Marcadores

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 11ª Parada: Cachoeira de Minas e as discussões culturais ao redor de uma fogueira

(Cultura e sociedade se imiscuem, mas em qual ordem de primazia?)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Nesta altura do campeonato, eu estava em uma parte da viagem enriquecida pela culinária. Não era mais só os riachos e quedas d'água, mas o polvilho em Conceição dos Ouros, azeite em Consolação e agora biscoito. Seguindo a vocação desta região, estamos de barriga cheia pela comida caseira e também pela produção industrial. Estamos em Cachoeira de Minas.


Como visto em outro texto, a disponibilidade de mandioca faz com que boa parte da atividade comercial se volte para seus derivados, e então os biscoitos de polvilho deitam e rolam.

Outra especialidade é o fubá feito no moinho de pedra. Segundo reza a tradição, esta é a melhor maneira para se obter um pó muito fino e solto, ideal para se preparar polenta e bolos que necessitam de estrutura bem firme.

Andando pela cidade, ainda encontramos um forte aroma de café, sinalizando que estamos em região de bons grãos. Entramos em uma das lojas para tomar um espresso moído na hora.

Esta cidadezinha foi criada em 1854, por obra de Ignácio da Costa Rezende, que doou as terras às margens do Rio Sapucaí -Mirim. Neste busto tríplice, está ladeado pelo cônego João Dias de Quadros Aranha, que rezou a primeira missa da freguesia, e pelo coronel Antônio Ribeiro Portugal, que tratou de emancipar a vila para a condição de município.

No centro da cidade, impera a igreja de São João Batista, padroeiro das festas juninas, que, como veremos, são muito significativas para a cidade.

Há uma certa confusão quando falamos de festas juninas, que carregam esse nome por serem realizadas no mês de junho, o mais frio de Terra Papagalia. Quando começaram a ser comemoradas no Brasil, levavam o nome de "festas joaninas", justamente por ocorrerem na data do santo em epígrafe.

Sendo assim, o termo ficou obsoleto, mas não censurem os velhinhos que ainda o utilizem, porque ele estará mais correto que você.

Cachoeira de Minas, falando ainda sobre as festas joaninas ou juninas, orgulha-se de sua fogueira da festa de São Pedro, que é a maior do Brasil com estrutura empilhada. Ela nasceu de manifestações de fé, e foi crescendo com o correr dos anos, fazendo-a aumentar um metro por ano, até chegar em um limite de segurança, de cerca de quarenta metros. A festa inclui desfile de carros de boi para trazer a lenha e queima de fogos de artifício no momento em que a fogueira é acesa. O pátio onde tudo se dá é um grande terreno que fica na parte mais alta da cidade, atrás da igreja matriz.

Não dá para se ter uma ideia muito precisa da altura da fogueira por esta foto, então peguei outra no site da prefeitura (https://www.cachoeirademinas.mg.gov.br/historia-da-fogueira) para que vocês tenham uma ideia de quanto a brincadeira fica alta. Imaginem tudo isso pegando fogo.

Tradições por vezes são coisas óbvias, mas também precisam de explicação em outras. A fogueira de Cachoeira de Minas é dedicada a São Pedro, e não a São João, que não só empresta seu nome para as festividades, como também é padroeiro do município. Seria de se esperar que a fogueira levasse seu nome, mas a homenagem vai para o dono das chaves do céu. Isso acontece porque a tradição nasce pelas supostas graças recebidas por um certo Pedro que morava nas cercanias, e que se valeu do seu xará, consagrando a ele sua promessa.

Eis como se imbricam sociedade e cultura. Quando observamos de perto uma comunidade mais coesa, como essa cidade de cerca de 10 mil habitantes, podemos verificar como se dá a sua mobilização. Realmente, quando uma festividade movimenta uma parte enorme das pessoas, que participam das procissões, do corte da madeira, da montagem das barracas, das missas, dos enfeites, da comida e tudo o mais, notamos o quanto há de importância em uma atividade que é essencialmente típica, não se reproduzindo em qualquer lugar que se vá. Certo, festas juninas (joaninas) existem no país inteiro, mas essa ênfase no tamanho da fogueira como um distintivo local é próprio daqui.

