Olá!
Dia desses, já tem um bom tempo atrás, eu estava voltando da
casa da comadre e passava em frente à igreja do Carmo, uma daquelas famosas do centro de SP. É raro que haja qualquer evento por lá, já que não é
uma paróquia de comunidade, nem mesmo um santuário muito frequentado fora das
datas da padroeira. Então me chamou a atenção uma faixa estendida no começo de
sua escadaria, como uma pequena mudança na aparência habitual. Nela, estava
escrito assim: “Dia X, às tais horas, venha rezar conosco as mil ave-marias,
pela conversão dos pecadores”. Mil!!! Nem nos meus tempos de maior beatitude,
eu levava a cabo um empreendimento desses.
Tive a pachorra de calcular por aproximação a duração de um
rito desses. Levando em conta que as senhorinhas que frequentam esses cultos
gostam de rezar bem rezado, contei vinte segundos por prece. Isso dá quase seis
horas só de aves-marias, sem pausas. Se levarmos em conta que há ainda
cinquenta pais-nossos e cinquenta glórias, além das reflexões dos mistérios do
rosário e a contemplação das cinco chagas de Cristo, não tem como fazer em
menos de nove ou dez horas.
Eu não vou discutir a crença de ninguém. O mais importante é
que a pessoa se sinta bem fazendo o que quiser. Eu só acho um exagero estranho,
um sacrifício mais da atenção do que propriamente do exercício da fé, que
existirá ou não independentemente da realização do combo oracional. É bem
verdade que a repetição ad infinitum
de preces tem o mesmo objetivo de atingir um transe que os mantras possuem,
onde a atenção já não está naquilo que se diz, mas no que se sente, uma espécie
de descolamento da realidade física que rodeia o contribuinte. É um pouco
como o sentimento
oceânico freudiano? Sim, mas cada um com suas características.
Enquanto um vem da perda de noção de limites do corpo com o ambiente, o outro
faz uma espécie de colapso na percepção temporal. No primeiro, perde-se a noção
de espaço; no segundo, na percepção do tempo. Pelo menos eu acho.
Ocorre que o volume de rezas me fez lembrar de outra coisa,
e para explicar para vocês vou ter que contar um pouco da historia do meu TCC.
Eu peguei o período do imediato pós-guerra na Itália e observei como um
humorista de lá enxergava as agruras, para analisá-lo sob o prisma da Filosofia
Política. Trata-se de Giovanni Guareschi, de quem já falei neste post.
Seu personagem principal, e pelos olhos de quem ele se aproveitava para
contemplar sua Itália em recomposição física e moral, era Dom Camillo, um padre
conservador que vivia às turras com o prefeito comunista, Peppone. Em tudo
havia debate (e algumas vezes rolava as vias de fato), desde um simples
brinquedo de feira, até os conflitos psicológicos na hora do voto. Os
personagens tinham personalidades extremamente dúbias, incluindo o cristianismo
disfarçado dos comunistas. Certa ocasião, Peppone vai ao padre para confessar
um pecado político, cuja absolvição Dom Camillo não pode negar. Seu recurso é
impingir uma penitência duríssima: 3 glórias, duas aves-marias e 3000 padres-nossos,
muito mais do que nossas velhinhas carmelitas se propõe a rezar à sua padroeira.
Eu nunca entendi muito bem essa questão da confissão e da
penitência. O que vale mais? Um arrependimento sincero ou um pecado confessado?
De que vale um pecado confessado mas sem arrependimento? A absolvição vale
mesmo assim? Olha só o paradoxo, a ambiguidade, a bivalência, o contrassenso, o
antagonismo, a paralaxe, a contradição, a anfibologia. Se eu deixo de confessar um pecado,
carrego a culpa dele mesmo que arrependido; se o confesso, sou perdoado mesmo
que não arrependido. Essa falta de compreensão me fez dar muitas fintas no
sacramento, mesmo nos tempos de carolice. Um dos truques (que nem era um truque
de verdade) consistia em fazer a confissão em paróquia desconhecida, onde o vigário
de plantão não pudesse guardar de mim a vergonha do "crime" cometido.
Além disso, o que eu confessaria de fato? As sórdidas fornicações da juventude?
Mas é aí mesmo que eu não tinha arrependimento algum… Os tapinhas na pantera?
