perseguições eram levadas a cabo para quem não oferecesse
sacrifícios aos deuses do império, ou simplesmente se confessasse como tendo fé
diversa. Há semelhanças entre os dois dramas? Sim, há. Por isso as dicotomias
Oxóssi/Sebastião, Ogum/Jorge, Iansã/Bárbara se tornaram tão populares.
Mais uma coisa: como nos aproximávamos do Natal, esta foi a
primeira cidade em que vi alguns preparativos para a grande festa. Os ritos
dizem que os preparativos devem começar no Advento, quatro domingos antes do
Natal, mas o pessoal já foi enfeitando a praça ainda antes.
Pela área rural, percorri por várias estradinhas de terra e
passei por cachoeiras e fazendas, algumas com cachoeiras dentro, mas fechadas.
Uma das mais famosas foi comprada recentemente e a dona resolveu não franquear
mais o acesso. Pena. Fui também atrás das pedras, sendo a mais famosa delas a
Pedra do Mirante, que fica bem na estrada para Poços de Caldas.
Ela se tornou célebre principalmente por conta de seu
facílimo acesso, pelo local privilegiado e, naturalmente, pelo ponto de visada
que proporciona.
Tanto é assim que acabou recebendo estrutura mais robusta,
com escada e plataforma, e até placa comemorativa.
Voltando para a questão do sincretismo, que é especialmente forte quando envolve religiões de origem africana. Como acontece com qualquer região do mundo, os africanos tinham sistemas religiosos e cosmogônicos, e dada a distância entre os territórios e as culturas, diferiam muito daquilo que era praticado nos lugares para onde eram levados. Entretanto, o substrato da formação de suas religiões tinha grandes semelhanças com o de todas as outras.
Se nos reportarmos ao filósofo holandês Baruch de Espinoza,
observaremos que a origem das religiões se dá em duas instâncias.
Primeiramente, o humano em relação com o mundo está sempre em uma posição de
conflito e incerteza. Embora a terra dê frutos, o sol traga calor e as árvores
façam abrigo, há momentos em que a terra resseca, o sol calcina e as árvores
caem sobre nós. De membros harmoniosos, tornam-se vilões. Levados a um espaço
temporal maior, os ciclos se tornam detectáveis, mas há momentos inexplicáveis
em que eles não se repetem, e a habitualidade construída em cima dessa roda que
gira falha, às vezes com consequências dolorosas. Diante desse cenário, o homem
vive em permanente ansiedade, simplesmente porque não consegue ter controle dos
fenômenos. Tudo parece longe de suas mãos, com conformação muito difícil,
porque, afinal de contas, ele age no mundo: planta, coleta, constrói, limpa,
recolhe, pastoreia, prepara, faz e desfaz. No entanto, tudo vai à bancarrota
por um evento qualquer – um ano seco, um vento forte, uma maré alta, um tremor
de terra. O ser humano percebe os limites de sua ação e como é pequeno diante
do universo que não lhe demonstra empatia, embora haja aquele papinho bonito de
perfeição e de funcionamento esmerado.
O ser humano vive nessa incerteza, mas não lhe agrada nem um
pouco essa condição. Não se conforma, e quer, de algum meio, influenciar no seu
próprio destino. Dessa forma, inicia-se uma correlação
de coincidências que o faz pensar na existência de um ser maior, que guia
os rumos do mundo e o dele próprio, que é suscetível a humores e que pode
trazer alvíssaras e desgraças, conforme se sinta agradado ou insultado. Nada
mais do que a projeção de sua ansiedade em um ser externo, maior e mais
poderoso, passível de ser agradado ou irritado.
Eu fiz isso e choveu, eu fiz aquilo e estiou. A impressão
imediata é que minhas ações tiveram alguma influência no clima, como se este
fosse controlado por alguma divindade. Então eu passo a repetir esse ato na
forma de um ritual, irrefletidamente. Ele se torna tão forte e arraigado que
acaba ganhando um status de inerrância. Quando ele falha, o erro não está no
rito, mas na forma que o pratico, ou na falta da minha fé. Essa é a segunda
faceta de Espinoza: a ignorância. Pela minha falta de capacidade em intervir,
eu acabo atribuindo a alguém de fora essa prerrogativa, e busco maneiras de
agradá-lo, com danças, palavras mágicas, imagens, sacrifícios. Isso não é nem
própria ou unicamente da religião, mas da atitude humana perante sua limitação.
Eu puxo pela memória e recordo, entre nuvens, da minha mais antiga
reminiscência futebolística, e já lá, na aurora da minha vida, estava esse
mesmo sentimento. Na primeira invasão corinthiana, em 1976, estimados 70000
fanáticos empurravam o time contra o Fluminense. Jogo feio em campo inundado,
que chegou aos pênaltis. Nos momentos que antecediam as cobranças, minha mãe
pegou as pontas de todos os lençóis da sala/quarto da casa da minha madrinha, e
tratou de amarrá-las. "É para prender as mãos do goleiro do
Fluminense", disse a crédula genitora. Tratei de amarrar tudo o que
tivesse pontas também – lenços, toalhas e mangas. Deu certo, mas só naquele
dia, porque na final, contra o Inter de Porto Alegre, não houve mandinga que
desse jeito.
Por que isso é ignorância, segundo Espinoza? Porque
apartamos a deidade do mundo. Se a terra encharcada não produz, o que
precisamos fazer é torná-la menos compacta, mais arenosa, drená-la melhor, plantar
ervas que admitam mais água. Ela não precisa de nada além disso, que se voltem
os olhos para ela mesma, e não para sortilégios que a modifiquem magicamente.