Como esta, existem milhares de outras tradições distintivas de localidades, algumas tão fortes que fazem com que seja um signo cultural tão expressivo que a tornam única no mundo. Um evento ou fenômeno dirige tão marcantemente esse lugar que faz com que o próprio funcionamento daquela sociedade seja espelhado por esta circunstância. E aí teremos o dilema de Tostines© (este texto não é patrocinado, mas bem que poderia): vende mais porque é mais fresquinho, ou é mais fresquinho porque vende mais? Facilitando as coisas: a sociedade molda a cultura ou a cultura molda a sociedade? O que vem primeiro: a Sociologia ou a Antropologia?

Há respostas nos dois sentidos. Tradicionalmente, uma cultura navega dentro de uma determinada sociedade, e, por este motivo, parece existir uma primazia desta segunda. No marxismo, por exemplo, não se consideram as relações humanas ocasionais e randômicas, mas tem-se que as forças produtivas fazem com que os homens entrem em relações predeterminadas, independentes não só de sua vontade, mas mesmo de sua consciência. Essas relações, ao fim e ao cabo, têm um propósito econômico. Vejamos um exemplo. Um trabalhador qualquer dorme e acorda em horários determinados, consome sua principal refeição e descansa nos finais de semana sempre em função do seu desempenho laboral. Ele sabe que todas essas ações são voltadas para este mesmo desempenho, mas se aliena do que produz e do quanto é explorado, criando todo um conjunto de hábitos que é naturalizado. Esse modo de visão calcado na alienação é pulverizado por todo o organismo social, que se baseia fortemente nos dispositivos econômicos para formar superestruturas, um termo muito caro à escola. A superestrutura é o conjunto das infraestruturas que são baseadas em um determinado sistema econômico e produtivo, de forma a refleti-lo para todos os demais aspectos sociais de uma determinada população, inclusive em termos culturais. Em miúdos: a relação infraestrutural de produção estabelece para toda a sociedade seus modos de conduzir suas políticas e leis, que se projetam para todos os cantos sociais, a tal da superestrutura, ou seja, a presença dos mecanismos de embates produtivos em qualquer lugar que se olhe. Os filmes que assistimos nos cinemas, as músicas que ouvimos, as comidas que comemos, a religião que professamos são desta forma porque há uma superestrutura que espraia o modo de produção capitalista para toda a sociedade. Ou seja, a cultura é como é porque a sociedade está erigida de modo a esculpi-la dessa forma.

Já outro monstro sagrado da Sociologia dá um pouco mais de protagonismo à cultura, mas ainda assim de maneira subalterna. Max Weber fala sobre o agir social, o modo como os diferentes componentes sociais agem entre si e com quais propósitos. Ele qualifica quatro maneiras com as quais essas ações se desenrolam, e já falei sobre elas neste texto, mas vou dar uma pinceladinha rápida. Duas são racionais: uma com relação a fins e outra com relação a valores. E outras duas são irracionais – ações afetivas e ações tradicionais. Só para dar um exemplinho: você é lateral-esquerdo de um time que está perdendo uma partida, e o time adversário ataca pelo seu setor. Em uma disputa, uma bola prensada sai pela linha de fundo e o juiz dá escanteio para seu adversário. Racionalmente, você correria para o miolo da área, para ajudar na marcação e recuperar rapidamente a bola. Mas o que você faz é reclamar com o juiz, que lhe aplicará uma rebordosa e talvez um cartão, dando ao time do lado de lá um tempo precioso. Uma seria a ação racional com relação a um fim: recuperar a posse de bola o mais rapidamente possível. Outra, uma ação afetiva: clamar contra um ato que, no final das contas, é critério do árbitro, e não seu. Dessa forma, é possível notar o pano de fundo de cada ação social, se é baseada numa construção racional, numa impulsividade ou num automatismo.