Ora, isso nunca prejudicou ninguém, nem mesmo a mim (ao que eu pensava na
época).
Outra coisa difícil de entender era a dosimetria da
penitência. Em principio, para grandes pecados, eram necessárias grandes
reparações. Mas a dosagem do remédio não pode ser maior que a do veneno, sob
pena de matar o neobeato, ou, desmetaforizando, desestimular que o pecador
procure sair do seu erro. Por isso mesmo, o próprio código de direito canônico,
o conjunto de regramentos do clericato católico, instrui os padres a não
prescrever penas que sejam demasiado gravosas, ou mesmo impossíveis de cumprir.
Por exemplo, não se pode exigir um jejum de quarenta dias, ou que o penitente
se chicoteie, ou que passe o resto da vida em oração. Com as devidas
proporções, é meio difícil de aceitar o volume de padres-nossos impostos por
dom Camillo ao pobre Peppone. Esse excesso faz um desfavor à intenção do
sacramento, porque mata ou prejudica desproporcionalmente o confidente, e o que
era para ser positivo, acaba tomando o serviço inverso, para gáudio da oposição
a Deus. E daí nasce um termo que vai se tornar muito comum no direito e na
lógica: a probatio diabolica, ou prova do diabo em latim.
A probatio diabolica é uma condição em que se exige uma prova que alguém não tem condições de produzir. Para ser mais específico, talvez não haja uma impossibilidade patente, mas uma extrema dificuldade em conseguir obter prova completa de um argumento qualquer. E isso vai se misturar com o conceito de ônus da prova, de quem a probatio diabolica tira amplo proveito.
O que diz o princípio do ônus da prova? É simples. Cabe a
quem faz uma declaração qualquer o dever de prová-la verdadeira. Se eu disser
que vi duendes no jardim, implicitamente tenho o dever moral de reconhecer que
a prova deve ser minha, pelos meios idôneos possíveis. Não faz nenhum sentido
que meu interlocutor receba o encargo de provar que eu estava bêbado. Não, sou
eu quem deve apresentar a foto, a filmagem, a gravação, as pegadas, o pote de
ouro, o barrete, ou, de preferência, o orelhudo em pessoa. Esse princípio geral
pode ser ferido de duas formas fundamentais: a primeira é com a inversão
do ônus da prova, onde é repassado para aquele que nega um argumento que
produza a prova de verdade. No exemplo em tela, é como se eu exigisse que o meu
debatedor mostrasse por A + B que os duendes não existem, sendo que a afirmação
da existência é minha. Uma maneira válida de uma negação carregar a obrigação
de provar é quando se quer refutar uma verdade consolidada, como é o caso de
dizer que a gravidade não existe. Neste caso, o ônus cabe a quem nega. A
segunda ocorre quando não se cumpre o ônus da prova, e justamente o vácuo
deixado é interpretado como uma verdade, porque a negação também não é provada.
É o que chamamos de apelo
à ignorância.
Já a probatio diabolica não é um vício aplicado a um erro no
polo devedor da prova, e sim na capacidade daquele que possui o ônus de
produzir a prova. Em outras palavras, o ônus da prova continua na mão de quem
faz a declaração, mas ela é muito pesada (ou até mesmo impossível) de se
conseguir. Um exemplo muito simples é possível de extrair do Direito. Sabe-se
que a bigamia é ilegal no Brasil, conforme diz o Código Penal...
Artigo 235 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940
Art. 235 -
Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:
Pena - reclusão, de
dois a seis anos.
§ 1º - Aquele
que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa
circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.
§ 2º - Anulado
por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a
bigamia, considera-se inexistente o crime.
... e o Código Civil:
Artigo 1521 da Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002
Art. 1.521 Não podem
casar:
(...)
VI - as pessoas
casadas.