Cuidar da terra é cuidar de Deus, porque ele está em tudo e é tudo, diz o
holandês. Tudo o mais, é desconhecimento, é ignorância. Não adianta danças,
velas, imagens. O que é preciso é cuidar das próprias coisas.
O discurso óbvio é de que essas crenças são primitivas, e
que são descendentes diretas dos antigos animismos. Mas quando você ora, meu irmão,
você está fazendo a mesma coisa. Mesmíssima. Estruturalmente, as religiões são
tão parecidas que permitem o sincretismo. E um exemplo recentíssimo vem na
forma de "Marcha para Jesus", evento evangélico que aproveita um
feriado católico, o Corpus Christi, para ser levado a cabo, a ponto de, no
mínimo, estar empatando em impacto. Nas grandes cidades, certamente já superou.
E os tapetes de serragem da celebração católica vão ficando cada vez mais
restrito às cidades do interior. A lógica é simples: aproveita-se um espaço de
tempo sem significado para uma determinada comunidade e aplica-se uma lógica
nova, em substituição à prática antiga. Isso não é novo: a própria escolha do
Natal levou em conta a existência de uma comemoração pagã e procurou
substituí-la.
Há uma diferença crucial, porém. Quando duas culturas
concorrentes se encontram, temos que ambas se imiscuem, de forma a se obter um
resultado final mais consensual, como é o caso da marcha mencionada.
Entretanto, quando há a sobrepujação de uma sobre a outra, vemos um fenômeno de
resistência, tal como aconteceu com o Catolicismo predominante e as religiões
oriundas da África, Candomblé à frente. Esse fenômeno não é único: a Santería
cubana e o Vodu haitiano sofreram o mesmo processo sincrético. Em todos esses
lugares, a população trazida não tinha suas culturas e valores reconhecidos e
levados em conta. Por definição, tudo o que viesse deles era considerado
desprovido de valor. Acontece que não se mata uma cultura dessa forma, como se
fosse possível jogá-la para o esquecimento da história. E o sincretismo foi a
forma encontrada para sua manutenção. Usando simbologias preexistentes,
usavam-nas por assimilação para não deixar morrer seus cultos, trazendo uma
completa ressignificação para esses elementos. As imagens dos santos é o
exemplo mais visível na interação forçada entre Candomblé e Catolicismo.
Há uma quase vingança nisso. A imagem de são Jorge foi
praticamente banida das igrejas católicas, por conta de um mal explicado édito
que retirou dos altares uma porção de santos considerados pouco documentados.
Se por um lado a medida trouxe um pouco de realidade para uma área crivada de
elementos lendários, por outro desconsiderou toda a tradição de regiões
inteiras. São Jorge é padroeiro da Inglaterra, de Portugal e muitos outros
países, além do meu notável Corinthians. Quem não deixou a tradicional imagem
sobre o cavalo, combatendo o dragão da maldade foi exatamente o processo
sincrético com os cultos africanos. Sua imagem, aqui no Brasil, foi mantida
viva por ação da Umbanda e sua associação com Ogum.
Eu, pessoalmente, tive pouco contato com cultos
afro-brasileiros, mas que também não é nulo. Três foram as ocasiões: quando eu
era criança ainda, no fim da rua sem saída que minha avó paterna morava existia
o terreiro da Vó Sabrina, onde eu vivia catando amora durante as giras, porque
o quintal ficava aberto. Já rapazola, essa mesma avó ia ao Jardim Colorado,
onde existia o terreiro da Mãe Joaquina. É lá que tomei um passe pela primeira
vez. Por fim, bem mais recentemente, havia na Liberdade um outro centro, que se
mudou para o Bresser, chamado Casa da Fé. De todas elas, pude tirar conclusões
interessantes, cada qual dentro das minhas possibilidades. Da primeira, aprendi
que um lugar de culto também pode ser um lugar onde você não é obrigado a ter
uma posição sisuda, e nem que te fiquem obrigando a segui-lo, entrando e saindo
a hora em que bem entender. Do segundo, consegui captar que existe uma arte
popular alegre, que inclui danças e cantos que te puxam pelos sentidos, sem
sentimentos de culpa. Da terceira, conheci formas de encarar a transcendência
de uma maneira inesperadamente sofisticada, que tem respostas melhores que o
Cristianismo para certos aspectos, embora eu igualmente não creia em seus
desígnios, mas aceite tranquilamente sua visão de mundo. Sobre os princípios
gerais destas vertentes, deixarei para momento oportuno, quando também tiver
aprendido mais sobre elas.
Tudo junto e misturado, aproveito para falar um pouco sobre
o senador que nomeia a cidade. Ele era um padre e político, além de jornalista
que fundou um jornal em Pouso Alegre. Participou de eventos importantes na
virada do primeiro para o segundo reinado, e foi assassinado numa tocaia
próxima à sua fazenda. Não se sabe bem os motivos para tal ato, mas há duas
hipóteses mais aventadas: motivações políticas ou disputas demarcatórias. De
uma forma ou de outra, também na sua história vemos a imbricação de duas
histórias: o padre de princípios conservadores e o senador com ideias liberais.
É assim que o mundo se move – controverso e paradoxal. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Espinoza é um dos pensadores mais desafiadores da nossa
espécie. Segue o livro onde ele cuida da formação das religiões.
ESPINOZA, Baruch de. Tratado teológico-político. São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
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