Por onde transita a cultura para Weber? Para ele, quando observamos especialmente a cultura ocidental, verificamos que ela se dá no âmbito do racionalismo. O conceito weberiano de cultura está no indivíduo que fornece significação ao mundo que o cerca. Na medida em que os diferentes indivíduos passam a compartilhar essa significação, forma-se uma base cultural. Toda a cultura se quantifica por finalidades que ela busca (conhecimento, lazer, socialização) ou por valores onde ela se enquadra (beleza, utilidade). Mesmo na questão da tradição, a manutenção da cultura se dá no plano da descrição das raízes históricas e no conhecimento da origem dos fazeres, e não no sentido de se manter algo porque as coisas sempre foram assim.

Percebam como Weber enxergava a cultura de modo a ainda subordiná-la à sociedade, ou seja, colocando-lhe hierarquicamente abaixo da sociedade. Mas o que é uma casa sem seus tijolos? É com Jeffrey Alexander, sociólogo norte-americano, que teremos uma conceituação inversa. Ele estabelece que os componentes irracionais de uma determinada cultura fazem com que a conformação social de um determinado povo ganhe contornos próprios.

Imagine-se de que maneira um determinado evento seria recebido em São Paulo, em Cachoeira de Minas, no Japão ou na Tanzânia, como, por exemplo, um fenômeno natural catastrófico ou uma guerra. A compreensão deles por cada uma dessas populações não tem como ser delineada, não tem como ser de uma maneira previsível, fundamentalmente porque cada um deles tem uma linguagem culturalmente construída que vai lhe doar os significados. O sentido coletivo de todos esses eventos só existe como ele é porque existe uma cultura para fazê-lo assim. Uma cultura mais racional atribui causas científicas, uma cultura mais religiosa atribui vontades divinas e assim sucessivamente. Mais que isso, encarar o mundo depende da relação que temos com ele. Uma fotografia do rosto de uma pessoa no momento de um terremoto demonstra que o plano racional vai para o vinagre em São Paulo, enquanto em Tóquio teremos que ter um abalo verdadeiramente forte, porque há uma interação diferente em cada lugar, e isso influencia na própria linguagem, não somente a falada ou escrita, mas na construção das representações.

Sendo dessa forma, uma sociedade somente é compreensível quando vista e interpretada pelo ângulo de sua cultura, porque ela é o elemento próprio de uma sociedade que faz com que seus componentes pensem como pensam e encarem o mundo como encaram. Uma sociedade não é como é apesar de sua cultura, mas justamente por causa de sua cultura. Se todos os aspectos culturais fossem puramente racionais, poderíamos imaginar uma relação de causalidade que faria com que as culturas se assemelhassem, mas elas diferem, por vezes radicalmente, exatamente porque são permeadas pelo irracional, indefinido por natureza.

Ora, tantos pontos de vista distintos, e eu só falei de três, podem trazer a uma reflexão sobre qual é a validade das diferentes linhas de pensamento, e isso ajuda a nos demonstrar a "magia" das Ciências: por serem antidogmáticas, as Ciências se renovam e permitem a correção de rotas. Isso não está somente nas Humanas, mas em qualquer área – ovos, café e leite ora fazem bem, ora fazem mal, não é verdade? Isso é uma impressão que temos porque as olhamos pela superfície, e por não compreender muito bem seu escopo e propósito. A verdade não está em Marx, em Weber ou em Alexander. A verdade não é algo que se conquista, como um troféu, mas algo que se aproxima, que se modifica, que se renova e se refaz, sem que precisemos ficar presos à ditadura de uma regra. E com isso podemos perceber que qualquer cultura carrega consigo uma porção de verdade e de verossimilhança, sempre vinculada aos valores próprios de sua população. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Dos citados, Marx e Weber são consagradíssimos. Jeffrey Alexander acabou de ter sua primeira obra editada em português, o que dá impressão de menos relevância, o que é falso. Segue sua indicação:

ALEXANDER, Jeffrey. Sociologia Cultural: Teoria, Performance, Política. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2023.

Nenhum comentário:

Postar um comentário