Pois muito bem. O que é preciso fazer para que se prove não
ser casado? Como bem sabemos, o fio do bigode já faz um bom tempo que não vale
grande coisa (nunca valeu). Portanto, são necessários papeis, emitidos por
cartórios, onde o escrivão escreverá que fulano não possui assentos afirmando a
contração de matrimônio. Só que a lei não especifica o local onde o casamento
ocorreu, o que impede que um cartório determinado mate a charada. Em tese,
seria necessário obter certidões de estado civil em TODOS os cartórios de Terra
Brasilis, ou, no limite, do mundo inteiro. É virtualmente impossível conseguir
levar esta tarefa a cabo: antes de chegar à metade, o casamento já acabou. Para
resolver o problema, a lei estipula uma espécie de “presunção de inocência”
através de declarações expressas, conforme relacionado abaixo:
Artigo 1525 da Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002
Art. 1.525. O
requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os
nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser
instruído com os seguintes documentos:
(...)
III - declaração de
duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem
não existir impedimento que os iniba de casar;
IV - declaração do
estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus
pais, se forem conhecidos;
V - certidão de óbito
do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de
casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio.
Dessa forma, no nosso exemplo do casamento, a prova é bem
mais frágil, apoiando-se em testemunhos do item III e declarações indiretas, já
que o texto de próprio punho do item IV pode facilmente ser escrito com má-fé e
os registros do item V não asseguram a inexistência de novo matrimônio após o
desfazimento do vínculo anterior. Mas, mesmo que não sejam provas cabais, são as
provas possíveis. E assim a sociedade segue vivendo.
Outra maneira com a qual nossos causídicos lidam com a
questão é com a distribuição dinâmica do ônus da prova. Vamos fazer uma
hipótese rápida: você compra uma bola de capotão para o seu filho e o animado
petiz a vê murchar no primeiro chute. Ao reclamar na loja, o caso é encaminhado
ao fabricante, que alega uso indevido. O caso é judicializado, e o ônus é teu,
pai do moleque com pé de tesoura. Mas tudo o que você tem é uma bola furada nas
mãos. Não conhece de física, nem de costura, resistência dos materiais, e, em
suma, não tem condições técnicas nem meios financeiros para provar que a culpa
não é do pequeno. O juiz, nesse caso, pode inverter o ônus da prova, de modo a
determinar que o fabricante é quem deverá provar que o furo se deu por má
utilização da bola, porque ele tem técnicos, especificações, laudos e testes
laboratoriais que permitem mais facilmente a comprovação do que ele (ou o pé de
sovela) alegam. Isso é bastante comum em causas do Código do Consumidor.
O Direito, desta forma, sabe como lidar com a prova do
diabo. Acontece que nem sempre ela é utilizada nesse âmbito. Veja só que bela
armadilha: todos nós sabemos que a atividade científica se baseia na
interpretação de evidências, e que a ausência delas pode, no máximo, fazer com
que um argumento fique no campo das hipóteses. A cada passo que um cientista
dá, exige-se dele uma evidência ainda mais específica, mais ou menos como
acontece na falácia das traves móveis, que discorri sobre neste
texto. Para não repetir a mesma cantilena, vou exemplificar com outro tema
polêmico: o surgimento da vida.
Segundo os diferentes religiosos, a vida surgiu neste
depredado planetinha como a manifestação da vontade de um criador, e pronto. É
uma resposta enganosamente simples, porque embora dê uma solução imediata para
o problema, cria um monte de outros, que tem respostas ainda mais difíceis e
carentes de provas. Para que fins foi criada a vida, se um criador
autossuficiente se basta em si mesmo? Onde se pode achar fisicamente esse
criador? Quem criou o criador? Toda e qualquer resposta será necessariamente
incompleta e demandará novas questões, que serão novamente respondidas com
argumentos metafísicos, que, na melhor das hipóteses, carregarão lógica, mas
não evidências. E isso não serve para a Ciência.
Qual a alternativa, então? Buscar hipóteses que contenham um
mínimo de requisitos correspondentes com nossa percepção empírica. Em outras
palavras, retirando o componente mágico e escavando fenômenos que são
observáveis. Com isso, começamos percebendo que não existe vida que não se
origine de outra vida, como
provou Pasteur, a não ser uma: a vida original, aquela que deu origem a
todas as outras.
Tá. Como poderíamos supor o que seria essa primeira vida?*
Sua composição nem seria tão problemática assim. Compostos orgânicos podem ser
obtidos a partir das reações químicas que ocorriam no ambiente de alguns
bilhões de anos atrás. Uma temperatura muito mais alta que a atual pairava
sobre o oceano, com a incidência de violentas tempestades elétricas. Átomos de
carbono, nitrogênio e hidrogênio, reagindo a essas descargas imensas de
energia, se uniam a outras substâncias para formar coacervados semelhantes aos
atuais aminoácidos que compõe os organismos vivos. Na continuidade dos
fenômenos climáticos, e agora com a existência de um caldo de coacervados
presente nos oceanos primordiais, as moléculas e suas uniões foram se tornando
cada vez mais complexas e sofisticadas. Mas para fazer a maquininha da vida
funcionar ainda faltariam dois requisitos mínimos: metabolismo e
reprodutibilidade. O primeiro diz respeito à necessária alimentação, e a
segunda à continuidade da vida através da produção de descendentes. Essas
“faíscas” são muito difíceis de se delinear, mas o que é certo é que nada mais
são do que reações químicas.
Aleksandr Oparin e John Burdon Haldane, de maneira
independente, trabalharam nessa hipótese.
Podem perceber que ela nem recebe o nome de teoria, porque lhe faltam
evidências sólidas, ficando ainda muito no campo da suposição. Isso acontece
porque há muita limitação em se reproduzir um ambiente minimamente semelhante
àquele que tínhamos na Terra a tantos e tantos bilhões de ano, mas ela é
plenamente científica, porque embora haja esses óbices à verificação, há todo
um mecanismo bem desenhado para fazê-la, com seus respectivos pontos de
falseabilidade. À medida que a tecnologia avançar, melhores evidências poderão
ser obtidas e dar mais e mais força à veracidade da hipótese.
Só que a ideia do surgimento autônomo da vida dá cólicas
mentais em quem se prende a teses criacionistas, pior até mesmo do que acontece
com a Teoria da Evolução. Alguns argumentos são os habituais, e combinam
retórica com desconhecimento: complexidade irredutível, lacunas no
conhecimento, falta de verossimilhança. Mas há muita probatio diabolica também.
Por exemplo. Com a alegação de que as condições climáticas
seriam capazes de produzir aminoácidos, pede-se que isso seja provado. Mesmo
com todas as limitações laboratoriais, através da inserção dos elementos
químicos livres na água e no ar e da sobrecarga elétrica nessa mistura,
consegue-se obter algum aminoácido (é uma experiência que de fato foi
realizada). A pergunta seguinte é uma probatio diabolica: reproduzam-se todos
os aminoácidos existentes na natureza. Ora, isso não é possível. Existem mais
de 300 aminoácidos dentre os essenciais e os secundários, e consegui-los
através da tecnologia disponível é impossível. Um desafio desses é falacioso
porque não visa melhorar a hipótese criacionista, mas tão-somente obstaculizar
a hipótese abiogenética.
Não deixa de ser um mecanismo de dispersão, tão típico dos
apelos em geral, especialmente porque o retrucar não costuma oferecer nada a
mais, o que é um belo defeito desse tipo de argumento, eminentemente retórico.
Em suma, se uma explicação é muito difícil, isso não torna o argumento
contrário automaticamente válido, como se quer fazer parecer.
Bons ventos a todos!
Recomendações de leitura:
O livro de Oparin já é bem antigo, e aperfeiçoamentos se
fizeram necessários, principalmente por conta dos achados confirmatórios de sua
hipótese. Mas como a ideia base permanece a mesma, é uma leitura bem
recomendada.
OPARIN, Aleksandr. A origem
da vida. São Paulo: Global, 1989.
O episódio das três mil rezas está no livro abaixo. Embora
esteja um pouco extemporâneo, o mundo de Dom Camilo é bastante divertido. Sou
suspeito em dizer.
GUARESCHI, Giovanni. Dom
Camilo e seu Rebanho. Lisboa: Bertrand, s.d.
* Não mencionei a hipótese da panspermia cósmica, também
científica, porque, no fundo, ela apenas desloca o local geográfico de onde
teria surgido a vida. Há evidências da existência de microorganismos fósseis em
asteroides e meteoros, além de organismos extremamente resistentes às piores condições
de sobrevivência, como os tardígrados. Só que, se não foi na Terra que surgiu a
vida, foi em algum outro lugar, e a questão continua. Por isso, sigo o
princípio da Navalha
de Ockham e entendo que, salvo novas evidências muito fortes, a hipótese mais
simples deve ser a adotada inicialmente.
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